O SEXTO SENTIDO DAS MÃES (PARTE 2)
#pratodosverem | Descrição da imagem: em primeiro plano, vemos o mordomo Srusz equilibrando uma bandeja com uma taça. Atrás dele, sentada, Madame Voggi está com as mãos entrecruzadas sobre os joelhos, uma tiara no alto da cabeça, e observa a tudo de longe.
***
ENROLADA EM UMA TOALHA, A VERGONHA EXALADO POR CADA PORO DO ROSTO, A SRA. SOTEIN ESPERAVA EM UM POLTRONA. O quarto de Madame Voggi era quase do tamanho da sala. Ficava dois andares acima, com janelas cujo o comprimento ia do teto ao chão e uma vista privilegiada da baia de Glolk. No verão, a luz invadia o quarto em um abraço de ouro e despertava sua senhora com as cores da manhã e o canto dos pássaros. No inverno, o branco em torno da cidade podia ser visto até se perder no horizonte e a mulher poderia acompanhar o movimento de cada árvore em sua luta de resistência contra o gelo. Margareth se ajeitou na cadeira e, teve de admitir, sentiu-se confortável sentada sobre aquela plumagem alaranjada com manchas verdes.
"Não quero nem imaginar de que bicho veio isso..."
Se as histórias fossem verdadeiras, a própria Medebew teria caçado aquela fera, tirado e curtido o couro, costurado e feito de capa para as suas poltronas - e pelo visto seria um animal grande, pois a sra. Sotein contou cinco cadeiras, a colcha da cama e mais um par de cortinas feitos do mesmo material.
Imaginava a matriarca da família montada em algum monstro do tamanha daquela casa, com uma espada em uma das mãos e um escudo na outra, quando a velha Voggi e o mordomo Srusz entraram no quarto. Fechou a cara e foi até eles, mas logo a máscara de raiva caiu: o empregado trazia nos braços as peças de roupa da sra. Sotein, todas secas e sem nenhum vestígio de sujeira ou odor.
— Co-Como você fez isso tão rápido?
— Folhas. – Margareth assustou-se com o tom da resposta. A voz de Srusz não parecia sair da garganta e sim das entranhas de um abismo, como um eco. – Muito boas, senhora.
— Folhas de quê?
Srusz virou a cabeça para Madame Voggi como se pedisse autorização para contar o segredo. A senhora deu de ombros.
— Folhas de Manon, senhora.
Margareth franziu o cenho. Parecia um carma: mais uma vez via-se às voltas com Manon. Olhou pela janela, em direção à floresta. Manon ou Sol-Pequeno, na linguagem dos arcéh era uma espécie de planta de difícil manejo por precisar de uma área extensa para suas raízes e de temperaturas elevadas para se desenvolver. Muitos dos responsáveis pelas estufas cansaram de tentar cultivar mudas de Sol-Pequeno e apenas gastar recurso, tempo e paciência. Por isso o susto quando a Terceira Estufa foi vistoriada e encontraram a plantação de Manon no subsolo do lugar. Até então, os poucos exemplares da espécie só eram achados na floresta do continente, em locais de difícil acesso (e bem distante daquele tempo invernal).
A sra. Sotein deu um sorriso amarelo para a senhora e o homem parados diante dela. De repente, a revelação de Drenton Paberos há dois anos de que "alguém vindo da casa dos Voggi" havia invadido a estufa dele fez algum sentido para ela... Como Medebew Voggi teria acesso àquela quantidade de folhas para cobrir o seu vestido e fazer a água evaporar era mais um item para a lista de mistérios daquela casa. Com receio de fazer mais perguntas e descobrir coisas proibidas, Margareth agradeceu pela ajuda e foi se trocar.
Ao retornar, apenas a Voggi a esperava.
— Suponho que agora você queira encontrar a sua filha, não?
— Sim. O quanto antes, por favor.
— Ah, sim... – a senhora pareceu se entristecer, mas nada falou a respeito. Pediu para Margareth a acompanhar e saíram as duas pelo corredor em direção às escadarias.
ANDAR POR AQUELA CASA ERA COMO CAMINHAR DENTRO DE UMA CAIXA CUJA A MADEIRA JÁ ESTAVA APODRECIDA. Lascas caíam das paredes e toda a residência parecia gemer ao menor toque, cada som amplificado de modo bastante inconveniente. Em certo momento, pouco depois de terem deixado o quarto, a sra. Sotein espirrou e o barulho correu para cada canto, acima e abaixo, como se a casa zombasse do seu resfriado e decidisse reproduzir o som com a máxima estridência.
