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NAS PROFUNDEZAS DE ARCÉH (PARTE 6)

SUAS COSTAS DOÍAM A CADA RESPIRAÇÃO. Parecia haver agulhas entre as costelas e os pulmões e a cada inspiração sentia-se espetada e sem fôlego. Precisou de um tempo deitada até dar-se conta de onde estava: no quarto de hóspedes da casa de Madame Lita. Na cama da parede oposta, Phil dormia como se nada tivesse acontecido. Apalpou o próprio corpo e constatou a ausência de traumas. Cambaleou até o garoto e virou-lhe o rosto: havia arranhões e a expressão era de cansaço extremo, mas o garoto Voggi estava bem.

Sâmia deu um beliscão no próprio braço e caminhou para a porta. Não conseguia raciocinar muito bem, mas estava afoita para ver a avó. À um passo da porta, sentiu um vento lhe acariciar a nuca e uma voz nunca esperada naquele quarto.

— Tens mais coragem do que pensei, filha dos Homens.

Sâmia abafou um grito e se virou.

Ele estava ali, de pé em frente à janela. Do lado de fora, o ceu de Arcéh ainda tinha tons da madrugada mesmo com o sol prestes a despertar; dentro, era como se a lua tivesse nascido no quarto. Suas vestes moviam-se sem brisa. Tinha os braços cruzados como se já esperasse pelo despertar da menina há muitas horas. Sob seus pés, a madeira do piso petrificava-se com o frio emanado pelo homem.

Mas ao mesmo tempo não era "ele"...

Seus olhos estavam sem luz, a pele tinha algo de cinza, como se ele estivesse doente. Talvez uma impressão sua, parecia haver olheiras sob seus olhos. O deus parecia cansado e preocupado.

Parecia "humano".

— O milagre de Arcéh exigiu um esforço maior do que previ e, por isso, atraiu uma atenção que eu não achava que atrairia. Andam desconfiados de algo. Pergunto-me se sabem quem és e também que estás aqui, nestas terras. Milagres nunca passam despercebidos.

— Q-Quem sabe de mim?

— Você não deve se preocupar com isso. Por hora, é problema apenas meu. Tens coisas mais importantes para fazer agora. - descruzou os braços e pôs um pacote sobre a escrivaninha.  Folhas de Manon e algas Naaohc. Você tem uma promessa a cumprir. Não esqueças disso.

O deus a olhou por uma faísca de tempo e acrescentou.

— Nem tudo que parece verdade o é, filha dos Homens. E nem todas as mentiras soam tão falsas ao ponto de poderem ser ignoradas. Há verdade onde menos esperamos e resquícios de mentira até na maior das verdades.

— Você f-fala do meu sonho? O sonho que eu tive quando estava dormindo?

— Você não estava dormindo, menina. Estava morta. - Sâmia arrepiou-se. — Mas, como a culpa de tudo não foi sua, os convenci a devolverem sua vida. Portanto, guarde-a bem. No nosso primeiro encontro você foi a protagonista. Neste, você foi uma mera vítima do homem cujos olhos veem apenas o poder.

— O Unagor...?

— Sim. Está lidando com coisas que ele é incapaz de controlar. Em algum tempo, estará arruinado, mas preste atenção: ele não cairá sozinho. Soberbos podem parecer egoístas, mas gostam de lançar correntes nas pessoas e arrastá-las consigo para o abismo. Fique longe dele.

 Por que está me dizendo isso? - o deus cerrou o cenho e pareceu irritado com o tom da pergunta. A menina reformulou-a. —  Quero dizer: p-por que um deus deixaria seus afazeres para cuidar de uma mortal?

O Inverno olhou para o garoto na cama e voltou-se para a Sotein.

— No momento em que você foi capaz de sobreviver aos meus domínios, tornou-se parte de mim. Seu dom criou uma ligação com o espiritual, rompeu a barreira e incomodou os Grandes. O poder não é para todos, filha dos Homens, e quem o detém odeia quando os pequenos se aproximam. Fingem dividir, mas nunca o fazem por inteiro. Por isso erguem muros: para poderem esquecer da escória humana. Naquela noite, você me trouxe para o lado de cá desse muro.

— Somos como cúmplices, agora? - Sâmia sorriu, mas sua alegria foi inútil contra o desdém lançado pelo outro.

— Não. Não somos. Admiro sua coragem. Apenas isso. Fique satisfeita.

