UMA VISITA AO NORTE DA ILHA (PARTE 3)
A ÉPOCA DE MAIS UM VERÃO HAVIA CHEGADO. Drenton já estava naquele poço há quase treze anos. Apesar de tudo, conseguiu se manter paciente. A vontade de se vingar e os planos para retomar seus poderes mantiveram sua mente ocupada desde que recobrara a memória. Conseguira apoiadores e chegara ao ponto de ser respeitado até pelos outros líderes do vale.
Tornara-se a personificação do medo.
Em um mundo de esquecimento, os esquecidos têm o direito de criar suas próprias leis. Assim, o ex-Unagor transformara um dos prédios em sua fortaleza e tomara para si o papel de distribuir as poucas provisões jogadas no vale. Ficava com metade para si e dividia a outra metade em duas partes: uma alimentava os seus apoiadores; a outra era usada para sua maior diversão.
Uma vez por semana, uma multidão se reunia debaixo da varanda do quarto de Drenton. Então, ele surgia com pedaços de carne e sacos de provisões, escolhia algumas pessoas a esmo e exigia suas cabeças em troca da comida. Com a barbárie instaurada, punha uma cadeira e sentava-se para assistir ao espetáculo até se cansar e mandar seus guardas jogarem o alimento de uma vez, fazendo com que as pessoas se digladiassem mais ainda.
Naquele dia, não foi diferente. Deliciava-se com o espetáculo, os olhos vidrados na carnificina, quando a voz surgiu atrás dele:
— O guincho dos porcos à beira da morte é um som viciante, não? - Drenton pegou uma lança e virou-se em direção à voz, mas foi cegado pela luz. Com um grito de dor, largou a arma. O ferro estava em brasas e chegou a queimar a madeira do piso. — Por gentileza, ajoelhe-se perante o seu senhor.
#pratodosverem | Descrição da imagem: vê-se Drenton Paberos, ferido e destruído, sentado em uma cadeira enquanto do alto surge Ladel, o deus solar, vindo em meio à uma explosão de fogo feito um anjo caído do céu.
***
Drenton não compreendeu, supôs ser uma brincadeira. Para o seu espanto, sentiu uma quentura nas pernas e seus joelhos cederam como se tivessem derretido. Paberos caiu de cara no chão. Quando a luz diminuiu de intensidade, pode ver um homem de cabelos brancos e olhos amarelos parado no meio do quarto. Flutuava a um palmo do chão, as roupas alvas em movimentos ascendentes para não tocar na sujeira daquele lugar. Nos cantos, amontoados feito os dejetos espalhados pelo vale, estavam os guardas, todos eles com os corpos cobertos por bolhas de queimaduras.
— Nunca imaginei encontrá-lo em tamanho esplendor, Drenton Paberos. – Ladel olhou para a quantidade de lixo no quarto e dali para a vista da varanda, onde o horizonte desolador da prisão se estendia até esbarrar nas montanhas. — Na verdade, devo dizer que, por muito tempo, esqueci-me de sua insignificância. Diferente de seus antecessores, você em nada contribuiu para os meus planos. Pelo contrário, perdeu o meu pássaro, não conseguiu dar fim aos objetivos dos outros Paberos e foi incapaz de incitar seu povo a se voltar contra o meu irmão.
Ao ver a expressão confusa nos olhos do homem, o Verão prosseguiu no mesmo tom monótono.
— A doce e bela Nyrill de Arcéh nada tem de faceira e benevolente como falam seus poemas, homem. É um deus como qualquer outro. Ainda magnífico, mas nada encantador como se esperaria de uma fada. Enfim, tanto fiz para ver a queda desta ilha, a dita 'prova de união dos deuses pelos humanos', fui paciente ao ponto de cultivar a traição nas entranhas dos próprios arcéh através dos seus antepassados, e você estragou tudo. Estragou tudo quando tinha tudo em mãos.
O deus perdeu-se nos próprios pensamentos e Drenton aproveitou para falar.
— Q-Quem é o senhor?
Ladel caminhou até ele e tocou em sua testa com um dedo. A pele de Drenton fervilhou e o homem revirou os olhos de dor.