— Ah, tola, não fique envergonhada. – Madame Voggi deu tapinhas nos ombros da mulher cujo o rosto era um tomate de tão vermelho. — Um espirro é tranquilo. Pior é quando são outros barulhos corporais... Alguns mais de baixo, sabe? Todo mundo ouve!
E caiu na gargalhada.
A Sotein quis se jogar naquele fosso.
Desceram e subiram degraus, caminharam por corredores e nada de acharem Sâmia e Phil. Medebew parecia ignorar a expressão cada vez mais irritada no rosto da sua visitante e contava piadas enquanto a levava por aposentos mil. Passaram por uma biblioteca de estantes vazias ("Para guardar os livros que lerei no futuro.", explicou Madame Voggi), salas atulhadas de livros e manuscritos ("Esses são os livros que escolhi para eu ler no futuro...") e um quarto com um círculo de pedras no centro e o piso coberto de cinzas ("Aqui é onde eu queimo os livros que nunca lerei no futuro.").
Havia corredores sem saída, corredores curvos e corredores feitos apenas para interligar outros dois corredores. Madame Voggi, apesar de alegar certa "confusão mental" para definir ao certo onde o casal estava, movia-se com destreza pela casa e não parecia nem um pouco perdida. Pelo contrário, por cada porta por onde passavam ela dizia para Margareth quais coisas estavam naquele aposento e explicava o motivo de em alguns lugares haver portas ao invés de cortinas e o porquê dessas portas estarem trancadas.
— Há coisas que se você visse, meu bem, nunca mais pegaria no sono.
— C-Co-Como o quê?
A Voggi fechou o semblante.
— Monstros que eu trouxe dos confins mais abismais do mundo; criaturas que ao menor cheiro de um ser humano se transformam em feras capazes de te cortar em pedacinhos e depois comer mastigando seus ossos aos pouquinhos... – a senhora levou a mão até o queixo caído de Margareth, fechou a boca da mulher e deu um tapinha na sua bochecha. — É só brincadeira, tola, não fique desse jeito.
Metros adiante, ao passarem em frente à entrada de um corredor com uma única porta ao final, a sra. Sotein teve certeza de ouvir um rosnado. Por garantia, a partir dali passou a andar quase grudada à dona da casa, feito uma sombra.
Desembocaram na cozinha.
O salão tinha três mesas compridas dispostas lado a lado e cheias de comida, sem contar a parede coberta por panelas e por peças de carne penduradas no teto. Um batalhão de cozinheiros trabalhava em bolos decorados, organizava dezenas de bandejas com doces e subiam em bancos para conseguir mexer o conteúdo das panelas, tão altas quanto um homem adulto.
— Vocês vão fazer alguma festa? – perguntou Margareth ao ver quatro homens lutarem para pôr metade um cervo no forno.
— Não... Eu sinto muito fome. – respondeu Medebew com toda a secura e logo tratou de sair dali, quase ao ponto de pedir para os empregados carregarem a visitante para fora.
Para onde toda aquela comida ia era mais uma pergunta sem resposta, mas se a "brincadeira" acerca dos espécimes de animais presos naqueles quartos não fosse assim tão "brincadeira", ela tinha uma noção de onde aquilo tudo ia parar.
Deixaram a cozinha para trás. Ou para cima, para baixo, para o lado, vai saber! Estava difícil de se orientar... A sra. Sotein já estava a um ponto de chegar naquele fosso e gritar por Sâmia ou, quem sabe, ameaçar se jogar naquele buraco para ver se alguém lhe dava alguma atenção. Pensava na profundidade da queda quando a dona da casa parou com a mão na maçaneta de uma porta. Encarou a convidada com o olhar de uma criança prestes a mostrar um brinquedo só dela. A empolgação brilhava em seus olhos.
— Bom, querida, antes de irmos até onde eles estão...
— Espera, espera, espera: a senhora sabe onde eles estão? Sempre soube? E ficou rodando comigo esse tempo todo?
Madame Voggi ignorou a intromissão.
— ... eu quero lhe mostrar um dos meus orgulhos. – e abriu a porta.