Sâmia esmoreceu. O Inverno prosseguiu em sua fala, mas a garota não prestou atenção. A frieza do deus despertou-lhe uma questão e ela o interrompeu mais uma vez.

— Por que você fez isso com a minha avó?

O deus a encarou e, pela primeira vez naquele encontro, sua expressão exibia a altivez demonstrada na Noite da Nyrill. Lá fora, a neve deu sinais de rebeldia e o sol fez menção de empalidecer ainda mais. Ele deu um passo em direção a ela.

— Quem pensas que és, filhote de Humano, para me julgares como um dos teus iguais? Se não tivestes a capacidade de ouvir o que eu disse até agora, não entenderás mil explicações saídas de minha boca. Explicações que não perderei tempo dando a você. Saibas apenas que cumpro minhas promessas e não agi como teus irmãos mortais agem, em uma tentativa de ferir sem ser visto. Se eu quisesse matá-la, teria feito na tua frente, para aprenderes a se portar como deves perante um deus.

Um trovão gritou pela cidade e estremeceu aquele início de manhã. O barulho se mesclou aos cinco badalares dos sinos da Torre Norte em anúncio das cinco horas da manhã.

— E como eu devo me portar? - a frase saiu desgovernada e puxou outra consigo. — Aceitar as mentiras de um deus assassino que aceitou fingir-se de Nyrill para escapar da fúria das pessoas?

O silêncio caiu entre os dois. A temperatura do quarto despencou e Phil começou a tremer. Em um piscar de olhos, o deus conjurou uma lança e a jogou contra a garota. Sâmia não teve tempo de ter reação alguma: o pedaço de gelo rasgou o espaço entre eles em direção à barriga da menina e atravessou-a.

Ela arrepiou-se.

Sentiu uma pontada de dor.

A neve do lado de fora paralisou em pleno ar.

Ela olhou para baixo e apalpou a barriga.

Nenhum estrago, rasgo, sangue ou perfuração havia ali.

— Vou lhe falar mais uma vez: no momento em que você fez a promessa, o Universo costurou novas linhas em seu destino, uma delas atreladas a mim. Posso discordar e lamentar isso, mas estou impedido de agir. Meus poderes não podem afetar nem a você e nem à sua avó enquanto o nosso acordo não estiver concluído, daqui a dez anos.

— D-Desculpe... Eu só estou preocupada com a...

— Eu não me importo com suas desculpas. Não me servem de nada. Há coisas mais urgentes para tratarmos. - fez um movimento com as mãos e surgiram entre seus dedos dois cordões. — Guarde um com você e dê o outro para o garoto. As pessoas que estiverem com eles estarão protegidas. Só use se for muito necessário e lembre-se: vidas dependerão de seus atos e seus atos exigirão mais do que a mera razão. Se fores sensata, você poderá salvar mais de um.

#pratodosverem | Descrição da imagem: diante de um cristal de gelo luminoso, há dois cordões entrelaçados, casa um com uma pedra azulada como pingente.

***

Usar "o quê" e "quando" para salvar "quem", ela não soube. O deus fez a recomendação e logo desfez-se em névoa. Da mesma forma, o motivo de Phil também precisar de proteção ficou sem resposta. Ela pegou os cordões do chão, pôs o seu e depois o de Phil, guardou o saco com ervas e correu para o quarto da avó.

Ou o que sobrara do aposento...

Era como se cada partícula do frio de Arcéh estivesse ali. Do piso às ripas do telhado, tudo virara gelo. Madame Lita ainda flutuava a um palmo da cama, contudo, mais parecia um boneco de cera criado por algum artista devoto do Inverno: os cabelos da senhora, quebradiços e sem vida, assemelhavam-se aos galhos das árvores mortas da ilha, o tecido da camisola não se movia e a pele da sra. Delgo competia com a aparência de qualquer cadáver.

A menina fechou a porta do quarto, buscou pensamentos positivos e correu para a cozinha.

Estava na hora de saber se o tal "Chá de Afasta Morte" fazia jus ao seu nome.

Chegamos ao fim do 4º capítulo. Agora, chegou a hora de saber como Lita reagirá ao tal "Chá de Afasta Morte". 👀

É hora do Capítulo V:

😊 "O Despertar de Lita Delgo" 😊

Deixe seu voto, comente suas expectativas e siga para lá!

Abaixo, uma prévia ilustrada do que vem pela frente - Sâmia e seus fardos... 😞

Obrigado pelo apoio! 😉

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