O CHÁ DE AFASTA MORTE (PARTE 5)
#pratodosverem | Descrição de imagem: em uma escada, vê-se Phil Voggi sentado nos degraus com Sâmia desmaiada em seu colo.
***
— SÂMIA! SÂMIA!
Os olhos de Phil estavam sobre ela, caída nos braços do rapaz Voggi feito um bebê envolto pelo calor do pai. A porta da frente jazia escancarada e deixava a neve do final da tarde espirrar flocos de inverno pelo tapete da entrada. As pegadas das botas de Phil marcavam o caminho até o sopé da escada onde o garoto segurava Sâmia com uma expressão de alívio e susto.
— Você está bem?
— Sim... - com o rosto em brasa, ela desvencilhou-se da cena de resgate e pôs-se de pé. — O que aconteceu?
— Ora essa, me diga você! Quando voltei eu pude ouvir seus gritos lá da rua, mesmo com toda essa barulheira da nevasca. Você parecia desesperada...
— Desesperada como?
— Gritava por socorro, como se estivesse ameaçada por alguém.... Foi assustador quando entrei e te achei se debatendo no chão. O que aconteceu com você?
— Eu... - a garota deu uma espiada em direção à cozinha. Não havia nada de anormal ou de perigoso por ali. Nem marcas ou rachaduras ou vigas destroçadas. — Eu peguei no sono. Acho que foi isso...
— Nossa, você dorme desse jeito?! Assim você nunca vai se casar como quer a sua mãe...
— Por que não?
— Minha filha, quem dormir com você na mesma cama vai levar tanto chute e ouvir tanto grito que dormir no chão será um conforto!
— Phil Voggi, você fala muita besteira! E fora de hora!
— Eu sou uma pessoa feliz. - retirou o casaco e o chapéu e os jogou sobre uma das poltronas da sala. Deu um jeito de fechar a porta e, ao se virar para Sâmia, puxou um papel de dentro do suéter. Porém, antes de revelar seu conteúdo à parceira, fez uma cara marota e perguntou:
— Confesse: aquele desespero todo no sonho era você sonhando que me via com outra garota e aí fez um alarde...
Sâmia bufou, deu um safanão no rapaz e segurou-lhe a orelha.
— Agora eu entendo por que na escola a senhorita Fran perdia a paciência com você, Pimenteiro Voggi!
— Não me chama assim!
Sâmia reforçou o aperto na orelha e começou a puxá-lo escada acima.
— Ai, tá doendo!
— Não está doendo nada! Os professores fizeram tanto isso com você que a sua orelha deve ser insensível! E vamos logo que nós temos coisas mais importantes para tratar. Que papel é esse?
— É para ser usado só depois que benzermos a sua avó... Sâmia, tá doendo, é sério!
— Ah, que ótimo! É a melhor notícia do dia.
Os dois subiram os degraus naquele arremedo de professora séria e aluno levado. Entretanto, enquanto Phil se divertia com a situação e até mesmo se esquecia dos problemas por alguns minutos, para Sâmia, o momento de diversão não tinha força suficiente para transpor o muro da preocupação. No meio da subida, entre uma reclamação ou outra do Voggi, ela lançou a atenção pelos aposentos abaixo e teve a impressão de ver um vulto deixar as sombras de um canto da sala, olhar para ela e depois se dissolver na parca luminosidade do início da noite.
— Algum problema?
— Não... Tudo bem.
— Você ficou paralisada por um instante... Parecia a um ponto de voltar a gritar...
— Está tudo bem, Phil. É só a tensão disso tudo... Vamos?
Phil assentiu e os dois entraram no quarto de Madame Lita.
A noite caiu sobre Arcéh para disputar espaço com a neve.
OS DOIS ADMIRARAM O LEITO DE LITA DELGO ATÉ O QUARTO CAIR NA PENUMBRA. A garota apoiava o peso do corpo em um pé e noutro e fitava o companheiro, mudo até aquele momento. O rosto de Phil era de alguém envolto em dúvidas, cujo pensamento buscava a saída de um labirinto. Ao deixar a casa, correra em busca dos ensinamentos da avó, Medebew Voggi, baluarte dos arcéh para todas as horas. Se havia alguém naquela cidade capaz de ajudar Madame Lita esse alguém era a matriarca da família Voggi.
