O BRILHO DOURADO (PARTE 2)
ENQUANTO O PRIMEIRO DIA DE INVERNO ERA SOMBRIO E ENCLAUSURADO, O DESPERTAR DO VERÃO CONVIDAVA OS ARCÉH A DEIXAREM SUAS CASAS. Todos viviam a expectativa de ver o degelo e, ao primeiro raio do sol, soltar fogos de artifício e jogar bolas de tinta colorida uns nos outros. Era uma forma de celebrar o renascimento da vida, o retorno da alegria e, acima de tudo, a abertura do portão e dos portos do lado continental de Arcéh para permitir a chegada de pessoas de outras regiões e também de carruagens abastecidas com produtos diferentes daqueles produzidos na ilha.
Depois de certo atraso e muita correria, a família Sotein conseguiu chegar pouco antes do anúncio oficial. Ainda tiveram tempo de rezar pela alma de Madame Lita e depositar flores aos pés da estátua. Diferente da sra. Sotein, que visitara a mãe quase toda semana durante os cinco anos de inverno, era a primeira vez que os outros viam Madame Lita. Por isso, levaram um choque ao ver o contraste entre a expressão de pânico da maioria das outras estátuas e o semblante tranquilo da velha senhora.
Se não estivesse coberta por aquela camada de gelo, Lita Delgo pareceria dormir.
Alguns passos atrás, Sâmia se mantinha distante do grupo. Era grata por ter tido a oportunidade de se despedir da avó ainda em vida. Ela já dissera para Madame Lita tudo o que seu coração mandara. Suas lágrimas foram derramadas no momento certo e enxugadas pelas mãos da própria Lita. Sâmia apertou Lara em seus braços e sentiu o perfume de flores da pequenina.
"Que dia perfeito!".
Quando o sol deixou a preguiça de lado e decidiu abrir espaço por entre as nuvens, cornetas soaram do alto das torres e tudo explodiu em alegria: a banda de Arcéh tocou o hino da cidade com fileiras de tambores e trompetes. A marcha dos músicos retumbou pelas paredes das casas, cada vez mais alta e convidativa; das janelas, as pessoas balançavam seus panos vermelhos e dançavam nas sacadas; fogos de artifício explodiram pelo ceu, a fumaça colorida das bolas de tinta tomou a cidade e a cantoria dos arcéh varreu a orla de ponta a ponta. Quem não estava acostumado ao evento se perguntava se o gelo derretia em função dos raios solares ou se devido a energia emanada de tanto entusiasmo do povo. O azul aos poucos surgiu pelo ceu e o saudoso barulho das ondas tomou Arcéh.
Saias se agitavam durante as danças, mães seguravam as mãos das crianças e rodopiavam pelas praças, as barracas de comida exibiam cores e sabores; na ponte, fileiras de arcéh com coroas de flores nas cabeças recebiam os visitantes com abraços e pétalas ao ar. Os sinos das três torres tocavam em uníssono e acompanhavam a melodia das canções, sem destoar de nenhuma nota.
Arcéh era só sorrisos.
E, quanto maior o sorriso, mais fechados ficam os olhos...
Ninguém estranhou a figura de máscara dourada com um largo sorriso e longas vestes brancas no meio da multidão. Dançava com as pessoas, brincava com as crianças e estourava bombas de tinta por onde passava. Sua própria roupa já estava manchada com as mais variadas cores. Mesmo assim, não parecia se importar e continuava em sua alegria. Poucos o olhavam, de fato: a figura movia-se com suavidade, desviava das pessoas com tamanha rapidez que muitas só sentiam uma leve brisa causada pelo farfalhar da sua roupa; outras apontavam um rastro de luz dourado, piscavam e, ao procurarem sua origem, ficavam com caras de bobo sem saber o que haviam visto.
E não viam.
#pratodosverem | Descrição da imagem: em meio a uma explosão de fumaça de cores diversas, onde pessoas pulam e dançam pelas ruas, vê-se um primeiro plano um homem de mortalha branca com máscara e luvas douradas. Ele oferece um saco de pano onde dentro tem várias bolinhas coloridas.
***
A alegria mascarada rodopiava em meio a uma chuva de bombas de tinta atiradas por um grupo de crianças quando percebeu a garotinha de cabelos brancos nos ombros do pai. A face risonha inclinava a cabeça de um lado para o outro como se atraída por aquela arcéh tão peculiar. Sem tirar os olhos da menina, agarrou o braço de um rapaz que passava ao seu lado.
— Quem é aquela? - perguntou com voz séria, mas calorosa.
— Hã? Ah, aquela é a neta dos Sotein e dos Voggi, nossa pequena Lara. É a atração da cidade!
— E os cabelos brancos? Doença, maldição, acidente... O quê?
O outro sorriu e balançou a cabeça.
— Você é de onde, hein, cara? Essa história já é tão batida...
— Eu não sou desta região. Venho de longe.
— Ah, é visitante. Tá explicado! O pai, Phil Voggi, aquele que está com ela, sobreviveu a uma das noites de inverno de Arcéh. Isso você conhece, né? Pois então, dizem que a magia que ele recebeu quando estava na barriga da mãe passou para a menina.
O mascarado atentou para as outras pessoas ao lado do pai e da garota, inclusive para a jovem mulher com um menino no colo.
— O menino também é filho deles?
— É, é sim. - o rapaz já estava desconfiado com tantas perguntas. Era comum os continentais se encantarem pela história fantástica da família, mas não ao ponto de querer detalhes para além de Phil e da pequena Lara.
