O CHÁ DE AFASTA MORTE (PARTE 1)
SÂMIA DESPERTOU COM O BARULHO DAS JANELAS SACUDIDAS PELO VENTO. Tentou levantar-se de um pulo, mas desistiu quando a dor em suas costas a fez ofegar e tornar a deitar no chão. A vista escureceu por um momento e a garota teve de apertar bem os olhos e esperar alguns minutos até conseguir se sentar. À sua frente, havia apenas a poluição causada pelas imagens multicoloridas daquelas estátuas. A partir dali, ela tinha consciência disso, tais pensamentos seriam uma constante em sua rotina. Demorou mais um tempo para se situar e só então atentou para o tapete de fibras vegetais, a lareira a um canto, uma parede tomada por prateleiras cheias de livros e outra com uma pintura de Lita e Uriel Delgo abraçados. Em uma estante ali perto, expositores exibiam os antigos instrumentos utilizados pelo avô da época em que trabalhava nas estufas.
A garota se sobressaltou e as imagens do "milagre" ocorrido há poucas horas a fizeram ficar de pé e buscar pela avó. Quando não a encontrou no sofá, cogitou a hipótese de tudo não ter passado de um sonho ("Haja criatividade para um sonho desses, Sâmia..."), mas, ao averiguar a fechadura quebrada da porta de entrada e o tapete de boas-vindas amarrotado e ainda úmido, sentiu-se aliviada: de fato um milagre havia acontecido e as duas estavam inteiras.
Subiu para o primeiro andar e buscou por Madame Lita. Encontrou a senhora apagada na cama como se houvesse tomado alguma erva do sono. Sâmia tentou acordá-la de todas as formas, contudo, nada surtiu efeito e o jeito foi aguardar pelo o seu despertar e afastar os pensamentos ruins. Arrumou a bagunça da sala, acendeu a lareira, preparou o almoço e trocou de roupa. A todo o instante corria para o quarto da sra. Delgo na esperança de ver um movimento qualquer por parte da mulher. Aproximava-se das suas narinas para verificar se ela ainda respirava, media-lhe o pulso, encostava a orelha em seu peito para ouvir o coração e, no auge dos temores, cogitou a ideia de bater na avó até ela despertar.
"Acalme-se, Sâmia. O deus não iria reviver a vovó para ela morrer horas depois... Seria muito cruel...". Sentou-se no parapeito da janela e olhou para a neve em sua queda sobre a cidade. Cada floco parecia cair direito em seus pensamentos e manchar o tapete da confiança. Olhou para a imobilidade da avó e mordeu os lábios.
"Não... Ele não faria isso..."
Mas, tal qual o vento em açoite nas janelas, a dúvida chicoteava sua mente. Não podia ignorar o fato de Madame Lita já ter mais de setenta anos. Em um lapso de desespero, pensou até em chamar a mãe. Por sorte, descartou a ideia antes dela se confirmar. O faro de Margareth Sotein era treinado em astúcia e bastaria algumas perguntas para ela descobrir boa parte das aventuras de avó e neta pela madrugada proibida de Arcéh.
Se não haviam morrido pelas mãos do deus cinzento, morreriam pela violência dos gritos da sra. Sotein.
O pai, pelo contrário, seria uma possibilidade acertada. No entanto, Sâmia não queria interferir no trabalho de Higor. Responsável pelo gerenciamento da Quinta Estufa, àquela hora da manhã ele deveria estar enrolado até o pescoço em problemas. Apesar de todos os preparativos para a chegada do inverno e das horas gastas com reparos na estrutura das estufas, os primeiros dias de gelo sempre exigiam cuidados redobrados.
Outro descarte.
A falta de opções a deixava cada vez mais angustiada. Se estivesse em época escolar tentaria um dos professores, mas os mestres, ao término do período de aulas e a iminente chegada do frio, rumavam para o calor do continente, satisfeitos por só terem de voltar àquela região quando o verão retornasse. Para piorar, Sâmia tivera o azar de ficar em uma turma onde ela era a mais nova entre todos. Não havia chance alguma da sua colega de classe mais "experiente", a sra. Brier de 85 anos, sair de casa para ajudar-lhe com Madame Lita*.
* NOTA DO AUTOR: Em Arcéh, o período total de aulas dura apenas quatro anos, ao longo do verão. Para isso, os alunos têm aulas nos três turnos (manhã, tarde e noite) e não têm férias. Como não há um limite mínimo de idade para entrar na escola e nem uma separação por faixa etária ou por séries, aos primeiros dias do verão as turmas se formam em um misto de crianças, jovens, adultos e idosos. Apesar das críticas oriundas de outras cidades, afinal, muitos lugares com o mesmo ciclo dual de estações adotam outros métodos escolar, essa mescla de gerações ao longo da história mostrou-se benéfica para o forte sentimento de unidade cultivado entre os arcéh.
Naquela cidade só havia uma pessoa louca o suficiente para lhe ajudar naquelas circunstâncias...
A garota buscou por pena, tinteiro e papel nas coisas de Lita, escreveu uma mensagem e desceu para a cozinha. Tomou dois goles de um chá fumegante, agasalhou-se com camadas e camadas de roupa e correu para a Estação de Mensagens. Por sorte, a casa de Madame Lita ficava em uma área bem sortida de serviços e a Estação de Mensageiros localizava-se a pouco mais de duzentos metros ladeira acima. Desequilibrou-se algumas vezes devido ao peso das roupas, mas as botas cumpriram bem o seu papel e Sâmia conseguiu chegar inteira ao seu destino. A Estação era um prédio de três andares cuja porta tinha entalhes de cavalos e as paredes tinham dois palmos de largura. A placa no alto rangia ao vento e parecia disposta a despencar a qualquer instante sobre a garota.
