UM PEDIDO INESPERADO (PARTE 4)
MUITOS PODIAM RECLAMAR DO GÊNIO DE MARGARETH SOTEIN, MAS NINGUÉM PODERIA NEGAR SUAS QUALIDADES NA COZINHA. O bolo estava com crocância e doçura capazes de compensar qualquer nevasca futura, o chá, com aquele aroma de maçã e canela, tinha um típico sabor do campo e fazia Madame Lita suspirar a cada gole. "Boas comidas, acima de tudo, fazem bem para a alma", ela costumava dizer, e aquele lanche, com certeza, era uma dessas refeições capazes de afastar qualquer sensação ruim.
Apesar de um início motivado por desconfianças e pelo espetáculo na frente dos vizinhos, a conversa entre os quatro transcorreu sem empecilhos e enterrou, ao menos por um instante, os conflitos entre Margareth e a mãe. A noite serviu para relembrar histórias sobre a família, falar amenidades relacionadas à vida pacata de Arcéh e, para a surpresa de Sâmia e de Higor, até para uma troca de receitas entre as duas. Porém, tudo tem um tempo para terminar e a chegada do fim é inevitável.
Conversavam sobre os feitos e os não feitos do Conselho de Administração da cidade quando suas vozes foram abafadas pelo badalar do sino: faltava apenas uma hora para a chegada do inverno.
— Nossa, já é tarde assim?! - observou Madame Lita após contar a sétima badalada.
Como se o som fosse o prenúncio da morte, ouviram um clamor coletivo entre os vizinhos confirmado pelo barulho de marteladas, o fechar das janelas, os latidos dos cachorros e pela orquestra de choros de bebês ante a correria dos adultos. Como se a luzes do palco se apagassem e as cortinas se fechassem, a vida real, sem bolos ou amenidades, batia à porta e clamava por urgência.
A senhora levantou-se e olhou pela janela. A armadura de escuridão do anoitecer parecia encoberta por um manto capaz de absorver qualquer fonte de luz. As chamas dos candeeiros dispostos ao longo da varanda lutavam para se manterem acesas e até o fogo da lareira crepitava timidez. Com certo exagero, Madame Lita levou as mãos ao peito e respirou fundo, quase em um gemido de dor. Higor trocou olhares com a esposa e aproximou-se da sogra.
— Dona Lita, não se preocupe... A senhora pode dormir aqui em casa e amanhã cedo eu a levo de volta. Temos um quarto vago e a Sâmia pode...
— Não, não, Higor! Uma noite como esta eu prefiro passar na minha casa. Agradeço a gentileza, mas entenda esta pobre velha, meu filho: as ruas desertas, minha casa sem ninguém e amanhã eu encontro só o espaço vazio. Já ouviu as barbaridades que acontecem neste dia? Terríveis! São de cortar o coração... - abotoou o casaco até em cima, envolveu o pescoço com o xale e disse em um tom solene decorado com doses de sofrimento, — Sim! Preciso fazer esse sacrifício. Eu vou embora.
Margareth revirou os olhos enquanto carregava os pratos para a cozinha. Conhecia Madame Lita o suficiente para notar cada nuance daquela interpretação. Um dos relatos mais conhecidos sobre tal "capacidade" da sra. Delgo foi quando, com apenas três semanas de gravidez, fizera o marido atravessar a ponte só para pegar uma erva cultivada no continente. Dois dias depois, ao retornar para casa, qual não foi a surpresa de Uriel Delgo quando encontrou a casa cheia de vasos com a referida planta. Agoniada pela demora do marido, Lita cobriu-se de suas qualidades como atriz e, com lágrimas nos olhos, percorreu cada casa de Arcéh em busca do seu desejo.
Jogadora daquele jogo há mais de trinta anos, Margareth esfregava os copos sem nenhuma preocupação: o teatro da mãe era apenas para ser bajulada. Na adolescência, vira aquela cena várias e várias vezes e gostaria muito de esquecer de boa parte delas. Preparava-se para encarar a leva final de louças quando uma frase dita pela filha a fez deixar um prato cair no chão.
— Vó, eu posso ir com a senhora! - Sâmia exibia um sorriso de "menina doce preocupada com a vovó". — E, se a senhora quiser, eu durmo por lá para lhe fazer companhia. Acho que não teria problema algum...
— Oh, que neta gentil que eu tenho. Seria maravilhoso! Eu ficaria tão feliz. O que você acha, Higor?
— T-Tudo... bem. Eu acho... - o sr. Sotein olhava de uma para a outra sem saber como agir diante de uma tomada de decisão tão rápida.
— Ótimo. Você é o melhor genro que eu tenho! - ela só tinha ele como genro. — E você, querida?
Madame Lita fitou a sra. Sotein com um olhar entre a dúvida e o desafio. Margareth enxugou as mãos no avental e não respondeu de imediato. Era uma mulher cuja mente aguçada a fizera chegar até ali, sã e salva. Sim, por um lado perdera uma experiência aqui, uma oportunidade ali (e chegou mesmo a renegar certos sonhos por causa de algum receio). Por outro lado, estava de pé e orgulhava-se de ter a consciência tranquila. Aproximou-se das duas e olhou da filha para a mãe e vice-versa. As peças se encaixaram e uma janela se abriu em sua mente.
Higor fingiu coçar a barba para esconder o sorriso ao ver o maquinário da mulher a todo o vapor.
Três. Dois. Um.
Explosão.
