REVELAÇÕES (PARTE 2)
#pratodosverem | Descrição da imagem: imagem de uma cela de montaria. Percebe-se arranhões e buracos ensanguentados no couro.
***
UMA PERDA EMBALADA POR RAIVA. Nos dias seguintes, a dor de ter perdido o amigo disputava espaço com a raiva de Sâmia diante dos olhares esquisitos das pessoas por causa da história do urso. Agora filha de um Unagor, a atenção sobre ela triplicara e cada boato ganhava proporções ainda maiores. Por vezes, passava horas agarrada às lembranças da luta como se temesse ser contaminada pela dúvida dos outros ao ponto de acreditar que tudo não passara de um sonho. O alívio definitivo só veio quando lhe contaram que Rosan fora encontrado com as duas patas dianteiras quebradas e cheias de cortes e arranhões "causados pelos espinheiros". Mas, como ela logo concluiu, nenhum espinho seria tão grande e tão forte para causar tamanho estrago no couro de um cavalo.
Já as garras e as presas de um urso...
Contudo, sem ter como provar nada, o jeito foi aguentar os comentários e esperar por uma oportunidade para buscar pela verdade. Com o braço quebrado, a chance de a deixarem voltar ao bosque para "colher vestígios" era nula. A ironia disso tudo era como, mais uma vez, a tragédia impulsionava a mudança.
Achou curioso como o universo tem seu próprio jeito de expor suas opiniões. Quando os arcéh não conseguiram evoluir do jeito mais fácil, veio a morte de Erwank Maxil e toda a história de Drenton. Agora, dentro de sua própria casa, a perda trouxera ganhos: primeiro, Higor e Margareth, empurrados pela iminência de ver a filha presa à uma cama, conversaram. Mas não uma conversa séria, onde cada um expõe suas questões. Uma conversa de dias e dias, iniciada por assuntos do passado, ponto a ponto; dolorida em sua essência, reveladora em seus frutos, os dois se redescobriram como parceiros de vida.
O segundo impulso dado pela tragédia foi a aceitação definitiva de Phil Voggi por parte da Sra. Sotein. Quando apareceu com Sâmia nos braços, o rapaz passou de traste a herói. Mesmo com todas as ressalvas contra o garoto e sua família, Margareth não pode ignorar o simbolismo daquele gesto. Não era apenas um "amor banal", como ela dizia aos quatro ventos. Era união, completude; um encaixe de almas. Com todas as honrarias, Phil ganhou permissão para visitar Sâmia quantas vezes quisesse e, o mais importante, a benção para o namoro. O burburinho em Arcéh falava também de pedidos chorosos de perdão pelos anos de destrato ao garoto, mas, para manter a dignidade da sra. Sotein, essa parte foi abafada das fofocas.
Em tese, tudo estaria perfeito.
Isso se não fosse a raiva de Sâmia contra o Voggi.
Desde a última visita, as coisas só haviam piorado. A situação estremeceu ainda mais quando, em uma das "conversas sobre o urso", como Phil apelidara tais momentos, ele levantou a questão se a bebida tomada por Sâmia naquela noite não teria afetado sua cabeça e feito a garota imaginar toda aquela história bizarra ou revivido o "urso da Terceira Estufa". Se até ali as discussões entre os dois não passavam de "brigas bobas de casal", as insinuações de Phil extrapolaram os limites da Sotein e as coisas acabaram em uma tarde de choro e rompimento.
— Sabia que isso só piora as coisas? - comentou a sra. Sotein alguns dias depois enquanto ajudava Sâmia a se banhar. — Se você ficar guardando essa raiva toda, vai demorar mais ainda para se recuperar.
Sem ter a filha para ajudar nas tarefas de casa, ela mal tinha tempo para descansar ou interagir com alguém. Por isso, aproveitava momentos como aquele para conversarem e apararem as arestas da relação mãe e filha. O acidente deixara a sra. Sotein com um peso na consciência e, desde então, tornara-se mais complacente com o gênio da garota. Até conseguiu se manter calma durante aqueles dias, contudo, seu sexto sentido não a enganava. Engolira muita coisa pelo bem de Sâmia, mas as explicações sobre aquela noite e a relação disso tudo com as recentes brigas do casal ainda era algo enevoado na mente da mulher.
— Ele está aí?
— Sim, está. Você o expulsou, mas ele continua vindo todos os dias para saber notícias suas e esperando que vocês voltem a se falar.
— Se ele parar de ser tão cabeça dura, talvez a gente posso tentar de novo.
A secura na voz da menina denunciava o nível alcançado pelo rancor. Margareth agradeceu por esfregar as costas da filha e ela não ver seu sorriso: aquela teimosia, o jeito como defendia suas posições, era muito parecido com o dela. A sra. Sotein o herdara de Madame Lita e agora o percebia na filha. Era engraçado. "Phil, meu querido, você terá uma companheira daquelas...".
— Eu posso fazer uma pergunta?
— Sim, pode...
