O BASTIÃO DOS UNAGOR (PARTE 5)
#pratodosverem | Descrição da imagem: de um lado, vê-se o Unagor Oiv. Do outro, encarando-o, Drenton o desafia. Uma luz vermelha passa pelos olhos dos dois
***
SÂMIA OFEGOU. Pediu ao pai para descer e relatou a ele e à Erwank a situação. Higor balançou a cabeça.
— O Unagor perdeu o juízo! Não há como saber de quem é o casaco.
A garota mordeu os lábios e perguntou, aflita:
— O s-senhor tem certeza?
— Bom, sim... Seria uma acusação muito...
Higor interrompeu a fala quando Drenton tornou a esbravejar com os objetos nas mãos. Andou pelo porão mostrando-os a cada Unagor e parou mais uma vez diante da plateia.
— Agora vocês veem? Não apenas incitaram um urso contra nossas terras como o fizeram pela ponte, pelo meio dos nossos entes queridos congelados em seus leitos de descanso. E não pensem que é apenas este pedaço. Não, meus amigos, não é! Vão lá, vão até a ponte! De um lado ao outro verão a destruição de muitas das estátuas. Eu vi cabeças estraçalhadas e corpos inteiros destroçados, pisados, esmagados pela ganância dos continentais. – aguardou a informação fazer efeito e saboreou os rostos perplexos dos arcéh. — Mas, há algo que eu descobri que é ainda pior: quem deixou o urso invadir a cidade... foi um arcéh!
A revolta dos presentes extrapolou as paredes e pode ser escutada do lado de fora da casa. Muitos dos trabalhadores da Primeira Estufa, assustados com a gritaria, largaram seus afazeres e postaram-se perto da casa, temerosos pelos rumos daquela reunião. Lá dentro, os demais Unagor discutiam a impossibilidade daquela informação. Oiv Ó Midhir elevou a voz.
— Acredito que o senhor não tem como provar isso, Unagor. É uma acusação muito séria e impossível de ser provada.
— Não há o que ser provado! – argumentou outro senhor. — Um arcéh jamais faria algo desse tipo, contra a própria cidade! O senhor Paberos está exagerando!
Drenton encarou Oiv por alguns segundos e, para a surpresa de todos, cuspiu em seu rosto.
— Cala-se, monstro! Muito me admira que você tenha a ousadia de sair na rua mostrando suas vergonhas! Uma mulher que diz ser um homem. – Paberos aplaudiu e gargalhou. — Não me admiraria se descobrissem que você foi a responsável por tudo isso.
Higor teve que segurar Erwank para ele não correr para cima do Unagor. O próprio sr. Sotein fazia um esforço para não fazer o mesmo. Outras pessoas pareciam tão incomodadas quanto eles. Para a surpresa de Sâmia, Oiv permanecia com o olhar sereno, na mesma posição de antes, o rosto ainda cuspido voltado para seu acusador.
— Você tem medo de mim, Drenton.
— Oh, não me diga?! Vai dar um espetáculo agora, Madame Ó Midhir?
— Não. Você já faz isso muito bem. Mas é claro que todos aqui sabem da verdade, não é? De por que você não gosta de mim? – os presentes olharam para o rosto de Paberos e se espantaram ao vê-lo vermelho, sem palavras. Oiv olhou para frente e respirou fundo.
— O "grande" Drenton Paberos, como toda a Arcéh sabe, queria que antes, quando eu ainda não sabia quem eu era em minha essência, eu me casasse com o filho dele, Lafon. E foi durante esse período que eu soube quem era de verdade. Estou errado, Drenton?
O Unagor permanecia no mesmo lugar, o ódio em cada poro do corpo. Amassava o casaco na mão como se estivesse com o pescoço de Oiv entre seus dedos.
— Não, ele sabe que eu não estou errado. Eu conversei com Lafon e expliquei a ele a minha situação. Eu fui sincero. E essa é uma parte da história que poucos de vocês sabem: Lafon entendeu. Me entendeu. E, mesmo assim, quis prosseguir ao meu lado.
A plateia estava muda. Sâmia tinha a dúvida em sua mente. Lembrava-se da conversa com o senhor Ó Midhir quando estivera na estufa. Lembrava-se da cena em sua mente quando viu aquele vulto correr atrás da garota pelos corredores da estufa. Oiv prosseguiu.
— Dias depois, como todos aqui sabem, Lafon apareceu à beira da morte e Drenton pôs a culpa sobre mim. Pois bem, senhoras e senhores: quando os mudos têm a chance de falar, verdades devem vir à tona...
