FUGA PELA NEVE (PARTE 2)
A ESPERANÇA DE ENCONTRAR VESTÍGIOS DA VELHA ESTRADA DESAPARECEU POUCOS METROS ADIANTE. No começo, até encontraram algum cascalho por entre o mato como um indicativo do caminho. Seguiram por essas marcas e logo perceberam o erro: após voltas e voltas, tudo era uma confusão de lama, galhos e buracos e Rosan já estava distante da trilha principal. Nas margens do bosque, espinheiros cresciam à vontade e em alguns pontos o mato estava alto ao ponto de alcançar a metade da altura dos troncos das árvores. Para deixar a situação mais alarmante, ainda tinha a chuva pesada que obrigava Sâmia a seguir encolhida sob o lombo do cavalo, os olhos fechados e as mãos firmes na crina de Rosan. Mesmo com o gosto esquisito na boca, ela se sentiu agradecida por aquela bebida dada por Phil: o mundo poderia congelar, ela continuaria aquecida.
Seria o cadáver mais quentinho da história da humanidade.
Em condições normais, a travessia não chegava a durar meia hora, mas, pelos cálculos de Sâmia, o último badalar da noite estava prestes a soar. Em outras palavras, já caminhavam a quase uma hora. Não tinha mais como negar: estavam perdidos. A copa das árvores em arco a impediam de se guiar pelo ceu e até os instintos de Rosan pareciam mais lentos. Como o bosque não era isolado e tinha ligação com as florestas ao redor, corriam o risco de estarem muito distantes da Estufa de Naus e cada vez mais ao norte da ilha. Entretanto, diferente do que Sâmia chamaria de lentidão ou de falta de direção, o cavalo estava bem atento a tudo.
Sim, havia algo de estranho ao redor. Rosan, apesar de aparentar confiança, mantinha as orelhas erguidas e apontadas para frente, o corpo de vez em quando tomado por certo tremor. Acima das gotas de chuva ou do farfalhar do mato a cada passada do cavalo, um ruído distante vinha pela floresta, sorrateiro, decidido e cada vez mais próximo. O animal tentava manter sua dona segura e para isso buscava distinguir cada som.
Havia algo de ameaçador por ali.
Rosan estancou.
Sâmia abriu os olhos e fitou a escuridão. Mal conseguiu distinguir os troncos mais próximos.
— Em frente, Rosan. - sussurrou e voltou a se debruçar sobre o cavalo. Ele não saiu do lugar e fez menção de voltar. — Rosan, vamos...
A garota mal se preparou para puxar as rédeas quando algo bateu contra eles. A pancada a fez voar alguns metros e cair com força. Abafou um grito. Algo se rompera em seu corpo. A vista embaçou, o braço direito estava quebrado. Sâmia ouviu rugidos e relinchos preencherem o ar. Tudo rodava e vultos estavam ao redor dela. Quando deu por si, estava entre Rosan e um urso gigantesco. Mesmo com um corte em uma das patas, o cavalo estava mais preocupado em proteger sua dona do que a si mesmo. Era um esforço corajoso, mas de certo modo, em vão: mesmo no chão, Sâmia rolava de um lado para o outro para fugir das investidas do urso; os dentes afiados passavam a poucos centímetros do seu rosto, sem se importar com as patadas ou as mordidas do cavalo.
Não era fome ou fúria o motivo daquele ataque; aquele urso queria Sâmia.
Pela terceira vez, haviam se encontrado.
O combate durou pouco tempo. Cansado da brincadeira, o urso se ergueu sob as patas traseiras e deu o golpe final, o que obrigou Rosan a recuar. O cavalo despencou ao lado da garota. A fera postou-se sobre a menina. Debaixo das presas enfurecidas, o bafo quente e fedorento em seu rosto, Sâmia cerrou os olhos e esperou pelo pior. Aquele urso não era uma fantasia; um sonho. Ela sentia os pelos lhe roçarem o rosto e o peso das patas perto do seu corpo.
O urso farejou seu rosto.
#pratodosverem | Descrição da imagem: vê-se Sâmia deitada na grama congelada com um urso por cima. A garota está com as mãos dentro da boca do animal enquanto sangue escorre para cima do rosto da personagem.
***
Nada aconteceu.
Ela abriu os olhos devagar e sentiu o coração disparar: o urso a fitava com uma expressão que misturava raiva e susto, um olhar brilhante, astuto e bem conhecido dela. Um olhar de interesse já visto por ela antes.
— Você?! - impressionou-se Sâmia.
O urso se afastou aos poucos, sem desviar a atenção de sua presa. Cambaleava de um lado para o outro como alguém que acaba de receber a terrível notícia de uma tragédia. Com dificuldade, Sâmia se ergueu um pouco e o encarou. Não, aquele não podia ser o mesmo olhar. Era sério e respeitoso como o do deus gelado, mas havia algo bruto ali; um sentimento diferente, dominador.
Ela prendeu a respiração e se arrastou de costas até esbarrar em Rosan. Torceu para o cavalo não estar tão machucado e olhou para frente. O urso continuava parado, parecia digerir as palavras dela; farejava o ar e rosnava não para a garota, mas para cima, como se amaldiçoasse alguém. Lutando para não desviar o olhar, Sâmia tateou a terra até tocar em algo pontiagudo: um galho firme e de bom tamanho.
Ela soltou um suspiro.
O bicho percebeu suas intenções e atacou.
Sâmia só teve tempo de apoiar o galho no chão e armá-lo contra o urso. Sentiu o peso do animal despencar sobre seu corpo e um gosto de sangue na boca. A visão escureceu e tudo rodou. Enquanto caia em um abismo de dor, pensou ter ouvido o badalar distante dos sinos de Arcéh seguido por gritos e pelo trote de um cavalo. Juntou as últimas forças e ergueu a mão em direção ao vazio.
Escutou alguém chamar seu nome.
Estava longe.
Desmaiou.
Pois é...
Essa menina precisa de um banho de sal grosso para ver se tira essa má sorte!
Clique na estrela, tenha pensamentos positivos e... reze por Sâmia...
Até breve para o nosso décimo quarto capítulo.
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