O DESPERTAR DE LITA DELGO (PARTE 1)
HIGOR DESPERTOU COM O BATER DE PANELAS NO ANDAR DE BAIXO. Tapou as orelhas com os travesseiros e virou para o outro lado da cama. Margareth era dada a incursões pela casa logo aos primeiros raios do amanhecer. Dizia sentir-se viva apenas quando "acordava junto com o sol". O sr. Sotein sorriu. Conhecera a esposa ainda na juventude e desde cedo ela já demonstrava aquele gênio. Assustou-se no início, mas a convivência o levou à certeza: aquela garota seria uma companheira para o resto da vida.
Ao seu modo, completavam-se e ele se acostumou àquele som de todos os dias. Na verdade, vangloriava-se por reconhecer o humor da esposa pelo modo como ela lidava com os utensílios domésticos. Movimentos suaves e cortes precisos com a faca eram sinônimo de uma cabeça tranquila; pratos trincados e louças jogadas na pia de qualquer jeito, por sua vez, exigiam do sr. Sotein atenção e paciência redobradas.
Naquela manhã, quando panelas caíram pelo chão e ele ouviu Margareth praguejar contra tudo, obrigou-se a levantar da cama.
"Teremos um loooongo dia!".
Vestiu o casaco que encontrou pela frente e desceu as escadas pé ante pé.
O tempo nada bom de Arcéh filtrava a luz e deixava a casa em um tom soturno como se quisesse combinar com a solenidade do inverno. Quando ele entrou na cozinha, porém, uma parede de calor o recepcionou: o aposento estava quente como se o verão estivesse apenas ali, o forno entupido de lenha, as baforadas de fumaça em disputa para sair pela chaminé e Margareth banhada em suor e fuligem.
— Querida... O que você está fazendo com esse forno?
— Estamos tomando um chá juntos e ele está fumando cachimbo. Não vê a fumaça?
Higor puxou o ar.
Sim, o humor da esposa já indicava o quanto aquele seria um dia daqueles.
Levou uma cadeira para o canto da cozinha e sentou-se. Havia nacos de carne sobre a mesa, verduras pré-cozidas, potes de doce, cestas cheias de cereais e uma quantidade de favos capaz de suprir toda a necessidade do mercado. Ao olhar para outro lado, notou duas sacolas, uma delas já pronta para viagem.
— Margareth, você pretende sair?
— Sim.
— Pra onde?
— Para a casa da mamãe, Higor. Isso é muito óbvio. Não faça perguntas tolas.
— Margareth, não sei se você lembra, mas a Noite da Nyrill foi na madrugada de ontem. Não parou de nevar desde então. Como você pretende descer até a cidade? Antes disso: por que você vai fazer isso?
Ela jogou um punhado de sal sobre em um pedaço de carne e puxou alguns vidros de temperos das prateleiras. Tentou abrir um deles, irritou-se ao não conseguir e o jogou para o marido.
— Sâmia e mamãe estão aprontando algo.
— Se algo tivesse acontecido nós já teríamos recebido notícias.
— Eu sei muito bem o que estou falando. Alguma coisa está errada.
— Margareth, por favor, nós já conversamos sobre...
A sra. Sotein golpeou a mesa com uma faca e deixou a arma fincada na madeira. Higor engoliu as palavras. Ela virou-se para o marido com os olhos semicerrados, em cada pupila um tom de ameaça.
— Você sabe que eu nunca me engano, não sabe, Higor?! - ele assentiu. - Pois bem, eu tive um sonho muito, muito estranho, sabia? Nele, nossa querida e inocente filha era engolida por um pássaro maior do que esta casa enquanto o menino Voggi corria atrás do animal. E adivinha quem ele carregava nas costas?
— Q-Quem?
— Mamãe!
— Oh, não...
— Agora, diga-me, senhor sabe tudo: o que é isso senão um sexto sentido?
Ele apenas a fitou, sem comentar mais nada. Margareth aproximou-se dele, pegou o frasco de tempero de volta e retomou seus afazeres. Por sorte, a concentração dela estava voltada apenas para o preparo das provisões, ou teria escutado as batidas do coração de Higor. O pássaro era apenas uma lenda entre os arcéh e, por vezes, motivo de piadas. Todavia, para os trabalhadores das estufas o pássaro do Unagor Drenton era quase uma realidade.
Encarregado pela quinta estufa, o Sotein era o responsável pela troca de informações com as outras unidades e não era raro ouvir conversar sobre as atividades místicas dos Unagor. Alguns mais, outros menos, cada um dos dezesseis senhores guardava seus segredos para o sucesso nos negócios. Mas a ganância e as artimanhas de Drenton Paberos comprovavam qualquer dos boatos sobre a Terceira Estufa.
