O SEXTO SENTIDO DAS MÃES (PARTE 4)
#pratodosverem | Descrição da imagem: vê-se uma lareira com fogo crepitando em seu interior e um feixe de luz caindo para fora.
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CADA ARCÉH TINHA SUAS MANIAS INDIVIDUAIS, MAS ALGUMAS DELAS ERAM TÃO COMUNS A TODOS QUE SE TORNARAM UM COSTUME GERAL. Uma dessas era a característica de demorarem para decidir por fazer algo. Eram apegados às tradições e conhecidos por evitarem mudanças bruscas em suas rotinas. A possibilidade, por exemplo, de um arcéh chegar um dia e, do nada, decidir pintar a fachada da casa era algo impensável e isso explicava muito o porquê de tanta estranheza em relação à Madame Voggi. Mas, assim como evitavam as mudanças, também temiam não fazer parte do grupo; temiam se sentirem excluídos da sociedade. Então, bastava um vizinho dar o primeiro passo e logo toda a cidade fazia o mesmo.
Foi só o barulho das marteladas se iniciar na casa dos Sotein para toda a colina explodir em uma orquestração de bater, serrar e perfurar madeira para proteger as casas. Era sempre assim: uma casa desconfiava da ventania, o burburinho se espalhava e todos começavam a se preparar para o pior. Contudo, dessa vez "o pior" nada tinha a ver com uma possibilidade real de nevasca e sim com a desconfiança de Margareth Sotein em relação à filha.
Sâmia procurou manter a concentração. Pelos seus cálculos, antes do terceiro badalar da Torre de Arcéh, por volta das sete da noite, toda a cidade já estaria trancafiada dentro de suas casas. Mesmo com a possibilidade de Medebew Voggi também trancar as portas e as janelas da sua casa, Sâmia não tinha muita certeza se isso impediria Phil de ir até as estufas. O rapaz herdara o gosta da avó pela aventura e uma nevasca, perigosa como fosse, não era um obstáculo para ele.
A garota estremeceu. Não havia como desmarcar o encontro.
Sâmia precisava dar um jeito de ir.
Olhou em volta. Todas as portas e janelas do andar de baixo já estavam reforçadas com tábuas e correntes. Quando Margareth falara em "trancar tudo" ela não estava para brincadeira: havia ripas de madeira na vertical e na horizontal pelas portas do andar térreo, com as correntes como serpentes em torno de cada pedaço - tudo isso preso com mais correntes às vigas de pedra da varanda para servir como contrapeso. Para entrar naquela casa, o vento deveria carregar um meteoro e jogar contra as portas e talvez nem assim obtivesse algum sucesso.
Os pais arrumavam o celeiro e logo subiriam para os quartos no primeiro andar. Se ela não causasse uma distração. acabaria presa dentro de casa enquanto Phil se arriscaria em vão. Pegou uma das lamparinas e verificou a quantidade de querosene: pouca, mas suficiente. Certificou-se de que os pais estariam ocupados no estábulo e foi para a sala. Agradecida pelo chão, paredes e teto serem de pedra com pouca madeira, derramou o óleo sobre um dos tapetes perto da lareira e deixou o fogo fazer o resto do trabalho.
"Eu não acredito que eu estou fazendo isso... Phil Voggi, eu vou te matar!".
As chamas passearam pelo tapete e uma leve fumaça tomou a sala. Ao menos, a desculpa cairia bem. No último inverno, quando tinha apenas três anos, ela inventou de atiçar o fogo da lareira sozinha e acabou incendiando uma cortina. Quatro anos depois, tentou fazer a mesma coisa e acabou com os dedos chamuscados. Desde então, ficou proibida de acender a lareira quando estivesse desacompanhada de um adulto. Acontecer a mesma coisa de novo não era assim tão improvável, concluiu a garota.
Voltou para a cozinha esperou.
Não demorou muito e a armadilha deu o bote: ao entrar em casa, a sra. Sotein se pôs a gritar em meio à fumaça. Pegou uma toalha e começou a bater contra as chamas enquanto dizia impropérios e chamava pelo marido e pela filha. Sim, talvez tenha sido um exagero armar um incêndio, mas Sâmia ficou orgulhosa: o fogo, como se soubesse do plano da menina, fez o favor de incendiar apenas o tapete e causar o máximo possível de fumaça. Com isso, o resto dos móveis ficaram intactos.
Isso, é claro, se não considerasse a grossa camada de fuligem preta em cada canto da sala - e a destruição causado no psicológico da mãe.
