OIV Ó MIDHIR (PARTE 5)
#pratodosverem | Descrição da imagem: vê-se a personagem Sâmia deitada na relva, em meio ao capim alto. No céu, veem-se cores que se mesclam entre o azul e o amarelo, além de algumas linhas que de longe parecem revoadas de pássaros, mas na verdade fazem parte do teto da estufa.
***
TESTEMUNHAR A MARAVILHA DAQUELE CÉU DE FOLHAS ERA OUTRA EXPERIÊNCIA SE VISTA DO MEIO DA PLANTAÇÃO. Sâmia embrenhou-se por entre as plantas, já esquecida da sua busca pela tal senhora. Procurou-a pelo primeiro piso da casa e chegou a perguntar aos funcionários da estufa. Não havia vestígios da mulher e, após minutos de caminhada pelas linhas de plantio, aceitou as duas respostas mais plausíveis: ou a mulher estava morta ou a sua cabeça, ainda perturbada pelo efeito da árvore, criara uma ilusão. Deixou-se cair em uma área de grama e observou o alto.
As folhas do teto não eram estáticas como telhas. Pelo contrário, moviam-se em um fluxo como se fossem correntes marítimas ou, para alguns com a imaginação mais fértil, cobras. Encantou-se pela quantidade de tonalidades e formatos das folhagens, mas desistiu de tentar enumerá-las quando a contagem começou a lhe dar sono. Ficar ali transmitia calma e o gramado parecia afagar seu corpo e fazer de tudo para deixá-la confortável.
Fechou os olhos e permitiu-se levar pelos aromas da terra e pelo acalanto da brisa. Sentia-se em paz como há muito tempo não estivera. De repente, imaginou-se ali com Rosan, o cavalo liberto dos arreios e solto naquele campo. Ela correria atrás dele de braços abertos em uma disputa contra o vento; o perfume do cabelo de mãos dadas com o aroma frutífero; a mente vazia de familiares, amigos, Unagor, Bastião ou invernos.
Apenas ela e Rosan.
Apenas uma menina e seu cavalo, sem fardos para carregar.
Queria voltar a ser criança...
Ouviu o estalar das plantas e apoiou-se sobre os cotovelos para ver quem se aproximava.
— Sabia que, dentre tudo o que me foi deixado, é deste céu que eu tenho mais orgulho?
— É bonito. Dá vontade de ficar aqui para sempre.
— Sim. O fluxo das folhas parece obrigar nossos pensamentos a também fluírem; a caminharem para algum lugar ao invés de permanecerem martelando em nossas mentes. - o Unagor deitou-se ao lado da menina e apontou para um canto da abóbada. — Você já olhou a abertura?
Sâmia voltou sua atenção para aquele ponto. Da casa vira aquelas aberturas entre as folhagens, mas agora, mais perto delas, notava o quanto eram grandes. A correnteza de folhas desviava-se delas como as águas de um rio desviam das pedras pelo caminho. Acima da magia, estava o céu "comum", preto e pontilhado de estrelas.
— Está... Está de noite?
— Sim, criança.
— Mas... Aqui está claro como se o sol estivesse no alto...
— Aqui nunca anoitece. A magia dos antepassados dos Ó Midhir criou essa espécie de bolha; um pequeno pedaço de terra onde as coisas ainda são puras. Mas está acabando. Uma hora todas as bolhas estouram, não é?! Por mais bem cuidadas que sejam... - um sorriso manchado de tristeza somou-se à frase. — Em alguns anos esses buracos crescerão até o ponto de todas as folhas terem sido levadas pelo vento. Até a magia tem hora para acabar.
— A magia das matriarcas...
— Ah, então você a viu! Fico feliz por isso.
— Quem é ela?
— Aed Ó Midhir, a última matriarca destas terras. Erwank estava muito agitado quando me disse que você andava por aí "vendo coisas". - Oiv gargalhou. — Ele chegou a contar os charutos na caixa para ver se você não tinha fumado alguns...
