OS TRÊS ANCIÃOS (PARTE 2)
O SEMIDEUS REPAROU À SUA FRENTE E AJOELHOU-SE. Ao seu lado, cansados, mas inteiros, o Outono e o Verão fizeram o mesmo. Gyen conseguira expulsar Ladel do corpo de Yubay, mas não devido às suas próprias forças. No exato instante em que o cajado tocou no peito da mulher, tudo escureceu e Gyen pensou que fosse o fim. Sentiu o coração da deusa silenciar e ouviu os gritos do irmão. Depois, despertou com uma energia grandiosa em torno dele. O poder impediu a queda e o trouxe de volta à vida. Se não fosse pela intervenção do Conselho, os três estariam mortos.
Na frente dos deuses, três tronos de pedra alinhavam-se lado a lado, iluminados por dois Sois e uma Lua; árvores colossais brotavam pelas bordas da montanha e cresciam até se perderem no ceu estrelado, como se sustentassem o universo; um tapete de grama orvalhada se desenrolou em todas as direções e o perfume do orvalho se espalhou com o vento; no ceu, duas galáxias colidiram e cores arrebentaram no horizonte. A luz emanada da explosão revelou, sentados em toda imponência, Agnu, Fesdo e Celbo.
O Tempo, a Chuva e a Natureza.
#pratodosverem | Descrição da imagem: veem-se os três anciãos. Agnu (o tempo), Fesdo (a chuva) e Celbo (a natureza). As descrições de casa um estão ao longo da narrativa.
***
— Vocês nos envergonham. – disse o Tempo com sua voz intimidante. Com um leão branco deitado aos pés, Agnu era um ser gigantesco e sem forma definida. Seu corpo assumia formas diferentes conforme o peso das culpas e das experiências da pessoa que o olhava. — Nos envergonharam no passado e nos envergonham hoje, mas não permitiremos que venham a nos envergonhar no futuro.
"O erro de Gyen dividiu a magia e trouxe o mal para o mundo, ferindo um dos pilares. Por sua vez, Ladel agravou o erro ao matar Déa e dissipar ainda mais o poder. Quebraram os pilares do equilíbrio e trouxeram o caos a tudo o que passamos tanto tempo para construir, cultivar e colher. Vocês três, deuses maiores, guardiões da magia antiga, se deixaram embeber pelos sentimentos humanos e, cada um à sua maneira, renegaram ao próprio privilégio de suas posições. Vocês mancharam as regras do Universo. O erro maior, portanto, cabe aos três e os três serão punidos."
— Mas eu sou uma vítima disso tudo! Eu não fiz nada! – protestou o Outono.
De para cobrir sua nudez, a Natureza ergueu a voz.
— Exatamente, Yubay: você não fez nada. Poderia ter feito, mas preferiu não fazer porque também está sedenta pelo poder. No fundo, esperava que a magia de Déa voltasse para você. Engane aos seus iguais, Outono, não a nós. Suas lágrimas, seu desespero, sua desolação e tristeza, são frutos mais de egoísmo do que da perda de sua filha. A sua justiça é apenas em benefício próprio, Yubay, e aqui ela não vale de nada. – recriminou Celbo.
Os olhos de Yubay foram tomados pela mesma sombra de quando descobrira a verdade sobre Gyen. O vento até então tranquilo desde a chegada dos Anciãos mudou de direção e, mais forte, arrancou alguns galhos das árvores. No entanto, o espetáculo do Outono durou pouco: com um movimento rápido, Fesdo fez o lugar voltar ao normal.
— Você terá a ousadia de nos desafiar, Yubay? – alertou o ancião com sua voz rouca. Apoiado em uma bardiche*, Fesdo tinha barbas e cabelos longos e de cores nubladas que mais pareciam um aglomerado de nuvens dispostas a uma tempestade. — Seus feitiços só assustam humanos, bichos e demônios, lembre-se disso. Diferente deles, nós não recuamos. Não se esqueça de quem somos e nem de onde você se encontra. Guarde sua insolência quando estiver com os menores como você.
* NOTA DO AUTOR: Bardiche é um tipo de lança com uma lâmina tipo facão (65 cm) anexada à ponta de uma haste (em média com 1,5m de altura) por meio de dois sockets (encaixes): um na ponta da haste e outro menor, na base da lâmina.
Agnu retomou a palavra.
— Atitudes insensatas como essa nos obrigam a agir como jamais fizemos. Não há reversão para o desequilíbrio que vocês causaram e o mal já não pode ser extraído sem causar perdas. Vocês abriram um caminho sem volta que todos deverão trilhar.
— Por isso, decidimos que apenas um controlará todo o poder... – complementou Fesdo.
— E, como não podemos subjugar as forças do Universo e do Destino e resolver a questão agora, a decisão, infelizmente, virá pela força. – finalizou Celbo.
Ladel respirou fundo. Gyen se adiantou em falar.
