O DESPERTAR DE LITA DELGO (PARTE 6)
#pratodosverem | Descrição da imagem: Sâmia aparece sentada no parapeito de uma janela. Do lado de fora, vê-se a nevasca cair sobre a cidade. A garota, vestida com uma camisola e encostada em uma almofada, observa a neve com o olhar perdido no horizonte enquanto segura um dos cordões dados a ela pelo deus invernal.
***
A NOITE CHEGOU E, PARA O ALÍVIO DA GAROTA, MARGARETH E HIGOR HAVIAM DECIDO IR EMBORA. A surpresa foi ainda maior quando a mãe a autorizou a ficar na casa da avó. Mesmo sem dizer uma palavra de conforto, a atitude da sra. Sotein demonstrava o nível de preocupação com Madame Lita. Apesar dos "riscos" de deixar a filha com a senhora, ao menos teria alguém de sua confiança para ficar de olho na viúva e em suas ideias de rebeldia.
A Torre Sul ecoou o seu sino três vezes e encontrou Sâmia deitada na cama, sem conseguir dormir. A menina Sotein se levantou e sentou-se no batente da janela. Às onze horas da noite, Arcéh já navegava pelo mundo dos sonhos, apenas o movimento das chamas dos lampiões quebrava o ressonar da cidade. A neve caia em um ritmo preguiçoso e, pela primeira vez desde a chegada do inverno, a lua dava o ar de sua graça.
Sâmia levou a mão ao peito e puxou o cordão de dentro da camisola. Não o tirara desde o último encontro com o deus. Não pela obrigação de usá-lo e, sim, por medo. As palavras do Senhor do Gelo ainda retornavam à sua mente sem aviso e o peso daquele fardo parecia aumentar a cada notícia sobre a situação de Arcéh. A história do urso, então, viera-lhe como uma pá de terra para completar o martírio.
Quando o sr. Maxil, munido de seriedade e convicção, confirmara ser verdade a presença do animal, a garota não teve como ignorar sua visão na cozinha dias antes.
Era coincidência demais.
"Coincidências demais em cima de uma garota de apenas treze anos...", entristeceu-se.
Perguntou-se se Phil também estaria do mesmo jeito, preocupado. O rapaz ao menos tinha uma vantagem nessa história toda: em menos de um mês partiria para alto-mar. Passaria um ano, talvez mais, distante de toda aquela loucura e protegido de qualquer investida do Unagor Drenton com o objetivo de encontrar o dono do casaco.
A Sotein puxou ar e soltou-o como se saboreasse o movimento. Aquilo a acalmou. Precisava se acalmar. Não queria pensar no assunto, mas o fato de ver-se sozinha no meio de tudo aquilo a apavorava. Havia outros colegas, é claro, mas a amizade é um terreno não tão fértil e são poucas as flores capazes de brotar nele.
Phil Voggi era a sua única flor.
Uma flor de esperança.
Como não confiar em alguém capaz de sacrificar-se em uma madrugada fria em prol de alguns ingredientes para um chá da avó de sua melhor amiga?
Quando as coisas na ilha começaram a ficar tensas, ela chegou a pensar em também ir para alto-mar, talvez esconder-se em algum dos barcos e deixar-se levar para a distância do mundo. Mas seria uma covardia com ela mesma, com Phil e com Madame Lita. Não podia deixar a avó sozinha; estava ligada a ela por laços profundos, mas delicados. Tomara para si tal responsabilidade.
— Ainda acordada, minha querida?
Sâmia assustou-se com a chegada da senhora ao quarto. Guardou o cordão entre as vestes e virou-se. Até mesmo na penumbra e sem maquiagem, a aparência de Lita Delgo recendia jovialidade. Os cabelos soltos ondulavam como nunca a garota vira antes e a luz azulada refletida em sua pele dava-lhe um aspecto divino.
— Não consigo dormir, vovó. Estou cansada, mas os olhos estão alertas.
— Ah, os meus também. Foi muita informação hoje, não foi?
— Sim. Muito para pensar.
— Tanto sobre o futuro, quando sobre o passado... - Lita sentou-se na cama e alisou os lençóis. — Sabia que eu nunca mais havia entrado neste quarto?
— Nossa! Por que?
— Quando eu briguei com o seu avó, no dia em que ele saiu de casa para nunca mais retornar, eu não aguentei dormir sozinha na nossa cama e vim para este quarto. Não há grandeza que supere a sensação de se sentir acolhida, Sâmia. Trouxe todos os meus travesseiros para cá, deitei-me no meio deles e relaxei como se estivesse nas nuvens... - ela pegou um dos travesseiros e o apertou contra o peito. — Três dias depois, eu estava neste quarto quando fui acordada pela notícia que mudou a minha vida...
— Mas não foi culpa sua...
— Não, não foi. As estradas eram tão filhas de Uriel quanto Margareth. Ele precisava delas. Mas... Não se viaja brigado, Sâmia. É um peso grande demais para se carregar junto às malas. Nós nunca, nunca, havíamos brigado daquele jeito. E nunca antes dele partir. Mas, naquela época, eu não compreendia as decisões dele; eu não entendia a importância do que ele, Ábramon e Marion estavam fazendo.
— É a coisa de não aceitarem o título de Unagor?
— Exato. Eles... Aqueles três eram idealistas; sonhadores. Foram assim desde crianças quando os conheci. Faziam planos para eles, é claro, mas não eram egoístas ou gananciosos: cada uma das suas ideias envolvia a cidade; envolvia fazer de Arcéh um lugar melhor... Construíram a estufa com as próprias mãos e, diferente dos outros donos, recusaram-se a eleger um dono, um "líder". Diziam que "uma estufa fechada para o povo era o mesmo que uma casa fechada para seus moradores". Idealismos... Idealismos, minha querida.