— O sr. Maxil é terrível...!
— Não, não. Ele só está preocupado. Como um avô faria à uma neta querida.
Sâmia sentiu o rosto esquentar.
— Você... Você acha mesmo que ele fará a vovó feliz?
— Amores de verdade têm esse dom, criança. Eles conseguem curar dores antigas sem esconder as cicatrizes; sem mascarar ou criar falsidades.
Os dois observaram o fluxo em silêncio, cada um perdido nas próprias reflexões.
— Por que a magia está acabando?
— Porque, com a morte de Madame Ó Midhir, não sobrou mais nenhuma mulher da família para dar continuidade a isto tudo. Este é um tipo de magia que depende da energia de um ato verdadeiro de entrega; de desprender-se de si e dividir-se para o outro.
— Quem consegue algo assim?
— As mães de verdade, criança. Quando uma mulher da linhagem Ó Midhir engravida, a magia dela se divide e passa para o feto. Ao falecer, sua metade une-se à do filho e prossegue para o próximo ciclo.
— Espera, isso quer dizer que você tem a magia.
— Não. - perante a dúvida estampada no rosto de Sâmia, Oiv prosseguiu, os olhos voltados para as correntes folhosas no alto. — Nos achamos muitos espertos, não é? Mas a natureza é ainda mais. Ela não esconde as coisas como nós fazemos; ela não julga. Eu nasci sem magia alguma.
— Mas como? Você nasceu... menina!
— Uma casca não diz nada sobre seu conteúdo, criança. E a magia nos conhece melhor do que qualquer estudo; melhor do que qualquer suposição. Mesmo antes de eu compreender quem eu era, a natureza já sabia sobre a essência do meu coração.
— Sua mãe não teve outras filhas?
— Minha mãe morreu no meu parto e, desde o meu primeiro dia de vida, os buracos começaram a surgir. Antes eram apenas dois, depois seis e, com a morte da minha avó há cinco anos, passaram para quinze.
— Vo-Você não se sente culpado?
Oiv pensou por um instante e olhou para a garota.
— Não, criança. Madame Ó Midhir sempre me disse... "Se a felicidade é genuína, se não fere ninguém, não se arrependa do esforço para conquistá-la". Eu poderia forçar. Poderia renegar a natureza; tentar ter um filho para ver se conseguia "enganar" a magia. Mas valeria a pena deixar de ser quem eu sou para satisfazer os desejos alheios?
— Não...
— Há muitas perdas em nossas jornadas, Sâmia Sotein. Muitas cicatrizes e muitas batalhas. Mas de nada vale se você viver trancada dentro de si, com medo dos outros. De que adianta todos os tesouros de uma vida se você tem medo de encarar a si mesmo? Tem vergonha do próprio brilho? - o Unagor sentou-se e ficou cara a cara com a garota. — Eu vejo nos seus olhos, sinto na sua respiração, que você guarda muitas coisas; coisas que nunca pensou serem possíveis. Ouça-me, criança: não desista. Não deixe que tentem lhe fazer desistir.
— E se eu mesma quiser desistir?
— Faça-o por si, mas nunca pelos outros. Faça-o segura de que está fazendo porque você é dona dos próprios atos. Não por um pai, por um marido ou por qualquer outro. Não deixe que eles falem por você; não demore a despertar. Não cometa o meu erro. Grite quando for preciso.
Sâmia viu-se abraçada pelas lágrimas do Unagor. Por sobre os ombros de Oiv, ela teve a impressão de mais um buraco surgir na abóbada de folhas.
Oiv é um personagem que surgiu de um modo muito natural. Por isso o considero tão verdadeiro: ele veio pronto em uma madrugada de inspiração.
Foi um presente.
É muito bom compartilhá-lo contigo! 😊
Obrigado pelo apoio.
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