SANGUE NA NEVE (PARTE 2)
#pratodosverem | Descrição da imagem: montagem com as fotos de quatro personagens em perigo, todas manchadas com sangue. Da esquerda para a direita, aparecem Erwank Maxil, Unagor Oiv Ó Midhir, Madame Lita e Higor Sotein.
***
O SOL PARECIA ESTAR COM PREGUIÇA DE ASSUMIR SEU POSTO AO MEIO-DIA QUANDO OS SINOS DA TORRE SUL BATERAM QUATRO VEZES. Oiv parou na calçada em frente à estalagem e apertou o casaco contra o corpo. Sentia frio. Não apenas o frio externo, natural: seu corpo estava em alerta, arrepiado; a mente buscava por algo; por alguém no meio da multidão àquela hora na rua. O falatório sobre o Bastião dos Unagor era um chamariz para grupos de arcéh se reunirem e confabularem. Durante o almoço, Ó Midhir viu-se cercado por olhares. Agora, ele sabia, não bastasse o burburinho por ele ter declarado sua real natureza, as pessoas tinham nas línguas a revelação sobre o abuso sofrido pelo Unagor.
Era o preço a se pagar pela liberdade.
Não era tão caro. Sentia-se mais leve após tirar esse fardo das costas.
Mas algo ainda o incomodava e em nada tinha a ver com os arcéh.
Alongou as pernas e os braços, respirou fundo e subiu na carruagem. A senhora Lita Delgo oferecera sua casa para ele dormir na cidade ao invés de retornar para a floresta e, na manhã seguinte, voltar para participar da visita às terras da Terceira Estufa. Oiv, contudo, não se sentia à vontade em nenhum outro lugar que não a sua casa; não se sentia protegido ou acolhido por nenhuma outra pessoa, por mais generosa que ela fosse. Além disso, precisava estar com as suas energias equilibradas para enfrentar o dia seguinte.
Fez um gesto para o cocheiro e a carruagem partiu.
ERWANK E LITA CONVERSAVAM NA SALA ENQUANTO SÂMIA TERMINAVA DE LAVAR AS LOUÇAS DO ALMOÇO. As reviravoltas ocorridas no Bastião foram além de qualquer planejamento. Madame Lita contava com a história do Capitão dos Mensageiros para convencer os outros Unagor sobre a índole de Drenton e as reais intenções do homem. Porém, o relato de Oiv Ó Midhir e a agressividade de Paberos deram novos tons para a reunião. Da mesa dos Unagor, ela viu nos olhos das pessoas o temor pelo senhor da Terceira Estufa transformar-se em asco.
As pessoas não são de todo covardes, mas necessitam de alguém que as empurre para a ação. E o Unagor Ó Midhir surgiu como esse alguém.
Talvez ela, Lita, não tivesse vida para testemunhar a mudança esperada entre os arcéh, mas já ficava feliz em ter plantado algo para os netos de Sâmia usufruírem no futuro: uma cidade diferente onde as pessoas podiam ser quem quisessem.
Uma cidade capaz de abraçar.
— Erwank ter que ir agora... – o sr. Maxil levantou-se e espreguiçou-se. Já tirara toda a maquiagem do rosto e rira até perder o fôlego ao lembrarem da cara das pessoas ao verem Erwank vestido daquele jeito. Preferiram não pensar em Margareth quando soubesse do ocorrido e de como haviam usado o nome dela (e as pessoas acreditaram que ele fosse, de fato a sra. Sotein!), mas suas mentes gargalhavam ao imaginar a face da mulher. Foi um dos melhores almoços de suas vidas.
Madame Lita o abraçou e Sâmia correu para despedir-se também. Ambas levaram o amigo até a porta. Quando Maxil sentiu o vento gelado no rosto, sorriu para as duas. Nunca estivera tão feliz.
Erwank Maxil sentia-se completo.
A CARRUAGEM DE OIV Ó MIDHIR TERMINARA DE DEIXAR A CIDADE E SEGUIA RUMO À "ESTRADA DO MAR SEM FIM" QUANDO PAROU DE VEZ. O cocheiro disse algo, mas teve a fala cortada; o cavalo relinchou e Oiv sentiu o impacto na carruagem quando o animal caiu. O Unagor mal teve tempo de procurar pela sua arma quando a porta da carruagem se escancarou e ele viu a ponta da flecha apontada para ele.
Era dourada como se os raios do sol tivessem sido roubados do ceu para forjá-la.
— Dessa vez, eu vou fazer como deveria.
Drenton disparou contra o peito de Oiv.
HIGOR SENTIU OS OLHARES SOBRE SI ASSIM QUE PÔS OS PÉS NO CAMINHO POR ENTRE O MILHARAL. Ouvia as vozes dos colhedores ao longe, mas ali não havia ninguém. A estradinha seguia por alguns metros e fazia uma curva à direita. O sr. Sotein afastou os pensamentos ruins. Era uma pessoa pacífica e sociável. Um homem conhecido pelo sorriso fácil e a forma amigável com a qual tratava os funcionários sob o seu comando. Aquele medo repentino, em um lugar há tanto tempo visitado, quase a sua segunda casa, não fazia sentido para ele.