Sâmia bateu na porta e esperou.
Não houve resposta.
Tornou a fazê-lo por mais cinco vezes e o resultado foi o mesmo.
As Estações de Mensagens eram gerenciadas por famílias em uma tradição passada de geração em geração. Por isso, era comum uma Estação ficar no primeiro piso do lugar enquanto os demais andares eram destinados à residência. Sâmia deu alguns passos para trás e olhou para as janelas dos segundo e terceiro andares.
Talvez os donos não tivessem escutado as batidas.
Juntou forças e esmurrou a porta com gosto até escutar gritos. Minutos depois estava na presença do sr. Maxil, gerente daquele posto e capitão das equipes de mensageiros da ilha.
— Pela Nyrill, minha filha! Quer derrubar a casa de Erwank? O que você fazer debaixo dessa neve toda? - o senhor a puxou para dentro e fechou a porta com um suspiro de alívio.
#pratodosverem | Descrição da imagem: parada na porta com o entorno envolto em neve, há um senhor de rosto zangado, barba e cabelos grisalhos, usando um pijama de bolinhas vermelhas e pantufa felpuda.
***
Calçava pantufas e trajava um pijama cuja estampa de bolinhas tirava qualquer seriedade do homem. O gorro com pompons era o auge do modelito. O rosto de Sâmia esquentou. Erwank Maxil era conhecido por ser um homem sereno; um baluarte dos bons costumes, sempre de ternos alinhados cuja paleta de cores variava entre o cinza-escuro e o preto-preto. Como se também notasse a situação, o gerente fechou a cara.
— O que você querer, afinal?
— Sr. Maxil, eu preciso enviar uma mensagem...
— Estar louca? Com esse tempo você achar que alguém vai sair pra algum lugar? Quem seria louco de fazer uma coisa dessas? Erwank não seria! Não, não! - a olhou de cima a baixo e balançou a cabeça. — Esta cidade estar cheia de doidos... Cada ano pior...
— É importante, por favor! Os seus filhos não estão em casa?
— Sim, estar. É claro! Todos eles ter juízo.
— Por favor, chame um deles. E-Eu pago a mais! É muito importante, sr. Maxil!
— Muito importante, sei... Muito importante ser Erwank voltar para a cama antes de ficar doente com todo esse frio! E meus filhos também. - encaminhou-se para a porta pronto para pôr a menina para fora. — Estarmos fechados, senhorita. Fazer entregas com essa nevasca exigir roupas especiais; os cavalos ficar estressados e empacar, as carroças deslizar, cair em fendas, tudo ser caos. Muito caos. Não, não! Nada fazer Erwank sair de casa nesse tempo. Passar bem.
Escancarou a porta e aguardou Sâmia se mexer. Flocos de neve corriam para dentro de casa e acenavam para a garota, estática no corredor. O retumbar cada vez mais rápido dos pés do sr. Maxil indicava uma explosão iminente. As histórias mirabolantes sobre como Erwank expulsava invasores corriam Arcéh e Sâmia não queria ficar ali para ver se eram verdadeiras ou não. Empinou o nariz, apertou o cachecol contra o pescoço e rumou para a saída.
— Vovó Lita ficará muito decepcionada com o senhor, sr. Maxil!
Pôs-se para fora e sentiu-se engolida pela nevasca. O tempo parecia rir da garota. Cogitou a possibilidade de caminhar até a casa dos Voggi, porém, desistiu ao olhar o horizonte e ver apenas o branco da névoa. Sabia o caminho apenas em teoria e se perder com todo aquele frio não seria uma opção sensata. O jeito era voltar e pensar em outra solução o quanto antes. Madame Lita estava distante e ela nada podia fazer a respeito.
Suas esperanças estavam congeladas. Se fosse para passar por isso, preferiria não ter sobrevivido ao deus.
Chegou em frente à porta de Madame Lita e estancou. Não teve coragem de entrar. Havia um grito preso em sua garganta. Socou a madeira e baixou a cabeça.
— Idiota!
— Com quem falar, menina?
Sâmia prendeu o grito de susto ao se virar e dar de cara com os bigodes de Erwank. O homem arfava como se tivesse corrido por quilômetros.
— Dar carta a Erwank. Erwank entregar.
— Mas o senhor disse...
— Não importar o que Erwank dizer, garota! Agora, para onde ser?
— A casa dos Voggi.
— Certo. - puxou a carta das mãos de Sâmia, mas não fez menção alguma de sair do lugar. Balançava-se para frente e para trás com o olhar perdido nas janelas do segundo andar da casa.
— Sr. Maxil...
— Sim, o que você querer?
— A carta... É urgente.
— Ah, claro. A carta. - e sorriu. Sâmia deu um passo para trás. Ver sorrisos em pessoas carrancudas é uma daquelas cenas capazes de assustar até os mais corajosos. — Dizer uma coisa para Erwank: a sra. Delgo, ela estar bem?
— S-Sim...
— Ah, que bom! Erwank ficar feliz em ouvir isso. Mandar minhas recomendações a ela, sim?! - caminhou alguns passos, mas deu meia volta. Suas bochechas estavam rosadas. — Melhor ainda: dizer a senhora que Erwank desejar sinceros votos de felicidade e não tardar a aparecer para mais um chá. Com biscoitos. Certo?
— Certo...
— Ótimo! - e tornou a caminhar.
Ele ainda estava de pantufas.
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