O CHÁ DE AFASTA MORTE (PARTE 3)
#pratodosverem | Descrição da imagem: em meio à nevasca, vê-se um rapaz parado em uma rua esbranquiçada. Veste peles e casacos e apenas os olhos podem ser visto em meio ao emaranhado de roupas.
***
AS BATIDAS NA PORTA A TIRARAM DO DEVANEIO. Apressou-se para o corredor e, antes de abrir a porta, respirou duas vezes para se acalmar. A frase da mãe martelava em suas memórias e jogava faíscas de perigo sobre o seu raciocínio. Ao girar a maçaneta, os ventos do lado de fora por pouco tão a derrubaram. O tempo açoitava Arcéh como se quisesse lembrar aos habitantes em qual época eles estavam e quão terrível seria aquele inverno. A figura do cocheiro já sumira dentro da nevasca e deixara à porta uma montanha de casacos de pele com um par de olhos no alto.
— Você vai me convidar para entrar ou vamos ficar na calçada admirando esta paisagem multicolorida com vários tons de branco? - a voz saiu abafada pela quantidade de roupa.
— Phil Voggi, sempre engraçadinho...
— Do jeito que o mundo amanheceu sério, Sâmia, se eu ficar mais sério ainda a primeira coisa que vai congelar será meu cérebro.
A garota sorriu e o puxou para dentro. Tal qual uma cebola, Phil começou a tirar casaco por casaco até não sobrar mais espaço no cabideiro e as roupas serem jogadas por sobre as cadeiras.
— Como você pretendia ficar congelado com toda essa roupa? Pra que esse exagero?
Phil olhou para a amiga e tirou vestígios de neve do cabelo. Puxou um papel de dentro do bolso da calça e o leu com uma voz em falsete.
— "Querido Phil, como vai? Preciso da sua ajuda com urgência. Aconteceu algo ruim. Estou na casa da minha avó, Madame Lita. Venha rápido. Abraços, Sâmia.". Desde que eu te conheço eu sei que o seu conceito de "urgência" é o anúncio de um problema muito, muito grande. Eu vim preparado.
— Bom, eu acho que casacos não vão me ajudar.
— Ah, os jovens sem experiência de aventura... O que seriam de vocês sem nós, os nem tão jovens?!
Pegou um dos casacos e começou a tirar de dentro dos bolsos coisas como frascos, pedaços de pergaminhos, sacos com ervas e caixinhas de madeira. De outro, pegou ferramentas, agulhas, uma garrafa vazia e rolos e mais rolos de linhas de tipos variados. A esperança alegrou-se e voltou ao coração de Sâmia.
— Uau! Phil você é...
— Maravilhoso. É, já me disseram isso algumas vezes.
— Tem alguma coisa aí capaz de acordar uma pessoa?
O sorriso do rapaz vacilou.
— Acordar? Como assim acordar?
— Vem, deixa eu te mostrar.
Subiram para o quarto de Madame Lita enquanto a garota relatava para Phil a situação da noite anterior, sem mencionar as questões míticas e milagrosas da madrugada junto ao deus. O rapaz já encobrira muitas das suas artimanhas e, ela tinha quase certeza, mantinha contato com Higor para informar ao sr. Sotein sobre o paradeiro da filha. Contudo, aquele segredo exigia um nível de confiança diferente de qualquer intimidade. Não era apenas algo sobre a vida aventureira de Sâmia, mas, sim, o tipo de situação capaz de transformar toda a cidade.
Quem sabe, até todo o continente.
— É muito estranho isso ter acontecido logo na manhã seguinte à noite da Nyrill. Ela pode ter comido alguma coisa que fez mal e com o frio... Sei lá... - Phil deu a volta na cama onde Madame Lita repousava e parou de encontro a janela. — Me diz uma coisa: por que você não chamou um médico?
— O único médico que eu conheço é o doutor Freymodur, o médico da minha mãe, e ele tem a língua tão grande quanto os instrumentos que usa. Se ela souber do que aconteceu é capaz de sair desabalada no meio dessa nevasca e eu... Eu não quero preocupá-la... É isso.
A frase saiu em um sopro e se perdeu no silêncio do quarto. A garota desviou o olhar para as ripas de madeira no chão enquanto o foco do rapaz caia sobre ela. Sâmia mordeu os lábios e seu rosto vestiu-se com enigmas ante os questionamentos do amigo. Phil a observou até o ponto do formigamento de curiosidade em sua língua perder o fôlego e sobrarem apenas duas conclusões: um, a garota estava com medo; dois, havia ali um sentimento de ansiedade, o tipo de emoção atípica a pessoas como Sâmia, afeitas a uma vida sem temores.
— Olha, vamos fazer o seguinte: eu não pergunto nada sobre o que aconteceu por aqui e você promete que vai à minha Festa de Boa Pescaria.
— Você pretende mesmo ir com os outros pescadores?