— Certo, a hora é essa.... Vamos começar.
— Espera...
— O que foi agora, Sâmia?!
— Como a sra. Voggi sabe que isso dará certo? Como ela pode ter tanta certeza se nem viu o estado em que a vovó se encontra?
— Sinceramente, eu não sei. Eu só descrevi a situação da sra. Lita e a vovó pensou por um tempo e logo chegou a essa conclusão... Ela parecia bem certa do que tínhamos de fazer.
Sâmia assentiu e conteve a ânsia de encher o rapaz com mais perguntas. Madame Voggi era conhecida em toda a região por ter chegado à Arcéh após uma vida de batalhas e aventuras. Segundo as histórias, trouxera consigo conhecimentos de meio mundo e mistérios para além da existência. "Quem sabe...", alegrou-se Sâmia, "... uma dessas sabedorias não diz algo sobre sonos eternos causados por magia?". A garota cruzou os dedos.
Phil foi até uma das arandelas ao lado da cama e a apagou. A penumbra cedeu lugar ao escuro e este só não dominou o lugar devido às velas dispostas pelo chão.
— Pronta?
— Acho que sim...
— Agora vem a parte mais delicada... - pegou uma caixinha de madeira do bolso e entregou à Sâmia. — Vovó disse que aqui dentro tem uma pasta de ervas capaz de fazer o corpo da pessoa se abrir com mais facilidade para rituais de cura. Você deve passar a pasta nos pulsos, testa, tornozelos e no peito de Madame Lita. Esse é o ponto principal.
— Por que?
— Porque se a sua avó tiver passado por algum ritual para ficar nesse estado, as ervas farão efeito e nós passaremos para a segunda etapa. Senão...
— Senão o quê?
— ... só nos restará chamar um médico e torcer para os saberes dele terem condições de curar Madame Lita.
Sâmia não gostou de ouvir aquilo. Se as ervas da sra. Voggi não detectassem a magia do deus, nenhum médico seria capaz de fazê-lo. Sua avó dormiria os cinco anos do inverno e mais cinco de verão, a mãe surtaria e, para completar, Sâmia ainda teria de lidar com a promessa de levar Madame Lita para os braços da divindade. De repente, imaginou-se dali a dez anos com a avó dorminhoca nas costas rumando pelas ruas de Arcéh à espera do deus.
Seria patético.
Empurrou o pensamento para o abismo e abriu a tal caixa. Esperava deparar-se com algo extraordinário, talvez com um brilho forte ao ponto de cegá-la por alguns segundos ou então um cheiro capaz de inebriar até os olfatos mais insensíveis. Mas não. Dentro daquele cubículo de madeira havia somente uma pasta sem cor, pálida e sem graça. Concentrou-se em seu objetivo e caminhou para o lado da cama.
#pratodosverem | Descrição da imagem: vê-se uma caixa de madeira entalhada com a tampa entreaberta por onde é possível ver uma substância amarelada dentro, algo semelhante a um gel.
***
Olhar para Madame Lita tão de perto era estar mais uma vez diante da palidez dos cadáveres dispostos ao longo da ponte. Não fosse pelo movimento de subida e descida do peito da mulher, ali estaria uma casca sem alma. "Ah, vovó, o que foi que eu fiz?". Sob a supervisão de Phil, ela passou o unguento nos locais indicados e afastou-se da cama.
— Por que nada acontece?
— Não sei. Temos que esperar...
— Por quanto tempo?
— Eu não sei, Sâmia. É sério! A vovó só disse para esperar.... Pode levar algumas horas...
Sem opções, ela deixou-se cair em uma cadeira.
As velas derreteram, Phil cochilou e a nevasca arrefeceu. Na escuridão do quarto, Sâmia atentava para a respiração em chiados da avó ritmada com o sibilar do vento de encontro às janelas. Na outra arandela acesa ao lado da cama, o fogo não passava de um fiapo de luz, como se fosse a projeção física do nível de esperança da Sotein. Quando as pálpebras pesaram e resquícios da visão de horas antes na cozinha começaram a bater à porta de sua mente, o sino da torre de Arcéh gritou seis vezes e, a exatas dez horas da noite, o corpo de Lita Delgo reagiu.
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