UM PEDIDO INESPERADO (PARTE 7)
A MELANCOLIA ERA TRAZIDA PELO VENTO E BORBULHAVA PELO MAR. As pessoas não se moviam ou falavam. Como se já previssem a transformação dos próprios corpos em estátuas de gelo, cada uma delas apenas esperava o badalar de anúncio da Nyrill. A fúria das ondas aumentava como se o oceano quisesse punir a ousadia daquelas pessoas em desafiar a regra de não sair de casa naquela noite. Mesmo com a firmeza da ponte, a estrutura balançava e era acompanhada pelo ranger dos pilares. Sâmia segurou-se na amurada e conteve um enjoo. As pedras amontoadas por milênios em um esforço para construir a ligação de Arcéh com o continente pareciam prestes a ruir, sugadas para as profundezas. A garota ousou olhar para baixo e se arrependeu: talvez fosse impressão sua, mas o nível da água estava a poucos metros de distância. Contudo, seu arrependimento logo ganhou outro motivo.
Apertou os olhos para enxergar melhor naquela escuridão.
Algo boiava naquele caos como um navio solto rumo à perdição.
O corpo de uma criança.
Vários deles.
#pratodosverem | Descrição da imagem: fundo preto com manchas azuis como se fossem água. Boiando nessa escuridão, veem-se bebês de olhos fechados e corpos azulados.
***
Sâmia abafou um grito e olhou para a avó.
— E-E-Eles tra-t-zem crianças... pra cá?
— Quem um dia ver a figura milagrosa / E provar-se detentor de alma bondosa / Por anos e anos sem fim terá sorte / Mil vezes escapando da morte. - recitou Madame Lita. — Crianças são puras. Não custa nada tentar...
— O poema é muito maior do que isso...! Não faz sentido...
— As pessoas só guardam o que lhes é conveniente, Sâmia. Quem se importa com os outros versos quando os últimos anunciam um grande tesouro? Não é assim que o mundo funciona?! Tesouros ao fim exigem esforços pelo meio da caminhada.
— Vovó, são apenas crianças! - a voz da garota se elevou e murmúrios de reprovação chegaram aos seus ouvidos. Ao choro de um bebê, ela ouviu a queda de algo na água. O choro cessou. — E bebês... As pessoas são loucas, são cegas...
— As pessoas são loucas? E nós duas somos o quê? Temos as mesmas esperanças que todos os outros nesta ponte...
"Nem tanto...", Sâmia disse para si mesma como se ansiasse por convencer-se das próprias palavras. Não queria confessar para a avó a vontade de largar tudo e correr para casa. Tornou a levar as mãos à amurada e assustou-se ao sentir os dedos escorregarem pela madeira como se tocasse em um bloco de gelo. De uma hora para outra, a temperatura despencou e respirar se tornou uma tarefa para poucos: a cada inspiração, era como se farpas invadissem as narinas e arranhassem os pulmões. O sino da torre de Arcéh gritou o último murmúrio dos dias de verão e emudeceu.
Chegara a hora.
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