— A briga de vocês dois tem algo a ver com o que aconteceu naquela noite? – a pergunta de Margareth soou tão displicente quanto a espuma em suas mãos. Mas aquele era o momento ideal para juntar algumas peças soltas daquele tabuleiro. Pelo relato de Higor, Rosan se assustara após um barulho e fugira do celeiro. Sâmia seguiu o rastro dele até a floresta e o encontrara, mas, devido a nevasca, os dois se perderam e caíram em um barranco na beira da estrada. A sorte deles foi Phil, por "ironia do destino", como enfatizara o sr. Sotein, ter decidido caçar por ali e esbarrar com eles quando voltava para casa.
Caçar no meio de uma nevasca...
— Então, tem ou não tem a ver?
— Mais ou menos. – a menina respondeu com um fino de voz.
— Mais ou menos... Está certo. É assunto de vocês. Eu... Eu entendo. É, sim, eu preciso entender e largar de me intrometer na sua vida de forma tão forte. – jogou água na cabeça de Sâmia e lavou o cabelo da filha. — Eu posso fazer só mais uma pergunta?
— Sim, mãe, a senhora pode!
— Você sabe o que é licor de quatro ervas?
— Ãh? É claro que não! A senhora sabe que eu não bebo. Pra que eu ia me importar com nome de bebida? Por que essa pergunta agora?
— Não, por nada... É coisa minha... Besteira!
Ajudou Sâmia a se enxugar e a se vestir e a acomodou na cama; verificou se estava confortável e se os travesseiros estavam bem ajustados debaixo do braço quebrado. Passou a mão no seu cabelo e deu-lhe um beijo na testa.
— Eu vou mandar o Phil subir.
— Mãe, eu não quero falar com ele!
— Então, não fale com ele. É muito simples. Fique calada, finja que dorme, cantarole uma música, não sei. Mas eu vou mandar ele vir falar com você, sim senhora. Você não o deixa subir e quem é obrigada a ver aquela cara de sofrimento todos os dias sou eu. Não, já chega! Ontem mesmo ele se ofereceu para me ajudar na cozinha e chorou em cima da comida. Não... Se eu passar mais uma semana ouvindo as lamentações dele, eu vou enlouquecer! Vocês vão ter que se resolver de qualquer jeito.
— Mas ele não me ouve...
— Tchau, Sâmia.
A sra. Sotein acenou e saiu. Desceu até o celeiro onde Phil e Higor conversavam e falou com o rapaz. O rosto dele se iluminou e ele correu para dentro da casa. Agora, era apenas entre a filha e o Voggi. Já fizera sua parte. Enquanto ela e o marido observavam o entusiasmo de Phil, Margareth levou a mão ao bolso do avental e tirou de lá um pequeno frasco.
— Você sabe o que é isso? – mostrou o objeto ao sr. Sotein.
— É um... Frasco. Muito pequeno, por sinal.
— É um frasco de licor de quatro ervas, Higor.
As feições do homem se abriram e um largo sorriso preencheu o seu rosto.
— Ainda fazem isso?! Minha nossa, faz tanto tempo... Quase vinte anos não é?! Eu nem sei mais a receita. Se lembra quando eu te dei um no nosso primeiro encontro na...
— ... estufa de Naus. – completou Margareth com um olhar entre a seriedade e o riso. Higor pareceu murchar. — Higor, você achou mesmo que eu ia cair na história sobre a fuga de Rosan? Rosan era um cavalo tão firme que a montanha poderia despencar que ele continuaria calmo. E quem, em sã consciência, sairia naquela nevasca para caçar na floresta? Eu tenho certeza que a loucura dos Voggi tem limites até para isso.
O sr. Sotein apertou as mãos uma contra a outra.
— V-Você está zangada?
— Sinceramente? Não. Ela está bem, ao menos. E você sabe o que o licor significa.
— Sim, é a prova de que ele realmente a ama. Mas eu pensava que todo esse ritual de beber o licor, enfrentar a neve e se encontrar nas estufas tinha acabado. É bom saber que as boas tradições continuam firmes.
— Ora, faça-me o favor, ela poderia ter morrido. Esse licor deixa o corpo fervendo e a mente pior ainda. Lembra da primeira vez que nós tomamos? Eu pensei que a estufa era uma bola de neve gigante!
Higor tentou segurar o riso, mas não conseguiu e caiu na gargalhada. Logo, Margareth também deixava-se libertar da seriedade e se segurava para não cair. Lembraram-se daquela noite há muitos, muitos anos e reviveram as loucuras dela na tentativa de fugir da "bola de neve". Levaram um tempo para voltarem a si e respirarem normalmente.
A sra. Sotein enxugou as lágrimas e prosseguiu.
— Para nós foi só uma bola de neve, mas Sâmia deve ter visto algo horrível pra chegar a assustar até o Rosan.
— É. Deve ter sido um pesadelo daqueles.
— Mas está tudo bem com ela. O pior já passou. É nisso que devemos nos focar agora.
Margareth o abraçou e rumou para a cozinha. Sozinho no celeiro, Higor se recordou do estado das patas do cavalo. Caminhou para o fundo do celeiro e subiu para o mezanino. Buscou entre as coisas atulhadas até encontrar a cela de Rosan.
O sr. Sotein a ergueu contra a luz e soltou um suspiro.
Estavam ali os rasgos profundos no couro, como vira antes. Porém, nas extremidades, quase escondidos pela borda reforçada, havia um conjunto de furos fortes o suficiente para perfurar a cela.
Eles tinham o tamanho de presas bem grandes.
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