O SINO DA TORRE DE ARCÉH SOOU SETE VEZES E FEZ O CORAÇÃO DE SÂMIA DISPARAR. Phil só lhe esperaria por mais duas horas, até o primeiro toque da Torre Norte. Por sorte, a velha Estufa de Naus ficava perto da casa dos Sotein. Se deixasse a estrada de lado e cortasse caminho pelo bosque, chegaria lá antes do oitavo badalar da Torre de Arcéh.

Verificou o tempo. Como previra, a correria da mãe para trancar as portas e janelas era mais por conta de paranoia do que motivada por alguma nevasca. A neve caia em certo volume e chegava a se acumular; nada tão devastador quanto a sra. Sotein alarmou. Sob o ponto de vista da garota, tudo estava tranquilo.

Levantou-se da cama e abriu uma fresta da janela, mas se arrependeu: o vento entrou sibilante, desarrumou a coberta da cama e apagou a lamparina. Sâmia lutou para afastar a onda de pensamentos. "Isso não significa nada. Está tudo bem...". Sentiu certa dificuldade em respirar: o ar parecia impregnado por pedaços de gelo. Abriu uma gaveta e pegou mais um cachecol. Ironicamente, era um dos cachecóis de lã feitos pela avó.

Estava pronta.

Foi para debaixo da cama e tateou pelas tábuas do piso até encontrar o ponto certo. Puxou-o. O frasco dado por Phil parecia brilhar no escuro, o líquido amarelo borbulhava como se ansiasse para ser ingerido. Retirou a rolha e o cheirou. Era indescritível; uma mistura de algo mofado, cheiro de terra molhada e coisas putrefatas.

"Phil Voggi, se nós sairmos dessa, pode esperar: eu vou te matar! Ah, se vou...".

Apertou o nariz e bebeu.

Seja por tê-lo feito deitada debaixo da cama, seja pela espuma viscosa formada pelo líquido, Sâmia quase vomitou. Aquela coisa ia e voltava à sua boca como se nem o estômago e nem a língua quisessem recebê-la. Mas, ela notou, a cada subida e descida, seu corpo parecia esquentar ao ponto de o suor escorrer e ela tirar um dos casacos. Guardou o frasco vazio no esconderijo e levantou-se. Sentia-se revigorada, quente. Apesar de parecer ter comido um gambá, seu corpo estava em alerta. Sem perder mais tempo, pulou a janela, caminhou pelo telhado e parou em frente à janela vizinha. Lá dentro, seus pais dormiam quietos como se a briga nunca tivesse acontecido. Sâmia levou a mão ao vidro. As palavras da mãe vieram-lhe à mente. A garota sabia o quanto seria difícil recuperar a relação entre as duas.

Relações familiares são como peças de porcelana: bonitas e raras; vistosas e louváveis. Mas, ao menor trincar das peças, mesmo após um conserto, a rachadura continua aparente.

O vento ficou mais inquieto.

"Não vai acontecer nada com eles.", a noite lhe sussurrou.

Desceu por uma das pilastras cheias de hera e rumou para o celeiro. Arrependeu-se por não ter tido a ideia de selar Rosan horas antes. Agora, perderia mais algum tempo na tarefa. Quando abriu a baia do cavalo, ela levou um susto: Rosan estava selado. E, como se não bastasse, com ferraduras novas e a manta usada para quando cavalgavam pela neve. Em uma balança entre a incredulidade e a gratidão pela sua sorte, montou e saiu para a estrada. Metros depois, Sâmia e Rosan desapareceram dentro da névoa.

Se a garota olhasse para trás, veria Higor na janela. O sr. Sotein acompanhou a partida da filha e pôs a mão nas marcas de dedo deixadas por ela do lado de fora do vidro.

— Algum problema? – perguntou Margareth, sonolenta.

— Não, não. Só vim ver se a janela estava bem trancada. Parece que o frio está aumentando. - e voltou a se deitar na torcida para não voltar a dormir.

O sr. Sotein não gostava de ter pesadelos.

***

#pratodosverem | Descrição da imagem: indo de encontro a uma estrada ladeada por árvores congeladas, Sâmia cavalga em meio à nevasca rumo à escuridão.

E Sâmia conseguiu fugir...

Prepare-se para acompanhar a cavalgada rumo a estufa de Naus - e as consequências desse ato.

Obrigado pelos votos e comentários.

Até o décimo terceiro capítulo...