— Mas faz sentido, não?! Papai sempre defendeu que as estufas deveriam permitir a entrada dos arcéh ao invés de se fecharem para o mundo.
— Claro que sim! Eu concordo com isso. Mas em tempos difíceis as verdades ganham muitas bocas, minha querida. Não sabemos em quem confiar e, por mais sonhadores que sejamos, devemos manter ao menos um pé no chão, na realidade das coisas, um princípio que aqueles três não tinham e, confesso, talvez eu tivesse em excesso.
"Quando os donos de estufa criaram o termo Unagor e se autoproclamaram detentores de poderio e força contra a ameaça dos comerciantes do continente, ou a "suposta" ameaça, o até então governante de Arcéh impediu qualquer avanço. Foi um sopro de sensatez, sim. Por isso, Drenton formou o Bastião dos Unagor: para contrapor o governo. E conseguiu, é claro. As pessoas estavam assustadas diante de tantos boatos e o medo leva à insensatez, minha querida. Elas queriam ação e seguiriam qualquer um que demonstrasse coragem para fazer o impossível..."
— Foi a cegueira do desespero. - comentou a garota.
— Sim. Seus pais andaram conversando com você, não foi?
— Mamãe fala isso, às vezes...
— Ao menos uma coisa que Margareth tem razão nesta vida! - as duas riram. — Então, o Bastião destituiu o governante e armou os homens desta cidade como ninguém jamais viu. Formou guerreiros prontos para uma guerra. Mas havia um problema... Um problema muito grande: o poderio deles estava defasado porque faltava o apoio da maior estufa de Arcéh...
— A estufa do vovô?
— Sim. Drenton tentou de tudo para convencer Uriel: pediu sua mãe em casamento quando ela não passava de uma menininha, ofereceu parceria, tesouros, barcos, terras... Nada convenceu aqueles três. Nada. E é aqui que voltamos ao ponto da minha briga com ele. Eu...
Madame Lita refletiu por um momento e, durante esses minutos, resquícios da senhora de antes da Noite da Nyrill surgiram em sua face, as rugas ao redor dos olhos surgindo à Lua. Mas, ao tornar a conversar, voltara à aparência jovial.
— Eu estava cansada. Cansada da pressão, cansada de ir ao mercado e ter pessoas apontando para mim, dizendo coisas como "olha lá, a mulher do que não zela pela cidade". Estávamos cercados, mas Uriel, Ábramon e Marion seguiam de cabeça erguida, cientes de sua decisão. Uma parte, mesmo que pequena, dos arcéh ainda estava com eles. - respirou fundo e o aperto no travesseiro aumentou. — Mas eu não... Eu não tinha espírito para aguentar aquilo tudo, Sâmia. Você imagina que antes eu era aplaudida, elogiada pelos meus feitos como atriz, aclamada em todos os cantos e, de repente, lá estava eu sendo enxotada dos lugares por causa de um maldito voto... Drenton se deslumbrou pelo poder; eu me deslumbrei pelo reconhecimento. Eu fui fraca.
— O q-que a senhora fez?
Lita Delgo levantou-se e foi até a janela. Sem olhar para a neta, encostou a testa no vidro e cerrou os olhos.
— Eu me reuni com as esposas de Ábramon e de Marion e, juntas, fomos até Drenton para que ele nos desse um direcionamento de como deveríamos agir para convencer nossos maridos a apoiar a causa. Ele então nos instruiu a enviarmos cartas aos comerciantes do continente, em nome dos nossos maridos, para desfazer parcerias e acusa-los de ataques... E foi o que fizemos. E... Na viagem seguinte que os três fizeram ao continente... Aconteceu tudo.
Sâmia levou a mão à boca sem acreditar nas revelações. A neve caiu mais devagar e até as chamas dos postes pareciam paralisadas após ouvir a verdade.
— Papai e mamãe...
— Eles sabem.
— Por que... Por que a senhora me contou isso tudo?
Madame Lita virou o rosto em direção à neta, a expressão decidida.
— Para que você tenha consciência dos motivos dos meus próximos passos.
— Mas tudo o que a senhora quer fazer não é apenas pelo arrependimento de ter vendido a estufa ou pela vontade de ajudar Arcéh, é?!
— Não, Sâmia. Não é.
A garota pareceu ler a resposta no rosto da avó.
— A senhora não acredita que tenham sido ladrões ou mesmo os continentais que assassinaram os três...
— Nunca acreditei.
— E por que a senhora não fez nada naquela época?
— Porque eu estava à espera de forças, Sâmia; estava à espera de coragem para fazer o que é certo. - pegou a mão da menina e apertou entre as suas.
O pingente no cordão na garota pareceu esquentar como se o próprio coração de Madame Lita estivesse pendurado ali. A senhora abriu um sorriso e tudo ao redor pareceu se iluminar. A lua espreguiçou-se sobre Arcéh e a neve parou de cair.
— Agora, minha querida, eu encontrei a força de que preciso para lutar.
E eu falei anteriormente que este capítulo V seria mais tranquilo... 😅
Madame Lita sente o peso do passado e agora revela a carga de sua culpa. Entre impedir uma guerra e vingar-se de Drenton, há uma linha muito, muito tênue...
Pois bem, chegamos ao fim deste quinto episódio. Clique na estrelinha, deixe seu comentário, tente não carregar os fardos do passado.
Aprenda com eles, mas não os tome como uma segunda pele...
Não vale a pena. 😊
Abaixo, como sempre, uma prévia do próximo capítulo, um capítulo surgido há cinco anos de forma bastante natural, antes mesmo deste tema ser tão difundido. Abram a mente para conhecermos o Unagor Oiv Ó Midhir.
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