REVELAÇÕES (PARTE 3)
PHIL ANDAVA DE UM LADO PARA O OUTRO PELO QUARTO. Mesmo com todo o esforço para não se deixar abater, a irritação já começava a tomar conta dos seus pensamentos: fazia quase meia hora desde que estava ali e a conversa não avançava. Como das outras vezes, tentava falar sobre outro assunto, conversar sobre amenidades, mas Sâmia conseguiu se desviar e atirar perguntas sobre os motivos dele ter mentido sobre o "tal urso". Cansado, deixou-se cair em uma poltrona.
— Sâmia, de verdade, isso está ficando muito chato! Se eu disse que não vi a porcaria do urso é porque eu não vi a porcaria desse urso! É tão difícil de aceitar?! Por que você acha que eu mentiria sobre isso? Só pra te ver irritada?! Além do mais, no que isso mudaria a uma altura dessas? O Rosan morreu, você está se recuperando, nós estamos bem... Você quer o que, um toque de perigo pra sua aventura?
— VOCÊ SABE QUE EU NÃO SOU DISSO!
— ENTÃO ESQUECE DESSA HISTÓRIA DE URSO! POR FAVOR... NINGUÉM AGUENTA MAIS.
Sâmia encolheu-se na cama. O grito de Phil encheu o quarto e, ele notou, até o pai parara de trabalhar no celeiro e a mãe de mexer nas panelas. Com certeza, escutaram o desabafo. Phil Voggi gritar daquele jeito não era algo comum. Ele estava ofegante, os olhos marejados. Estava tão cansado quanto ela.
— Eu não posso esquecer, Phil...
Como se buscasse pelos restos de sua paciência, o rapaz aproximou a cadeira da cama e pegou a mão livre de Sâmia.
— Você ainda tem mais coisas pra me contar, não tem?
Sâmia virou o rosto. Dias antes de brigarem, Phil perguntou-lhe sobre a história iniciada na casa de Madame Voggi. Ela terminou de contar sobre a aventura na noite de inverno junto à avó, os medos vivenciados naquele momento e o milagre das duas estarem vivas. Mas havia excluído um fato importante...
— Sabe por que eu insisto nessa história do urso? Porque eu sei que ele me queria, queria me matar. Eu vi nos olhos dele que não era um animal qualquer, normal, selvagem. Era ele, Phil. A Nyrill de Arcéh era o urso daquela noite e também do dia seguinte à Noite da Nyrill.
— Dia seguinte... Quando você me chamou para ir até a casa da sua avó?
— Sim.
— Onde o urso entra nessa história?
— Lembra que quando você voltou eu estava caída na escada? Eu vi um urso, Phil. Ele me atacou. Era o mesmo urso.
— Dentro da casa de Madame Lita?
— Sim... Foi um sonho, tá? Não precisa me olhar com essa cara. Mas o fato é que era do mesmo tamanho, com o mesmo olhar. E você sabe disso: você também viu esse olhar e sonha com ele as vezes. E nem por isso eu falei que era mentira!
Phil respirou fundo. Sua paciência já chegara ao limite. Já não bastava o urso, a morte de Rosan, outra revelação, e agora isso? Chantagem emocional com ele? Engoliu em seco e foi o mais direto possível.
— Se você vai usar o que aconteceu comigo e com a minha família para tentar me convencer sobre sua história maluca de urso, eu acho bom a gente parar por aqui. Porque eu vou ficar muito, muito irritado com você.
— Não, Phil, por favor! Eu tenho um motivo.
— Ótimo. Então fale.
— Lembra da nossa conversa, de quando eu te contei o que eu vi naquela noite e como a minha avó sobreviveu? Lembra que eu disse que foi um milagre, que a Nyrill teve pena de nós duas, e tudo isso?
— Sim, Sâmia, eu lembro. E o que tem isso agora?
— Bom... Não foi bem isso o que aconteceu.
O rapaz enrijeceu o corpo.
— Como é que é?
— Você me disse que às vezes sonhava com a Nyrill na forma de um homem...
— Sim, e você me confirmou que eu estava errado. Disse que era uma mulher como o quadro da minha avó.
Sâmia fez uma pausa e apertou a mão de Phil. Não queria perdê-lo. Precisava dele ali, de ouvidos atentos para ela. A partir daquele ponto, cada palavra significaria muito.
— Eu menti, Phil...
— Me-M-Mentiu? Como assim? O que há para mentir sobre isso?