Saiu de trás da mesa e ficou frente a frente com Drenton. O ambiente ficou ainda mais tenso. As pessoas seguravam o fôlego, muitas delas temerosas por um embate entre os dois Unagor. Na mesa de reuniões, Madame Lita olhava de um homem para o outro, o olhar em pura expectativa. Os demais Unagor nem ousavam se mexer. Contrário à todo esse pesar, quando Oiv falou suas palavras ressoavam apenas tranquilidade e tristeza.
— Dias depois de eu ter conversado com Lafon e revelado quem eu era de verdade, o senhor Paberos soube e me convidou para ir até a sua casa. Disse que queria conversar comigo, acertar as coisas... Foi uma armadilha: o filho dele não estava lá. Ele havia mandado Lafon para longe da cidade, para longe de mim. Quando eu cheguei, ele me disse palavras terríveis, me ameaçou e quis que eu me deitasse com ele. Como eu recusei, ele me perseguiu e me forçou a fazer o que eu não queria. Na manhã seguinte, por coincidência, Lafon estava castrado...
Todos ficaram calados.
O silêncio parecia brotar das paredes e tapar a boca das pessoas. Higor arfava, a expressão confusa no rosto em par com o nojo marcado sobre a face de Erwank. Na mesa, Madame Lita tapava a boca com as mãos e olhava de Oiv para Drenton como se não acreditasse no rumo tomado pela reunião. Os demais Unagor tinham os movimentos paralisados, a tensão sobre suas costas. Alguns na plateia balançavam a cabeça, descrentes no nível de revelações alcançado pelo Bastião.
— Unagor Ó Midhir... – o senhor da Nona Estufa, Unagor Hugun, foi o primeiro a falar. Estava tão branco quanto o algodão da plantação. — O senhor tem...
— Provas? – Oiv sorriu, triste. — Não. Não teria como. Infelizmente, eu não tenho...
— Então... Oh, pela Nyrill! O que está acontecendo? Por que isso agora?
— Para mostrar o quanto Drenton é capaz de tudo para alcançar o que ele quer. Sejam as terras do meu pai, a reputação "perfeita" para o filho ou poder suficiente para dominar todas as estufas e fazer o que bem quiser com esta ilha. Nem que para isso precise convocar uma guerra contra o continente.
Todos se viraram para o acusado, parado em frente à Oiv ainda com o casaco e o braço congelado nas mãos, já aos gotejos pelo piso. Esperavam por um rompante, uma réplica, um golpe ou algo do tipo; esperavam pelo esbravejar daquele tido como o mais temido entre todos os Unagor; aquele cuja voz, quando ouvida ao longe, era capaz de abrir passagens e fazer tremer quem estivesse no caminho.
Mas não.
Com toda a calma do mundo, o Unagor Paberos guardou as provas na caixa, chamou os guardas para a retirarem do recinto, limpou as mãos e tornou a sentar-se no seu lugar. Pigarreou e ergueu as sobrancelhas:
— Vocês veem pelo o que passo por tentar proteger esta cidade? Meus antepassados fizeram muito por Arcéh e todos aqui sabem disso. Eu fiz muito por Arcéh. E todos também sabem disso. Estou aqui como sou: de cara limpa, diante de vocês. – apontou para Oiv. — Escutei as acusações desta senhora sem nenhum contraponto. Por que? Porque é o meu dever escutar. Estamos no Bastião. Todos os Unagor podem falar o que bem quiserem. Mas eu pergunto: vocês confiariam em alguém que nem mesmo sabe quem é? Confiariam em alguém que se esconde por trás de uma máscara para não aceitar a própria natureza? Ela mente para si mesma. O que custaria mentir para vocês, para todos nós?
As pessoas continuaram em seu torpor de mudez, porém, Sâmia notou o início de um vozerio de conversas em apoio à fala do Unagor. Entre acreditar em Oiv ou permanecer no preconceito, a segunda opção parecia a escolhida pela maioria. Preferiam a cegueira da escuridão das tradições ao invés do resplandecer da luz ao abrir das mentes. Drenton fingiu um pesar em sua fala:
— Fico triste e enojado que alguém de uma família tão antiga e relevante para Arcéh tenha chegado a este ponto.
— E eu que alguém de sua posição esconda tanto do próprio povo.
— Discursos vazios, senhora? Por favor, sua posição não é nada vantajosa. – Drenton cruzou as mãos à sua frente e encarou Oiv com intensidade. — Não me admiraria que você estivesse junto com os Voggi.