— Eu sou o calor em sua essência; o sol e a luz festejada pelos tolos. Sou a explosão do ódio que gera faíscas; sou o fogo que consome a alma dos baixos. Sou o opositor da criação de tudo isto; o caçador de vocês, humanos. Por causa de vocês fomos obrigados a virmos para este mundo, para cuidarmos de criaturas indignas da nossa atenção.
Drenton já estrebuchava no chão. Todos os pelos do seu corpo viraram cinzas. A pele descamava, os músculos pareciam inchar. Ladel parou de tocá-lo.
— Eu sou aquele para quem a destruição da primeira terra deste mundo seria o início de uma nova jornada. Uma jornada de perfeição.
Drenton se levantou e percebeu que as pernas tinham voltado ao normal. Mas não apenas elas: seu corpo inteiro havia retomado a boa forma de antes da prisão. "Não", ele pensou ao olhar para si, "muito melhor". A pele estava viçosa, os cabelos com os fios grossos e os músculos fortes como só estiveram quando ele fora jovem. Não havia mais o cansaço da idade ou as dores dos últimos anos naquele vale.
— Você vê como eu sou muito mais benevolente? A Nyrill precisou que milhares morressem para fazer isso com apenas uma mulher. Eu faço sem necessitar de promessas, poemas ou oferendas. Sou melhor, não achas?
Drenton continuava calado. Tocava o próprio corpo como se temesse ser um sonho. Sim, o bisavô, o avô e o pai lhe falavam bastante sobre um tal "Senhor" que abençoara a família Paberos séculos antes, quando Arcéh ainda era isolada e nada mais existia. O pássaro, diziam, fora presente dele, bem como o conhecimento sobre as plantas e a percepção aguçada sobre o mundo. Diziam-se "escolhidos pelos deuses" e agora o homem estava diante da prova.
Ele fora escolhido por um deus...
— O quê eu farei agora, meu senhor?
— Eu lhe darei uma última chance, Paberos. Algo que o ajudará a se redimir, ajudará em meus planos e também lhe dará sua tão esperada vingança. - os olhos de Drenton se avermelharam. — Ah, sim, você anseia por isso há muito tempo, não? E veja só como o destino é interessante: agora, nós dois temos o mesmo alvo.
Ladel jogou a mão para o alto e o movimento lançou pontos de luz pelo ar, como poeira. O deus apontou um dedo e começou a desenhar até a face de Sâmia surgir.
— Eu seria muito, muito generoso se você a trouxesse para mim.
— Vo-Você... O Senhor.... A quer para si?
— Sim. Algo mudou. Eu só desejo a mulher. Fique com a cidade. Engula-a se você quiser. Brinque com ela. Por enquanto, meus objetivos são outros.
Fechou a mão e a imagem da Sotein se desfez.
— E... Como eu sairei daqui?
O outro estendeu a mão e, após uma bola de luz brilhar em sua palma, surgiu uma flauta de bambu. Entregou-a ao trêmulo Paberos, agora tomado por lembranças da infância, e desfez-se em raios de sol. Drenton levou o instrumento à boca e tocou uma melodia. Sentiu um arrepio. Mesmo sem usá-la por muitos anos pelo fato de passar a manter o pássaro preso na estufa, ele nunca se esqueceu daquela música.
Chamou outros guardas e exigiu que buscassem madeira pelo vale inteiro. Precisava de mais instrumentos; precisava do som mais alto que conseguisse produzir.
Chamaria muitos pássaros.
Transportaria parte do caos para o sul da ilha.
Pouco precisaria fazer para incitar aqueles homens: o ódio por terem sido jogados ali já os envenenara contra os arcéh.
Sua preocupação seria apenas buscar pela Sotein.
E fazer Arcéh queimar.
Iniciamos aqui a contagem regressiva até o nosso fim - ou o fim de Arcéh, quem sabe...
Essa frase tem muitos sentidos, não?!
Enfim, a partir daqui, não teremos mais a prévia de imagens para não estragar as surpresas.
Deixe seu voto, prepare suas armas e lenços, faça um alongamento.
É hora de um último esforço; de uma última jornada.
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