Margareth encontrou Sâmia na cozinha e partiu para cima dela. Agarrou-lhe o braço, deu-lhe um tapa no rosto e a sacudiu até suas forças mingarem e ela largar a filha no chão, às lágrimas. Passou as mãos pelo rosto e socou a mesa. Não acreditava naquilo tudo. Era o ápice da falta de respeito; o ápice da teimosia. O peito da sra. Sotein arfava, a raiva em suas veias fazia o sangue lhe fugir da face. Tinha certeza de que aquilo não fora um simples descuido. Encarou a garota. Por um lado, sua vontade era continuar a bater em Sâmia; por outro, a mente girava em busca de uma atitude com um pingo de sensatez. Sentia-se exausta. Exausta de buscar o melhor e todos a criticarem por isso.
— Suba e não me apareça mais na vista. - sua voz falhava e expunha o controle feito por Margareth para impor algum limite ao ódio. O sr. Sotein acabara de entrar em casa. — Se eu te ver de novo esta noite, Sâmia, eu prometo que você vai se arrepender de ter ousado fazer isso. E se você interferir, Higor, dormir no celeiro será o menor dos seus problemas.
— Margareth, foi só um acidente! Não é a primeira vez que isso acontece! Eu mesmo já quis tirar essa lareira daí e fazer outra em um espaço mais recuado, mas você nunca quis.
— Ah, a culpa é minha agora? Eu sou o problema?
— Margareth...
— Sua filha acaba de causar um incêndio porque ficou com raiva de eu ter estragado os planos dela... E a culpa é minha!
— Querida, eu não quis...
— Mas disse, Higor! - a mulher largou-se em uma cadeira e gritou para Sâmia engolir o choro. — Sabe quantas vezes isso aconteceu, Higor? Duas vezes! E a última faz quase dez anos.
— Sim, eu sei. Mas... Por favor, Margareth, você não acha que a Sâmia teria coragem de incendiar a casa por birra! - e acrescentou: - Acidentes acontecem.
Foi o estopim para os limites serem quebrados. Margareth explodiu e partiu para cima do marido. Higor conseguiu segurá-la pelos braços, mas isso não evitou o chute em sua virilha. A sra. Sotein se virou para a menina, os olhos em chamas.
— Quer saber de uma coisa, Sâmia? Pode ir. É, pode ir! Eu não sou a chata, a paranoica? Pois então: você não quer fazer alguma loucura no meio de uma nevasca? - foi até a porta da frente e a escancarou. — Pode ir. Vá! Eu não me importo! Só me faça um favor: se você morrer, não ouse voltar para me visitar.
E rumou escada acima.
Sâmia ajudou o pai a se recompor e a limpar a casa. O silêncio entre os dois só era cortado pelo barulho das marteladas nas tábuas; o sr. Sotein não lhe dirigiu a palavra em momento algum. Tentou falar com ele, puxar assunto. Não houve mudança. Uma preocupação veio-lhe à mente: nunca vira a mãe agir daquele jeito, sem controle. De fato, nunca havia levado um tapa de alguém e não esperava que a primeira vez fosse pelas mãos de alguém por quem nutria algum afeto.
Dor maior era ver a situação entre os dois.
Higor e Margareth brigavam como qualquer casal, mas nada considerado muito grave. O gênio da sra. Sotein parecia não combinar com o jeito compreensivo dele, porém, nunca haviam chegado ao ponto da agressão como naquela noite. Certa vez, há muitos anos, Sâmia pegou uma conversa dos dois sobre a possibilidade de separação. Ela dizia estar "cansada de não ser levada a sério". No outro dia, porém, estavam bem como se nada tivesse acontecido. Mas, desta vez, algo preocupante havia acontecido.
E a culpa era dela.
Traiçoeira, sua mente mostrou-lhe a imagem de Erwank flechado e do Unagor Ó Midhir com ferimentos pelo corpo. O pai terminou de organizar tudo, pôs as tábuas e as correntes restantes na porta de entrada e subiu para o quarto.
Ele ainda mancava devido ao atentado ocorrido anos antes.
"A culpa é sempre sua, Sâmia... Sempre, sempre sua...", as costas dele pareciam gritar-lhe. A menina ficou parada no meio da casa, os pensamentos estranhos de volta à mente. Estava de volta aquele peso de ser tão jovem e já estar envolta por tantos sinistros. Chegava a ser perturbador pensar como as coisas aconteciam por causa dela, mas nunca a ela, diretamente.
Pela janela, as cores começaram a mudar e dar espaço ao negrume da noite. Sâmia tomou uma decisão: culpada ou não, ela podia impedir mais uma tragédia ligada ao seu nome: não podia deixar Phil Voggi se arriscar em vão. Se ele sofresse alguma coisa, seria um baque sem tamanho.
Depois, cuidaria dos pais.
Faria algo para impedir aquilo também.
Agora, era esperar a hora certa de correr para as estufas.
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