Entre eles, o tal pássaro.
Olhou para a esposa e arrepiou-se. O sexto sentido de Margareth não costumava errar.
"Tal pai, tal filha...", pensou Higor ao lembrar-se do velho Uriel Delgo.
#pratodosverem | Descrição da imagem: vê-se uma imagem envelhecida, como uma foto antiga, onde estão um senhor e um jovem conversando.
***
— O que você faz, meu jovem? - Uriel sentou-se frente a frente com o pretendente da filha. Haviam acabado de ter um almoço em família. Na ocasião, Higor aproveitara para pedir Margareth Delgo em casamento. Agora, enquanto os pais dele, a garota e Madame Lita conversavam em uma sala, o garoto Sotein e seu futuro sogro observavam Arcéh da varanda da casa.
— Bom, eu terminei os estudos a pouco e já trabalho no comércio com o continente.
— Muito bom. Eu gosto disso, meu rapaz. Sem perdas de tempo. Admiro pessoas assim; pessoas que pensam no futuro. Mas, seu pai me disse que você tem outras propostas de trabalho. É verdade?
— S-Sim... Nas estufas.
— Oh, que maravilha! - Uriel era um dos três donos da Quinta Estufa, à época a maior estufa de Arcéh. Ele e os outros dois proprietários recusavam o título de Unagor. — Trabalhar nas estufas dá a você uma sensação de responsabilidade única, meu jovem. Nós cuidamos da alimentação do povo e, por isso, estamos na mesa de cada um dos arcéh. O amor com que realizamos nosso trabalho entra em cada uma dessas casas.
O homem abriu os braços e pareceu abraçar a cidade. Da varanda na casa dos Delgo a cidade abria-se até o horizonte onde o mar afagava o porto de Arcéh. À esquerda, a ponte era um fio sobre o brilho de verão da Baía de Glolk.
— Em qual estufa você irá trabalhar?
— O Unagor Drenton está recrutando mais trabalhadores para a Terceira Estufa. Meu pai disse que é uma boa oportunidade.
O sorriso de Uriel diminuiu até se tornar um arremedo de sua felicidade de minutos antes. Virou-se para o jovem Higor e segurou em seus ombros:
— Vou lhe dizer uma coisa, meu jovem, e serei bem direto: fique longe de Drenton Paberos.
— P-Po-Por que?
— Minha bisavó sempre me disse para nunca confiar em pessoas que sorriem demais e menos ainda naquelas cujo o sorriso é incapaz de se estender aos olhos. Drenton tem os dois problemas e... - Delgo fechou os olhos por alguns segundos. Parecia ponderar sobre suas próximas palavras. Balançou a cabeça e olhou para horizonte. — Está decidido! Você trabalhará comigo.
— Mas todas as estufas estão cheias... Como eu...
— Não se preocupe com isso. Você será meu... digamos "Segundo Encarregado"! Me ajudará a gerir as plantações e eu tenho certeza de que você aprenderá rápido. Além disso, eu poderei lhe dar dicas para aguentar o gênio da minha filha. Vá por mim: cuidar de uma estufa daquele tamanho será muito mais fácil.
Os dois sorriram e Uriel recepcionou Higor como o novo integrante da família.
Só muitos anos depois soube do terceiro problema de Drenton Paberos: a ganância. Antes do Sotein aparecer, o Unagor quis comprar a parte de Uriel na Quinta Estufa e, sem conseguir, tentou se casar com Margareth Delgo (e chegou até a oferecer tesouros para comprar a menina). Em mais uma derrota, tentou então atrair o futuro marido da garota para perto de si.
Talvez, para tirá-lo do caminho.
Talvez, para algo pior...
Higor arrepiou-se e voltou a si, o eco das palavras e desconfianças de Uriel Delgo ainda vívido em seus pensamentos. Quis empurrar a conclusão para os confins da memória, mas era inevitável não juntar o sonho da esposa com o que ele sabia sobre o Unagor Paberos. Enxugou o suor da testa e abordou Margareth.
— Você só sonhou com isso?
— Hum, finalmente a minha aflição de mãe despertou alguma coisa em você?
— Querida...
Margareth parou no meio da cozinha.
— Eu acordei com o peito em chamas, Higor. Parecia que... Que eu acabava de perder alguém muito importante. Eu quase não consegui me levantar da cama; estava sufocada como se eu estivesse me afogando nas águas de Arcéh. - passou a mão pelo pescoço e meneou a cabeça. — Acredite em mim, Higor: alguma coisa aconteceu. Não sei o quê, não sei onde, não sei em quais proporções, mas aconteceu.
Higor assentiu, caminhou até a esposa, deu-lhe um beijo e saiu para preparar os cavalos e a carroça.
Ele também tinha pressa.
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