NAS PROFUNDEZAS DE ARCÉH (PARTE 2)
ATÉ O DÉCIMO POSTO DE OBSERVAÇÃO ESTAVA TUDO BEM. Apesar do cuidado redobrado para não esbarrarem em nenhum corpo, Phil e Sâmia seguiam sem dificuldades. Temiam a escuridão da ponte, mas, para a surpresa deles, as tochas dos postos de vigília estavam acesas. O respeito dos arcéh para com seus mortos era algo digno de inveja e, eles comprovaram, mesmo na adversidade do tempo as pessoas tinham o cuidado de acender chamas para as almas dos seus entes. Contudo, talvez preferissem um pouco mais de escuridão: por todo lado reconheciam pessoas do seu convívio social e admiravam-se ao verem alguém cujas atitudes nunca denunciaram o desejo de estar ali.
"A tristeza se mascara com os sorrisos mais bonitos...", Sâmia pensou ao ver a expressão de dor na face de uma das estátuas: ela fora sua professora e de Phil durante a escola; uma pessoa dada a abraços e cuidados com cada um dos seus alunos, sempre pronta a dar uma palavra de apoio, um conselho ou um sorriso.
Encontrá-la trouxe de volta a angústia da garota. Começou a se questionar se não havia sido egoísta ao pedir apenas pelo renascimento da avó quando a professora, talvez, precisasse muito mais de uma segunda chance. A mestra, ela lembrava, não chegava a ter quarenta anos de idade e acabara de ter um filho. Mesmo sem saber da presença de tantos conhecidos naquela noite, sentiu-se culpada por não ter pensado nos demais arcéh na mesma situação de Madame Lita.
— Phil, por que ela fez isso? - os olhos estavam marejados. Estavam sob a luz do décimo oitavo posto. Para a sorte deles, durante o inverno os designados de vigília na ponte só tinham turnos de trabalho durante a manhã. — Ela era tão incrível. Tão... de bem com a vida...
— Por fora, sim. Pena que nunca tivemos a oportunidade de conhecê-la de verdade. Talvez se...
Sâmia o interrompeu.
— Não faríamos nada, Phil... Nunca fazemos, não é?
— Não, não fazemos. Pensamos que a felicidade é a regra de tudo e ficamos cegos para as tristezas ao nosso redor e em nós mesmos. Sugamos tanto dela e nunca nos dispomos a escutá-la... Só víamos a professora...
— ... e esquecemos do ser humano.
O vento arranhava a superfície de gelo do mar. Sâmia teve vontade de chorar uma enxurrada, mas sentiu-se seca, como se até as lágrimas se recusassem a servir alguém tão vil quanto ela. Por sua vez, Phil Voggi tentava evitar pensamentos inéditos para ele, a maioria deles ligados à uma culpa por nunca ter feito "mais", seja por Arcéh ou pela avó, seja pelos amigos ou por ele mesmo.
O bruxulear das chamas pareceu vacilar.
Reconheceram mais pessoas entre os mortos.
Sâmia teve a impressão de ver Uriel Delgo entre os cadáveres.
Phil viu muitas pessoas parecidas com ele.
Começou a se encolher, abafado pelo fardo das lembranças e pela culpa. Culpa de quê, ele mesmo não sabia. Mas a morte lhe trazia um fardo, a consciência da finitude; uma vontade de gritar, um arrependimento por coisas feitas, não feitas e desfeitas.
— Não se entregue... - o apelo da garota saiu em um sussurro. Dizia isso para ele e também para si: acabara de ter a visão do telhado da sua casa caído sobre Margareth e Higor. Sentia-se cansada.
A avó acabara de falecer.
Ela fracassara.
Decepcionara a todos.
Não era digna daquela cidade; não era digna do próprio nome.
Cerrou os olhos.
Flutuava para longe.
O deus a odiava.
"Mentira..."
De repente, Sâmia sorriu. Não tinha provas, não tinha certezas, mas aquilo era mentira. Tinha convicção daquilo. Sobrevivera à noite da Nyrill. Era uma arcéh, de fato. Não tinha motivos para envergonhar-se de nada.
E abriu os olhos no momento certo de jogar-se sobre Phil e salvá-lo do tiro.
***
#pratodosveem | Descrição da imagem: vê-se o Unagor Drenton empunhando uma espingarda. Ele a sustenta em um dos ombros e mira para frente.
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