— Mas é claro que eu vou! Quer oportunidade melhor para dar uma escapada desta ilha?! Então, decida: temos ou não temos um acordo?
A preocupação da garota arrefeceu e um meio sorriso encontrou espaço para brilhar.
— Você é terrível, mas eu não sei o que seria de mim sem suas loucuras, sabia?
— Sim, eu sempre soube disso. Você não vive sem mim... - em um movimento de esquiva, Phil desviou a tempo do sapato jogado não lhe acertar o nariz. — Ingrata!
— É, eu sei... Agora quer fazer a gentileza de me ajudar de verdade?
— Tá, vamos lá. Eu trouxe algumas ervas que a vovó sempre usa para essas coisas...
— Quais coisas?
— Desmaios, envenenamentos, dores diversas, enforcamentos, facadas, mordidas de lobos, amputações, faniquitos, frescuras, chiliques...
O Voggi continuou a elencar a lista de mazelas enquanto realizava o ritual de escolher um frasco, abrir com cuidado, pensar por algum tempo, levar às narinas de Madame Lita (ou pôr algumas gotas dentro da boca da mulher), esperar algum efeito, lamentar o fracasso e descartar o frasco para então partir para a próxima tentativa.
E de tentativa em tentativa, Sâmia viu o quarto se encher de fragrâncias das ervas e a pilha de frascos descartados sobre a escrivaninha apenas aumentar ao ponto de eles começarem a cair pelo chão. A manhã já se despedia com seu sol de palidez quando Phil jogou o último frasco na pilha de descarte e sentou-se na poltrona, descabelado e desolado.
— QUAL O PROBLEMA DESSA MALDITA MULHER?
— É a minha avó, Phil, mais respeito.
— Ótimo! Qual é o problema com a sua avó?!
— B-Bom... Você está aqui para me ajudar a descobrir...
Phil encarou a parceira com toda a firmeza restante após tantas horas de frustração.
— Não foi um desabafo, Sâmia. Foi uma pergunta muito direta: qual o problema com a sua avó?
— E-Eu... Nã-N-Não... - o urro de raiva do garoto Voggi encheu o quarto e ele passou por ela e começou a guardar os frascos nos bolsos do casaco. Sob o receio de Sâmia, estática em seu torpor de mentiras, Phil vestiu o casaco e, sem se virar, dirigiu-se para a porta do quarto. Mas foi impedido pela voz de garota.
— A vovó saiu ontem e... Ela foi para a ponte. Foi isso.
A expressão de raiva no rosto de Phil derreteu para dar vez ao descrédito. Ninguém podia sair na "Noite da Nyrill", seja pela imposição da lei dos homens, seja pela iminência da morte.
— Ela... Não! É claro que não... Você está mentindo pra mim? Como ela está viva depois... Depois de tudo?
— Acredita em mim, por favor! Eu... - a mente de Sâmia era um turbilhão de dúvidas tão feroz quanto o clima sobre Arcéh. Mesmo assim, conseguiu manter-se firme em ocultar a parte mais intrigante daquela história. — Eu não sei se ela chegou a alcançar a ponte, Phil, mas o fato é que ela saiu e quando voltou... Simplesmente subiu para o quarto e desmaiou.
— Por que você não a impediu de ir?
— Certas vontades são incontroláveis. Ainda mais quando a morte já chegou ao ponto de ser bem-vinda...
Olhares dizem e gritam verdades cujas bocas são incapazes de pronunciar. Phil via na amiga o esforço para manter algo em sigilo, a respiração em denúncia do esconderijo daquela mente, os músculos da face retesados como se temessem falhar em sua tentativa de ocultar o insólito. Os Voggi, contudo, eram sinônimo de mistérios e o herdeiro de tamanho misticismo era capaz de sentir o odor das inverdades a quilômetros. Mesmo assim, optou por não prosseguir com aquela discussão. Havia um fundo de verdade nas palavras da garota e apenas isso já era o suficiente para ele ter noção do risco corrido por Lita Delgo.
— Eu tenho que chamar alguém para ver a sua avó.
— Não! Ninguém pode saber disso!
Phil pôs as mãos nos ombros de Sâmia e a encarou como um tutor faria com seu discípulo.
— Confie em mim. Se eu não fizer isso sua avó nunca mais vai acordar.
— Como você tem tanta certeza disso?
— Porque... - Phil olhou para o bailar da neve através da janela e deu um beijo na testa da garota. — Porque nem todas as lendas são tão mentirosas, Sâmia.
E sem mais perda de tempo, virou-se e partiu. A porta da frente abriu-se e fechou e deixou para trás o silêncio daquela casa. Lá em cima, parada no mesmo lugar, Sâmia buscava dentro de si a força para se manter sã.
A convicção das palavras de Phil soaria como um conforto para qualquer um, mas teriam efeito para encarar o poder de um deus?
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