Examinou alguns pés de milho, verificou a qualidade das espigas e a situação do solo. Anotou tudo e deu mais alguns passos para frente. A sensação ruim continuava. Abaixou-se para pegar um pouco de terra e teve a impressão de ver um vulto passar pelo meio das plantas.
Seu corpo se enrijeceu.
Ele olhou ao redor.
Não havia nada. A estufa parecia tão ansiosa quanto ele.
Ao olhar para a curva da estrada, viu uma sombra.
— OLÁ?!
Nada.
Repetiu o chamado.
Uma flecha veio como reposta.
TUDO FOI MUITO LENTO. Erwank abriu a porta da casa de Madame Lita, sorriu para ela e Sâmia e, no instante seguinte, estava no chão com uma flecha em chamas atravessada na barriga. As duas ainda tentavam entender o que acontecia quando mais flechas foram disparadas e elas se viram obrigadas a correr escada acima.
Minutos depois, quando tudo pareceu mais calmo, o fogo já tomava o corredor de entrada e parte da sala enquanto os vizinhos corriam para ajudar.
No alto na escada, Sâmia estava paralisada.
DRENTON BAIXOU O ARCO E OLHOU PARA O CORPO DE OIV Ó MIDHIR. E gritou. Gritou tanto ao ponto da neve nos galhos de algumas árvores cair. Depois, gargalhou. Sua vingança estava completa. Desceu da carruagem do Unagor e caminhou em direção à sua própria carruagem. Se tudo tivesse saído como o planejado, a uma hora dessas Erwank Maxil, Lita Delgo e a menina Sotein estariam em uma casa em chamas, enquanto o corpo de Higor Sotein estaria no meio da Quinta Estufa.
Desconfiariam dele, é claro. Mas Drenton não mais se importava.
Cairia, sim, mas levaria cada um deles consigo.
"E aquele velho pensou que um guarda iria me deter...", vangloriou-se ao lembrar-se que foi só mostrar um saco cheio de ouro e o guarda o deixou sair de casa.
"Como é bom viver em um mundo de ganância!"
Observou o sol e calculou o tempo. Dali, iria ter uma conversa com Ricaios Chadon e, por que não?, aproveitaria para visitar os demais traidores que haviam dado o aval para Madame Lita tomar lugar entre eles no Bastião.
Contou as flechas.
Era suficiente para o trabalho. Depois...
Drenton observou o oceano congelado. Não seria fácil deixar Arcéh no caos, mas havia muitos contatos seus no continente que lhe deviam muito. Espalhar pragas nas estufas alheias, destruir algo aqui ou ali, interferir nas leis, subornar pessoas do Conselho de Administração, não eram coisas tão simples de se fazer sozinho.
Sim, eles lhe deviam muito. Sairia daquela ilha, rumaria para longe daquele inverno desgraçado, mas isso só depois de pôr fogo naquela maldita cidade. Com o preparo correto, a quantidade de Manon nas estranhas da Terceira Estufa seria suficiente para causar um incêndio histórico.
"Quero ver a neve abafar o caos.", sorriu e chutou um montinho de neve na beira da estrada.
E, em seguida, caiu.
Seus olhos não acreditavam naquela visão...
HIGOR GRITOU QUANDO A FLECHA ATRAVESSOU SUA COXA ESQUERDA E MAIS AINDA QUANDO SENTIU A PONTA ESQUENTAR E A MADEIRA PEGAR FOGO. Sua pele parecia fervilhar, o fogo lhe corroía de dentro para fora. As lágrimas escorreram pelo rosto e se misturaram à terra. Tentou se arrastar, mas o homem continuava a vir para cima dele, os passos lentos como se degustasse o clamor de desespero da vítima.
O sr. Sotein reconheceu o brasão do pássaro na roupa do agressor.
Os funcionários particulares de Drenton tinham acesso total às Terceira e Quinta Estufas, propriedades de Paberos. Em meio aos devaneios de dor, sorriu ao se lembrar das palavras de Uriel ao convidá-lo para trabalhar ali no intuito de ficar longe de Drenton e da ironia de, anos depois, com a morte do seu tutor, acabar alçado à categoria de funcionário do ex-Unagor.
Lembrou-se de Sâmia e sentiu por não a ver crescer...
Lembrou-se de Margareth e ficou triste por morrer brigado com a esposa...
Quando o homem ficou sobre ele e tirou uma faca do bolso, Higor fechou os olhos e pediu para ser rápido, a dor da flechada já se irradiando pelo corpo inteiro. Ouviu um barulho e depois um baque.
Continuava vivo.
Ao abrir os olhos, viu o assassino caído com a parte de trás da cabeça estraçalhada.
Alguém havia jogado uma pedra.
O sr. Sotein agradeceu aos céus e desmaiou.
Muitos eventos, muitas cenas, muitas situações...
Tudo bem por aí? Tudo certinho?
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