Sâmia olhou para ele talvez como nunca fizera em sua vida e contou ao garoto a história verdadeira ocorrida dois anos atrás: o encontro cara a cara com o deus, a conversa, o pedido pela preservação da vida de Madame Lita, a preocupação com a avó e a vontade sufocante de olhar o deus mais uma vez.
Ao final do relato, Phil estava pensativo. Não parecia irritado pela mentira dela e nem impressionado com a confirmação de que a Nyrill de Arcéh era, de fato, um deus escondido da fúria dos homens. Mas, ao analisar alguns pontos, algo o intrigou.
— Por que você não ficou congelada quando todas as pessoas que estavam na ponte congelaram imediatamente?
— Eu, não sei. Eu nunca pensei sobre isso... Vovó quis me levar junto com ela porque dizia que eu era especial.
— Sinceramente, eu não acho que isso seja um motivo para justificar você estar viva. Todo mundo é especial em algum ponto, não? - Sâmia confirmou. — E mais uma coisa: se o tal urso era realmente ele, porque te atacaria? Ainda falta muito tempo para você cumprir a promessa e, se a gente pensar um pouco, se ele te matasse teria um problema grande, afinal, a promessa era que você levaria Madame Lita ao encontro dele.
Enquanto Phil, empolgado, continuava a confabular sobre dezenas de teorias, a mente de Sâmia viajou para outros problemas. Não tinha dúvidas de que os olhos que lhe farejaram naquela floresta eram os mesmos de dois anos antes. Porém, como ela já tinha analisado por diversas vezes, havia algo de diferente naquele olhar: era um sentimento oposto à seriedade do deus invernal.
Era algo mau, uma serenidade ameaçadora.
De repente, flagrou seu coração apertado diante da possibilidade de trocar o sentimento bom que sentia pelo deus, a emoção da saudade, por coisas ruins como medo, raiva ou ódio, mesmo depois de ter sido atacada. Perdida nesse desespero, Sâmia só voltou a si ao ouvir a frase "me deixar".
— Phil do que você está falando?
— Viu como eu estou com a razão? - o Voggi tinha o semblante carrancudo, os braços cruzados e os lábios apertados. — Você começou a falar sobre esse encontro e saiu do mundo. Eu disse que eu espero que você pense melhor e não me deixe.
— Por que eu te deixaria? Nós estamos... bem. Está tudo resolvido...
Phil sorriu. Seus olhos, contudo, não acompanharam o gesto: havia uma mistura de ansiedade e tristeza em suas pupilas. Apertou a mão de Sâmia e, meio envergonhado, confessou:
— Eu estou com ciumes... de um deus!
— Phil, isso é...
— Não é tão ridículo, Sâmia. Os teus olhos brilhavam quando você falava dele; de como sente ao imaginar que o olhar gelado te persegue; da tristeza que você tem quando olha para a Ponte de Arcéh. E quando o descreve... Parece que você está nas nuvens, falando de um herói, falando de alguém muito especial. Sabe qual o nome disso, Sâmia? Isso se chama saudade.
A garota avermelhou.
— Você diz isso porque nunca o viu... - Phil arregalou os olhos para ela. — Tá, tá, eu sei que você já olhou ele nos seus sonhos! Mas eu digo que nunca pessoalmente, como eu. É por isso que eu estou tão... Tão...
— Encantada.
— Impressionada!
Phil fez um carinho no cabelo de Sâmia e lhe deu um beijo. Ficaram um tempo abraçados até ele quebrar o silêncio:
— Pelo menos eu posso me sentir orgulhoso.
— Por que?
— Ora, se você está comigo significa que eu sou tão incrível que posso até ser o substituto de um deus.
— Phil Voggi você é muito ridículo! - e o empurrou da cama às gargalhadas.
Estavam resolvidos.
Era hora de seguir em frente.
***
#pratodosverem | Descrição da imagem: diante de um fundo com grandes corações vermelhos, vê-se Sâmia e Phil abraçados, ela buscando apoio nos braços dele.
Sim, é hora de seguirmos em frente....
Finalizamos aqui a primeira parte da história. Agora, começamos a contagem regressiva para o "FIM". Fique comigo, confie, mantenha-se firme.
Obrigado pelo apoio nesta jornada!
Desta vez, não teremos imagem de prévia do décimo quinto capítulo, pois há uma surpresa antes dele...
Fique de olho, siga em frente na vida e até breve.
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