— E por que o cabelo dele também não é branco?
— Ah, meu senhor, isso eu não sei. Vá lá e pergunte! - e saiu apressado de perto do homem, olhando para trás e questionando-se que tanto interesse um tipo como aquele teria nos Voggi ou nos Sotein.
O mascarado caminhou em direção à família. Desvencilhou-se das pessoas e ignorou os chamados das crianças. Não pareceria preocupado em ser rápido ou furtivo. Estava focado apenas em Lara.
Dessa vez, desejava ser visto.
— Que menina linda. - elogiou com voz clara e alta. Phil se virou e ficou frente a frente com os olhos escuros da máscara, sem conseguir distinguir nada lá dentro. — É sua filha?
— Sim... - o Voggi sentiu uma sensação. Não soube explicitar qual. Pensou ser a máscara, mas haviam outras pessoas fantasiadas e também mascaradas. Enquanto o homem continuava a falar, percebeu o tom de voz gentil demais e os movimentos corporais controlados. Um formigamento tocou o rosto de Phil e ele interrompeu o falatório do outro,
— Desculpe, nós nos conhecemos?
— Não. É impossível! Eu venho de muito longe. Só estou de passagem.
— O senhor vem de onde, então? - Phil, porém, não teve tempo de ouvir a resposta. Lara estava irrequieta em seu ombro. Encantada com o colorido das bombas de tinta, a menina também queria jogar bombas nas outras crianças. Com a oportunidade surgida, o mascarado pôs a mão dentro das vestes e retirou um saco cheio delas, das mais variadas cores e tamanhos. Olhou para cima e estendeu o presente à pequenina. Quando Lara estava prestes a pegar, Sâmia correu para perto.
Ela sentira a mesma sensação estranha ocorrida ao marido
— Ela não pode aceitar, não é Lara? Nós já vamos embora e você já brincou bastante por hoje, meu bem.
— Mas mamãe...
O homem insistiu.
— É apenas um presente, minha dama, nada demais. Eu lido com muitas crianças e sei o quanto elas gostam de toda essa fumaça colorida. Veja minha roupa como está!
Sâmia e Phil trocaram olhares de esguelha e, para evitar a continuidade daquela conversa, cederam à oferta.
— Tudo bem, Lara. - Phil ajoelhou-se para a menina ficar cara a cara com o mascarado. Algo dentro dele lhe dizia para mantê-la em seu ombro, segura. — Pegue e agradeça a gentileza.
— Obrigada, moço! - pegou o presente e já levava a mão para um aperto. Depressa, Sâmia se interpôs para impedir que o mascarado pegasse na mão da menina.
— Obrigada pelo presente, senhor. Agora me desculpe, mas está na hora de irmos embora. Não é, Phil?
— Sim. Temos compromissos em casa.
O misterioso pendeu a cabeça para um lado, o sorriso bobo da máscara em contraste com a escuridão dos olhos.
— Sim, é claro. Eu entendo. - recuou dois passos e contemplou a cena enquanto a família se apressava em arrumar as coisas e sair dali o quanto antes. Esperou o momento certo. Ele sabia ser paciente. Quando Sâmia se afastou do grupo para pegar uma das mochilas, ele se aproximou, sorrateiro.
— Sabe, senhora, eu acho que ela é muito, muito parecida com o pai.
O comentário fez Sâmia paralisar e voltar-se para encarar o homem. Tentou manter a expressão serena e agradecer, como fazia sempre que alguém lhe dizia aquilo. O nascimento de Lara obrigara Phil a contar a toda a cidade a história sobre o seu nascimento. Tornara-se comum ouvir comentários como aquele. Mas, daquela vez, ela percebeu um ar de maldade na frase. Estava tensa, na defensiva, molhada de suor. Sem conseguir se controlar, suas mãos tremeram e a mochila caiu espalhando mamadeiras e pacotes de comida pelo chão.
Uma brisa correu entre os dois.
Sâmia engoliu um grito.
Debaixo do capuz, uma mecha de cabelo branco surgiu.
Largou as coisas e correu para perto dos outros.
— Phil, vamos embora. Rápido!
— Mas a mochila... E as coisas...
— Sâmia, você está branca! - comentou Margareth ao fitar a filha.
— Não importa. Vamos logo! - pegou Kevin do colo da mãe e saiu desabalada puxando o marido pela mão. Preocupados, o senhor e a sra. Sotein se apressaram em seguir o casal.
Parado no mesmo lugar, o sorriso do mascarado pareceu aumentar ainda mais. Olhou para baixo e, em meio à confusão de coisas espalhadas da mochila, notou um medalhão. Agachou-se, pegou a joia e a abriu: de um lado, havia o retrato pintado de Lara, do outro, o do irmão. Guardou o objeto, levantou-se e olhou para o mar.
Diferente de antes, quando caminhava por entre a multidão, agora ninguém parecia notá-lo. Estavam cegos para ele. Ele queria assim. Retirou a máscara e a jogou na água. Os raios do meio-dia iluminaram seu belo e delicado rosto, os olhos amarelos voltados para as nuvens, pensativos.
"Que dia perfeito!".
Seu sorriso era tão grande quanto o emulado pela máscara. Fechou os olhos e deixou o sol banhar o seu corpo. Um clarão explodiu sobre a cidade e o homem sumiu.
A festa continuou como se nada tivesse acontecido.
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