Margareth respirou fundo e olhou para dentro. Primeiro, questionou-se se a velha Voggi estava com as sanidades mentais em ordem: não havia nada naquele quarto além de algumas dezenas de barris iluminados por candeeiros presos ao teto. Revirou os olhos, pediu paciência e tentou entrar no espírito. Pigarreou:
— Lindos... barris!... São de... Carvalho? Última novidade em algum lugar distante, juntar barris no meio de um quarto escuro e apresentar às visitas?
#pratodosverem | Descrição da imagem: no centro de um ambiente escuro, destaca-se um emaranhado de barris a perder de vista. Iluminados por lamparinas presas no teto, veem-se insetos voando em cima dos objetos.
***
— Oh, não, meu bem. Não! Eu não sabia que você era tão interessada em barris. Que coisa estranha... Mas deixe isso para depois. Eu te trouxe aqui por causa das minhas peludinhas...
A Sotein não precisou de explicações para entender o apelido: sentiu algo planar a poucos centímetros da sua orelha e roçar em sua pele. Depois, um bater de asas. Pensou ser um morcego ou um pássaro – e ficaria tranquila se fosse. Contudo, todos os fortes têm seus pontos fracos e se havia algo capaz de minar a coragem de Margareth eram insetos.
Medebew Voggi criava mariposas naquele quarto.
Centenas delas.
Talvez, milhares.
Cobertas de pelos, as voadoras pareciam atraídas pela sua dona e a rodeavam como se Madame Voggi fosse uma fonte de luz. A senhora ignorou a outra mulher e andou até os barris. Abriu um deles e, com um dedo, tirou uma mistura pastosa.
— Cerveja de mirtilo, açúcar mascavo e cerejas amassadas. Quer coisa mais deliciosa? – levou o dedo à boca e provou a mistura. — Maravilhoso! Maravilhoso! Sabia que mais da metade do doce de Cevaac que vendem no continente sai daqui de casa? Como as mariposas são loucas pela mistura, eu tenho o melhor controle de qualidade da região. Você quer provar um pouco?
Ao se virar, Medebew ficou em choque: a sra. Sotein atacava as mariposas com um ímpeto assassino. Corria atrás dos insetos, corria dos insetos, gritava, rosnava, amaldiçoava, tudo ao mesmo tempo enquanto tinha os cabelos atacados a cada rasante dado pelos bichos contra a invasora. Caiu nos barris, tomou um banho de Cevaac e piorou a situação quando, ao invés de correr, agachou-se a um canto do quarto e logo ficou coberta pelos animais.
Não fosse pela rapidez de Madame Voggi em improvisar uma tocha com pedaços de um barril para afastar as mariposas, Margareth teria morrido de pavor e Medebew a teria matado uma segunda vez para compensar os animais mortos. Ao menos, a dona da casa ainda deu umas boas bengaladas na mulher sob a alegação de "afastar algumas mariposas"...
— Se você não queria passear pela casa era só ter dito. Eu sou uma mulher muito compreensiva, sabia?! – repreendeu a senhora ao trancar a porta.
— Ah, claro, a minha cara feia durante toda essa visita era porque eu estava implorando para passear pela sua casa! – Margareth arrancou mais alguns pedaços de mariposa de dentro do vestido e tentou, em vão, dar um jeito no cabelo cujo penteado era uma espetada mistura açucarada com cheiro de cerveja. Srusz ergueu a mão para tentar ajudar e quase foi engolido. — NÃO... Não me toque! Querem saber de uma coisa?
A sra. Sotein correu em direção ao fosso. Mas, para o desgosto de Medebew, sedenta por aventuras, ela não se jogou: apenas encheu os pulmões e gritou por Sâmia. Depois, ergueu a cabeça, farejou o ar e, em meio a todo aquele odor de Cevaac e fumaça, sentiu o cheiro da filha. Aprumou os resquícios do vestido, olhou para a velha matriarca, virou o rosto e marchou feito uma guerreira escadaria acima.
— Devo intervir, senhora?
— Não, Srusz, não será mais necessário. – uma mariposa pousou no ombro de Madame Voggi e acariciou suas bochechas com as antenas. A mulher sorriu. — A conversa deles já terminou por hoje.
Pouco tempo depois, os dois ouviram vozes seguidas pelo bater da porta principal.
O passeio chegara ao fim.
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