NAS PROFUNDEZAS DE ARCÉH (PARTE 1)
#pratodosverem | Descrição da imagem: vê-se um casado perdido no vento com flocos de neve ao redor.
***
— EU NUNCA MAIS COMO MAÇÃ NA MINHA VIDA! - Phil apalpou os bolsos e retirou duas maçãs. Jogou uma para Sâmia e deu uma mordida na outra. — Não me olha desse jeito, não! "Quase morte" dá fome!
— Minha cabeça está à mil...
— Bom, não é pra menos: você foi salva pela mordida de um cachorro morto! Tem ideia do quanto isso é bizarro?
— Até agora não consigo entender como eu não cai lá de cima.
— Tenho minhas dúvidas se aquilo era um cão de Halbriew puro, mas, mesmo que fosse apenas uma mistura com outra raça, com certeza ele herdou a principal característica dos Halbriew: morder e não soltar. É por isso que, antigamente, eles eram muito usados para proteger as propriedades.
— Eram? Acabamos de ver um Halbriew!
— Até onde eu saiba, eles foram proibidos em Arcéh. Os Halbriew pura raça são dez vezes mais violentos do que lobos. Atacam até os donos.
— Afinal, onde o Unagor conseguiu aquela coisa?
— Onde ele conseguiu aquilo tudo! Os cachorros e o pássaro são até compreensíveis. Há mercadores e piratas que comercializam esses animais exóticos. O que me assustou foi o resto. Você viu o tamanho daquelas plantas? Tinham tomates maiores do que a minha cabeça e se quiséssemos dava para dormir dentro de uma das abóboras! Não é de se estranhar que os outros Unagor tenham algumas dificuldades durante o inverno e Drenton continue suas vendas como se nada tivesse acontecido.
— Se ele tivesse nos pegado...
— Bom, ele quase conseguiu, né?! - Phil levantou-se e tirou o casaco. Nas costas, havia um talho feito por um dos arpões. Sâmia levou as mãos à boca, mas o Voggi tratou de acalmá-la. — Parece feio, mas foi só superficial. Estou acostumado. Pescamos com arpões, lembra? Já sofri acidentes bem piores. Vovó cuidará disso aqui em um piscar de olhos. E você, está ferida?
Sâmia negou. Apesar dos arranhões nos braços, estava intacta. O coração, contudo, ainda estava à mil. Cair de uma altura daquelas sem saber onde iria desabar foi algo assustador, sim, mas, agora que estava tudo bem, gostara da sensação. Fizera algo improvável para qualquer arcéh, ainda mais para ela, regida pela superproteção de Margareth Sotein. Aquele voo superara toda a sua lista de desejos para o aniversário de 13 anos.
Só perdia, claro, para o milagre de ter sobrevivido à Nyrill.
"Pena que não poderei nunca contar essas coisas para ninguém...".
— Não pode mesmo! - o rapaz deu-lhe um sorriso cheio de astúcia. — Primeiro, porque não vão acreditar em você. Segundo, porque se isso chegar aos ouvidos do Unagor nós estaremos perdidos.
— V-Você por acaso leu meus pensamentos?
— Ler? - Phil jogou o casaco para ela e sorriu. — Quem precisa ler pensamentos quando se conhece os amigos como a palma da mão? Está na sua cara o quanto você está empolgada com isso tudo. Desde o colégio você gosta de transgredir leis, senhorita Sotein.
— É, um pouquinho...
— Sei...
Ele aproximou-se do parapeito do terraço e olhou a cidade. A Torre Sul erguia-se à direita e à esquerda, sobre a brancura do mar, estava uma linha preta em direção ao continente. Phil sentiu um arrepio. Em seus vinte e um anos de vida nunca estivera na ponte durante o inverno.
Seria seu primeiro contato com os tão falados cadáveres-estátuas de Arcéh.
Virou-se para a amiga e suspirou.
— Manon e Naaohc, não?! Vamos lá!
A NEVE PARARA DE CAIR E SOMENTE A BRISA DA MADRUGADA ANDAVA PELAS RUAS DO CENTRO DE ARCÉH. Os telhados das casas haviam sido engolidos pelo branco e a penumbra crescia em cada esquina; os postes mais pareciam hastes de gelo, as pedras de calçamento das ruas eram um convite à um tombo e nas janelas não havia sinal de nenhum arcéh.
Ao menos aqueles dois aventureiros não seriam vistos.
Phil e Sâmia seguiam mais uma vez amarrados um ao outro. Mesmo sob os protestos do garoto, ela ia à frente para protege-lo do vento e para evitar uma piora no estado dos ferimentos de Phil. Naquela umidade, o ferimento de arpão nas costas e o dedo quebrado era uma entrada para problemas de saúde piores. Ela tentara recusar o casaco dado por ele, mas o Voggi era tão orgulhoso quanto era teimoso. Agora, ele seguia de braços cruzados, o rosto cabisbaixo contra o frio da beira-mar. A sugestão dela para os dois andarem juntos sob o mesmo casaco o deixara em ebulição, o rosto vermelho como se estivesse ao sol do meio-dia do verão.
"Quero só ver como vai ser quando chegarmos à ponte, teimoso...".
Pegaram uma ruela e logo estavam na avenida principal de Arcéh. À frente, o Pórtico de Entrada da ilha agourava a cidade e convidava à um passeio pelo cemitério formado na ponte. O silêncio ali tinha algo de solene, mas também trazia uma sensação de peso aos corações dos jovens.
— E então, você vai aceitar seu casaco de volta?
— Eu já disse que estou bem.
— Phil, nós vamos atravessar esse bando de estátuas congeladas. A temperatura na ponte deve estar dez vezes mais baixa do que aqui. Isso sem contar o vento e o oceano congelado lá embaixo.
— Você anda bem informada para alguém que não saiu de casa ontem à noite...
— Eu já estive na ponte quando era pequena, esqueceu? E você também. Fizemos muitos treinamentos na época da escola. - retirou o casaco e devolveu para ele. — Eu estou bem, acredite.
Phil olhou para o casaco em suas mãos e encarou Sâmia. Havia um tom de desafio em seu rosto. Aproximou-se da amurada, sorriu e jogou a roupa ao vento.
— Pronto, não há mais discussão por causa de casacos. Agora estamos de igual para igual.
Sâmia mordeu os lábios para não gritar com o amigo. Fechou os olhos e contou até três.
— Eu espero que você saiba o que está fazendo, Phil Voggi...
Passaram pelo pórtico e iniciaram a caminhada.
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