O sobrenome da família Voggi passeou pelas bocas da plateia. Sâmia cruzou os braços para esconder o tremor. Em segundos, toda a sua aventura com Phil correu pela sua cabeça, detalhe a detalhe. "Não há como saber de quem é o casaco", repetiu a frase de Higor várias e várias vezes. O coração estava à mil. O pingente parecia fervilhar em sua pele.
— O casaco que eu mostrei a pouco saiu de dentro da casa dos Voggi. Meus cães farejaram o odor do tecido em várias partes da estufa e por todo o caminho até a casa deles. É um fato: os Voggi tramaram junto aos continentais para permitirem a tragédia.
— Por que eles fariam isso? – alguém perguntou do meio da plateia.
Sâmia não precisou prestar atenção à resposta de Drenton para saber do motivo alegado: Madame Voggi, matriarca da família, era tratada como excêntrica, bruxa; procurada por todos nas situações alarmantes, odiada por todos quando tudo estava em paz. Não a conhecia, mas, segundo a avó, era uma pessoa amável que em nada tinha a ver com as histórias inventadas pela cidade. Contudo, o fato da mulher não revelar suas intimidades para ninguém, ter vindo do continente, não ter família além do neto e ser cheia de mistérios sobre o passado, eram fatos que contribuíam para a estranheza sobre a família Voggi.
— Isso é impossível! – a voz de Madame Lita retumbou e todos se calaram mais uma vez. Uma mulher em posição tão alta entre os poderosos de Arcéh não era algo apenas raro: era impossível, improvável, inimaginável. Lita, a tão aclamada Madame Delgo dos palcos, viúva de Uriel Delgo, era respeitada e ouvida na cidade, ainda mais depois da transformação em sua aparência. Quando ela se levantou, olhos brilharam.
— Eu desafio qualquer um aqui a dizer algo contra Madame Voggi. O que há com vocês? Vão permitir um massacre? Vão dar apoio as ideias de guerra e sangue porque não têm coragem de enfrentar os próprios medos? Por que vocês preferem enterrar as próprias vontades e dar voz a alguém que se diz maior do que esta cidade?
— Senhora Delgo, eu quero lembrá-la de que está aqui só porque excursionou pelas estufas e conseguiu o apoio de alguns. – Drenton fuzilou os Unagor com os olhos. Já preparava uma vingança para cada traidor. — Mas, mesmo que ocupe o lugar do seu falecido marido, a senhora ainda é menor do que nós. A senhora não é um Unagor. É apenas uma mulher. Lembre-se disso e trate de ficar quieta no seu lugar.
— Pois saiba, senhor Paberos, que esta mulher aqui é maior do que qualquer título de Unagor. São dezesseis Unagor; dezesseis homens – encarou Oiv - e uma mulher! Tão forte quanto o senhor, tão capaz quanto qualquer outro homem. – aproximou-se do Unagor Ó Midhir e pegou em sua mão. — Somos fortes não porque sejamos arrogantes. Somos fortes porque a cada pisada que nos dão, a cada cuspe em nossos rostos, nós aprendemos a nos erguer; aprendemos a andar mesmo com as cicatrizes expostas e falar mesmo quando cortam nossas línguas. Quem suporta o que suportamos, senhor Unagor, não fica ferido; cria, sim, um couro grosso, ossos fortes e voz firme para se levantar na hora certa.
Algumas mulheres da plateia aplaudiram, tímidas. Outras, mesmo sem uma manifestação mais esfuziante, tinham os olhares plantados em Madame Lita, as faces lívidas como se a senhora tivesse aberto uma janela e os ventos das verdades lhes refrescassem a memória sobre coisas importantes a tanto tempo esquecidas, enterradas ou ignoradas.
Drenton fez um gesto de desdém com as mãos e bufou.
— Claro, claro. Vocês mulheres nasceram para atrapalhar, como sempre. Mais uma vez, palavras vazias. Por favor, senhores – virou para os demais integrantes da mesa e sentenciou: — estamos fugindo do assunto principal: nosso objetivo aqui é definir uma declaração contr...
— Eu ainda não terminei, Drenton.
— Ah, não?! – cruzou os braços sobre o peito e alargou o sorriso — O que mais vocês têm contra mim, madames? Panos de pratos? Receitas? Dicas para pintar o rosto? Estamos todos curiosos.
— Você lembra de Erwank Maxil?
Paberos uma careta.
— Maxil... Aquele continentalzinho que se instalou em Arcéh, cuida das correspondências e tem um caso com a senhora? Claro, que lembro. Será o primeiro a ser investigado. Está no topo da minha lista. O que tem ele?
Madame Lita olhou para o fundo do porão e acenou para Erwank apresentar-se diante de todos.
— Ele tem algo para mostrar.
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