— EU SA-BI-A! EU SABIA! - os gritos da mulher eram de tamanha exultação ao ponto dela rasgar parte do avental na comemoração. — Mas é claro que vocês duas estavam tramando alguma coisa! Esse nhê-nhê-nhêm de cartinhas pra cá, visitinhas sem aviso, vovózinha isso, Sâminhazinha aquilo.... Façam-me o favor! E esse aparecimento hoje?! Vocês não me enganam. Ah, mas não me enganam... Vocês pensam o quê? Que eu sou burra?
— Não, minha filha, burra não. Só meio lerda, às vezes.
Os queixos de Sâmia e de Margareth despencaram.
— Vovó!
— Mamãe!
Madame Lita deu de ombros.
— Ah, Margareth, sejamos sensatas: você sempre foi meio bobona, desde pequena. Quantas vezes eu não fiz as coisas na sua cara e você nunca percebeu? Quando você era criança, eu te levava para assistir as minhas apresentações e você nunca entendia.
— Eram peças para adultos!
— Paciência. Não mude de assunto. Ora, não há mistério nenhum aqui: como você sempre achou que eu sou uma péssima influência para Sâmia, nós duas combinamos tudo isso para ela passar esta noite lá em casa. E ela vai você querendo ou não.
Margareth poderia aceitar de tudo: intromissões na maneira como ela cuidava da casa, opiniões sobre a sua aparência, inferências sobre a qualidade das suas receitas e até considerações acerca de Higor. Mas nunca (jamais!) interferências na criação da própria filha. Aquilo foi o estopim da briga.
As duas mulheres trocaram acusações e o clima esquentou ao ponto de ficarem suadas enquanto do lado de fora a temperatura caia em um poço sem fundo. A sra. Sotein tirou o avental e o jogou no chão; Madame Lita fez o mesmo com o xale e empolgou-se ao ponto de pedir uma muda de roupa para o caso de sair na mão com a filha.
— Muito bem, Margareth, vamos resolver o que já devia ter sido resolvido há muitos anos! - provocou Lita com o cinto nas mãos.
— A senhora vem na minha casa e pretende dizer como eu faço as coisas? Eu não sou o papai!
— O que você está insinuando?
— Nada! Apenas como a senhora com suas loucuras conseguiu a proeza de destruir as chances dele de ter uma vida melhor!
Os olhos de Lita marejaram. Sâmia se encolheu na cadeira e sentiu a semente da culpa começar a germinar dentro de si. Ao ver a brincadeira com nuances mais sérias, Higor se colocou entre a esposa e a sogra e as trouxe de volta à realidade. O toque de recolher estava prestes a iniciar: ou terminavam aquela briga e começavam a se preparar para o inverno, ou continuavam e enfrentavam as consequências, entre elas, a possibilidade de Madame Lita e de Sâmia saírem de casa já com atraso e acabarem pegas pelo gelo durante o caminho.
Eram três contra um.
Eles ainda tinham o clima como arma.
Sem argumentos e alçada ao papel de carrasca, Margareth cedeu. Engoliu suas opiniões, arrumou embrulhos de comida, ajudou Sâmia a escolher algumas roupas e, mesmo com a raiva estampada no semblante e a ponto de explodir pela segunda vez foi para a varanda e se juntou à mãe e à filha para esperar o transporte chegar.
— Não se acostumem com isso. - pôs alguns grampos no cabelo e fingiu descaso. — Vocês tiveram sorte por hoje ser um dia corrido. Se não fosse, vocês...
— ... faríamos do mesmo jeito, Margareth. Acostume-se à ideia: você perdeu. Você verá como certas guerras precisam ser perdidas para descobrirmos algumas verdades.
— Do que a senhora está falando? Quais verdades?
Sâmia e Madame Lita trocaram olhares, mas foram salvas pela chegada da carruagem. O alívio preencheu o rosto das duas e trataram de se despedir o quanto antes. Margareth tornou a sentir o odor dos segredos. Quando Sâmia preparava-se para entrar na carruagem, a sra. Sotein não se aguentou e segurou o braço da filha.
— Se você ousar, Sâmia, aproveitar isso para se encontrar com aquele moleque dos Voggi...
— De novo essa conversa? Eu não tenho nada com o Phil, eu já disse. - Sâmia se virou e olhou nos olhos da mãe. — Por favor, confia em mim.
Margareth a soltou e abraçou a garota. Em parte pela briga com a mãe, em parte pela correria daquelas horas derradeiras, ela se sentia pesada como se fardos e mais fardos estivessem sobre o seu corpo. Com uma pontada de dor na cabeça, observou a carroça desaparecer na curva da estrada e aceitou quando o marido passou os braços pelos seus ombros. No silêncio, compartilharam da mesma angústia: não há problema algum em querer ter apenas um filho, mas, sem dúvidas, quando ele decide partir a situação é muito mais incômoda.
No céu, as cores da aurora boreal manchavam o horizonte e alguns pássaros atrasados faziam estardalhaço rumo às terras mais quentes. Mesmo os animais sabiam do perigo de ficarem desprotegidos em uma noite como aquela. Higor buscou pela mão de Margareth e a apertou. A pele dela emanava frieza.
— Querida, tudo bem?
O amargor em sua boca a impediu de responder. Balançou a cabeça em confirmação, porém, mentia para o marido e para si mesma.
Nada poderia estar bem na última noite do verão.
***
#pratodosverem | Descrição da imagem: vê-se uma ilustração do casal Sotein, ambos com expressões serenas nos rostos e olhar perdido em meio à noite.
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