— Senhores anciãos, eu não tenho mais forças para isso. A minha magia está no fim.
— Suas irresponsabilidades geraram consequências, semideus. – bradou Agnu. — E consequências trazem aprendizados. Se você errou e ainda não aprendeu, será o primeiro dos quatro a tombar pelo caminho.
— Quatro... Como assim quatro?
Fesdo se virou para ele, os olhos tomados por um brilho estranho.
— Você quebrou a lei primordial e dividiu a magia do inverno em duas partes. Por mais injusto que pareça, Gyen, você impôs essa condição à menina. Sua irresponsabilidade definiu o destino daquela criança. A magia que você vem perdendo está indo para ela e ambos, agora, são semideuses.
Ladel prendeu a respiração ao ouvir aquilo. Cansado após a luta com Yubay, estivera calado até então, mas aquelas informações lhe trouxeram uma nova energia. Com Gyen enfraquecido e metade do poder invernal nas mãos de uma criança de cinco anos, o cheiro da vitória pareceu cada vez mais doce. Virou-se para o Conselho e, esforçando-se para esconder a alegria em sua fala, lançou a pergunta.
— Estamos em guerra, então?
— Sim. – respondeu Agnu.
Ladel fez uma reverência e se retirou. Tinha pressa. Ao observar a partida do deus, Yubay também tratou de desaparecer em meio a um turbilhão de folhas amareladas (ela sabia muito bem quem seria o primeiro alvo de um ataque do Verão). Do mesmo modo repentino como apareceram, os três anciãos desfizeram o Conselho e sumiram. Aos poucos, a montanha começou a retomar sua normalidade e o silêncio voltou a reinar.
GYEN FICOU SOZINHO EM MEIO AO VAZIO DO CUME DA MONTANHA. Mesmo ferido e ciente das limitações, se preparou para correr até Arcéh. Estava pronto para partir, quando ouviu uma risada. Ao se virar, Fesdo vinha ao seu encontro.
— Semideus tolo. Você acha mesmo que conseguirá deter os outros dois nesse estado?
— Eu... Eu não tenho escolha, tenho?
— Nós não tivemos escolha, Gyen. – corrigiu Fesdo. O Ancião parou a alguns metros do semideus. — Pelas leis, a divisão da magia é pior que o assassinato de um deus. Para o Universo, a atitude de Ladel de matar a Primavera é compreensível nos termos de uma disputa; o seu erro, contudo, pode trazer prejuízos bem mais graves e não apenas a vocês, deuses, como a nós também.
— Leis... - desdenhou Gyen. – Eu tanto segui as leis dos senhores que só agora, perdendo meus poderes, um semideus destruído, eu me sinto livre. Não me sinto mais obrigado a ser tão sereno, tão correto. Já Ladel, que sempre zombou dessas mesmas leis, agora é o que mais tem vantagem nisso tudo.
— Ter vantagem em algo não significa ganhar ao final, semideus.
— O que o senhor quer dizer?
— Eu sou o mais velho dos Anciãos, Gyen, e minha imortalidade está chegando ao limite. Por isso, não ligam muito para minhas opiniões e nem para o que eu faço ou deixo de fazer. São os pequenos prazeres ao fim da Existência, se você me entende. Eu já passei por muita coisa, Gyen, e digo que, entre a sua insensatez, a violência de Ladel e a rebeldia de Yubay, prefiro confiar em você para tentar resolver tudo. – uma fagulha saiu da ponta da bardiche de Fesdo e voou até as mãos do semideus. A magia ganhou forma física até revelar-se como uma pequena bolsa de pano.
#pratodosverem | Descrição da imagem: cena em que Gyen, o deus do inverno, ferido e abatido, recebe um presente de Desdo, o ancião da chuva. Há uma aura luminosa e colorida ao redor dos dois.
***
— Isso o ajudará.
Gyen abriu a bolsa e estranhou ao ver apenas bombas de tinta como aquelas usadas durante as festas do Senbo em Arcéh. Procurou uma explicação no rosto do Ancião, mas este apenas voltou a sorrir e aconselhou.
— Não se preocupe. Elas terão o seu momento para serem usadas. Agora renasça, Gyen, e tenha em mente que tudo o que for feito terá um motivo no fim de tudo.
— E-Eu não entendo.
— Ah, que pena! Você me parecia bem mais esperto quando era um deus. - com um sorriso, Fesdo girou a lâmina e cortou a cabeça de Gyen.
O semideus caiu na escuridão até pousar em meio a uma floresta ressecada. Desnorteado, caminhou por entre os troncos e quase não acreditou ao conseguir se situar: mais adiante, estava uma velha estrada de terra e, ao fim, a entrada continental para a Ponte de Arcéh.
Obrigado pelos votos, obrigado pela companhia.
É hora de seguirmos para o penúltimo capítulo.
É hora das últimas decisões...
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