O DESPERTAR DE LITA DELGO (PARTE 2)
#pratodosverem | Descrição da imagem: diante de um fundo com várias cores, psicodélico, Sâmia está com os olhos vagos, uma expressão abobada no rosto, a língua para fora. À frente dela, há ramos de uma planta que exalam uma fumaça verde.
***
SÂMIA OLHOU PARA A COZINHA COMO SE ESPERASSE POR UMA AJUDA POR PARTE DAS PANELAS. Nunca cozinhara em sua vida. Sim, dizia-se independente e de fato o era em diversos aspectos. No entanto, não herdara o talento nem da mãe e nem do pai para os afazeres domésticos. Irritava-se diante dos cortes de carne, achava um exagero tanto malabarismo para preparar certas comidas e tinha nojo do ato de separar as gemas das claras. Certa vez, anos antes, inventara de preparar um bolo para o aniversário de Higor e, não bastasse não ter concluído a tarefa, ainda conseguiu deixar a cozinha de casa com cheiro de fumaça por quase três meses.
"Vamos lá, Sâmia, minha filha, é apenas um chá... Não tem como dar errado..."
Puxou a receita e a pôs sobre a mesa junto aos ingredientes.
— Certo. Maçã? Aqui. Folhas de Manon? Aqui. Algas Naaohc? Aqui. - deu um passo para trás e admirou sua organização. — E agora... Mágica!
Cobriu a maçã com as folhas e tudo com as algas e esperou algo acontecer antes de botar para ferver. Nada. Inverteu a ordem, enrolou a maçã com as tiras de algas e envolveu com o Manon. Nada. Fez rolinhos com o Naaohc, selecionou uma folha de bom tamanho, fez uma trouxinha e equilibrou sobre a maçã. Nada. Pegou a maçã entre as mãos, fechou os olhos e entoou um cântico. Amassou folhas e algas, jogou para o alto e esperou por algum sinal de que estava no caminho certo.
Os sinos da Torre Norte zombaram seis vezes da garota.
Seis da manhã.
Nada aconteceu.
Segurou a receita e a colocou contra a chama da lamparina. Talvez houvesse algo oculto no papel, uma descrição de como fazer o chá da melhor forma. Por um piscar de olhos a palavra "incompetente" surgiu entre a lista de ingredientes e desapareceu. No andar de cima, Phil tossiu até perder o fôlego.
— FICA QUIETO AÍ EM CIMA! - chutou uma cadeira, amassou a receita e a jogou no fogo. — POR QUE NÃO ME DÁ INSTRUÇÕES, SUA RECEITA CHATA?
Distraída, deu uma mordida na maçã e quase caiu da cadeira: aparte a beleza da fruta, o gosto era como morder um pedaço de gengibre acompanhado de um suco de cravinhos, jiló e pedaços de alho, um remédio de sua mãe para resfriados. Sâmia correu para uma tigela com água e enfiou a cabeça dentro.
Seu coração palpitava, formigas pareciam caminhar pela língua e arrepios a cutucavam nos lugares mais inconvenientes. Tomou fôlego e deu tapas no rosto. Havia um fogo dentro de si. Estava...
— ... viva!
Ideias começaram a surgir e gotas de confiança correram pelo rosto. Cortou um pedaço de alga e experimentou. A viscosidade dificultava a mastigação e grudava nos dentes. De repente, teve vontade de correr pelas ruas, dançar na nevasca e pular no rio, tudo ao mesmo tempo. Seus pés começaram a batucar sem a sua vontade e sua cabeça movia-se ao som de uma melodia muda.
"Funciona!", concluiu. A muito custo, cuspiu a alga e os efeitos cessaram tão rápido quanto vieram.
Faltava testar as folhas.
Desta vez, ao invés de comer, Sâmia pegou uma delas, amassou-a nas mãos até triturá-la e cheirou o Manon.
Não sentiu nada de diferente no corpo, mas a mente pareceu mais leve e a garota gargalhou como se alguém lhe tivesse contado a melhor piada de todos os tempos. A situação de Phil e de Madame Lita pareceu um mero detalhe, a nevasca lá fora ganhou formas engraçadas e ela teve a impressão de ver vários flocos de neve mais lentos. Era impressão sua ou alguns deles acenavam para ela? Quando as árvores se viraram em direção ao vidro da porta e gritaram "URRU! SOMOS TODOS SÂMIA! VAI FUNDO, COLEGA!", a menina despertou.
O cérebro estava a mil por hora.
Abriu os armários em busca de uma chaleira, jogou panelas para o alto e a encontrou dependurada sobre a pia. Deu mais tapas no rosto para ver se despertava, cortou a maçã em tiras, as algas em pedaços da largura de dois dedos e triturou as folhas de Manon com a respiração suspensa, apesar de uma vontade crescente de enfiar o nariz naquela mistureba. Sem perceber, os passos seguintes pareceram óbvios e, em minutos, bateu tudo isso em um pilão, pôs mais alguns pedaços de maçã e de Manon, passou em uma peneira, tirou o sumo e levou ao fogo.
Enquanto esperava o Chá de Afasta Morte ferver, viu-se envolta pelos cheiros emanados pela receita e agarrou-se à uma vassoura. Dançou pela cozinha, organizou os armários, limpou a bancada, lavou as louças e, ainda energizada, preparou biscoitos e café. Olhou para fora e teve a intenção de aproveitar o vigor para cortar o mato do quintal, mesmo escondido pela neve. Tentou abrir a porta dos fundos e, sem encontrar a chave, pensou em arrumar algum machado e arrombar a porta de qualquer jeito. Por sorte, Madame Lita não guardava machados em casa.
Desistiu.
Sentou-se e batucou os dedos na mesa; os pés não paravam quietos. De minuto em minuto, verificava o chá e perdeu a conta de quantas vezes correu escada cima com a desculpa de ver como estavam Phil e a avó. Quando menos esperava, a garota passou a correr no mesmo lugar e a fazer exercícios.
O vigor corria por suas entranhas e parecia não diminuir.
Teve vontade de gritar como nunca fizera antes.
E gritou até a garganta reclamar.
Depois, pulou pela casa e, sem se aguentar ou ter coisa melhor para fazer, limpou todos os aposentos, inclusive o quarto de Madame Lita, apesar de ficar com as pontas dos dedos das mãos congeladas.
Às sete da manhã, quando a chaleira apitou em companhia dos sinos, desceu aos trambolhões escada abaixo, serviu o chá em duas tigelas, pôs em bandejas separadas, cada uma acompanhada com biscoitos, uma xicrinha de café e geleia, equilibrou as duas e correu para os quartos. Ajudou Phil a beber o seu e, com Madame Lita, sem saber como agir diante da petrificação da mulher, posicionou uma cadeira ao lado da cama, subiu, forçou a boca da avó a abrir um pouco e derramou o chá sobre o rosto da senhora.
Sorriu.
Estava feito.
Ouviu batidas na porta e, em uma cantoria só, correu para atender.
Com um floreio, escancarou a porta e deu de cara com a mãe e com o pai.
O sorriso murchou e Sâmia voltou a si como se todo o vapor de Manon fosse varrido de sua mente pela brisa trazida por Higor e Margareth Sotein. A euforia deu tchau, mostrou-lhe o dedo do meio e chamou o medo e o desespero para substituí-la.
"Eita m..." foi o melhor pensamento de Sâmia.
Ele resumiu bem a situação.
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