DESPEDIDAS E REENCONTROS (PARTE 3)
NO DIA SEGUINTE, TUDO TRANSCORREU SEM NENHUM IMPREVISTO. Além dos Sotein e de Madame Voggi, Oiv Ó Midhir e mais alguns amigos de Phil e de Sâmia compareceram ao jantar, reunidos em torno de uma mesa farta. Margareth, empolgada com a presença do Unagor Ó Midhir e paranoica com a meta de "fazer uma recepção digna de alguém de tal porte" corria de um lado para o outro para não deixar o prato de ninguém vazio. Higor atualizava Oiv sobre a situação das estufas, Madame Lita e Madame Voggi contavam histórias escabrosas sobre seus tempos de juventude para os demais convidados e, alheio a tudo isso, Phil Voggi perdia-se nos próprios pensamentos.
O incômodo dele era visível e o Voggi não parecia nem um pouco disposto a escondê-lo. Organizara a comemoração junto com Margareth e, nos dias anteriores, parecia tão empolgado quanto a mãe da aniversariante. Porém, ao chegar os primeiros ventos frios e a contagem de horas para a Noite da Nyrill, o ciúme falou mais alto.
Durante todo o verão e o restante do inverno passado, Phil torceu tanto para esse dia não chegar que, por alguns meses, esqueceu-se de tudo o que conhecia sobre a aventura secreta de Sâmia. O destino, porém, não colaborou, um milagre não aconteceu e a insegurança tomou conta de cada sala dos seus pensamentos. Tinha noção do quanto aquela noite significava para a esposa. Não era cego: ele sabia e via como ela andava ansiosa para esse dia chegar. Por isso, quando todos foram embora, quase sufocou Sâmia com um abraço.
Se pudesse, nunca mais a soltaria.
— Eu te amo. - sussurrou ao ouvido dela enquanto o sino da Torre de Arcéh badalava cinco vezes para anunciar o toque de recolher e dar início ao período de reclamações da cidade após cinco anos de um belo verão. Com a voz trêmula, ele continuou. — Amanhã eu te espero para tomarmos café juntos, tá? P-Promete pra mim?
— Phil, está tudo bem. Nada muda...
— Sâmia, você promete pra mim? - a firmeza com a qual ele enfatizou cada palavra a tirou do chão. Sem coragem para iniciar uma conversa sobre os próximos passos e com uma sensação estranha na boca do estômago, ela confirmou com um balanço de cabeça.
Phil voltou a abraçá-la.
Cada um em seu mundo, ambos estavam apavorados pelo dia seguinte.
Mesmo assim, ele a ajudou a arrumar a casa, fingiu ajudar Sâmia a acomodar Madame Lita no quarto de hóspedes e acompanhou os pais dela até em casa. Depois, sem conseguir falar-lhe nada, entrou em uma carruagem com a avó e partiu para a casa de Madame Voggi.
Pelo sim, pelo não, preferiu não dormir em casa naquela noite.
— Vai dar tudo certo, querida. - Madame Lita abraçou a neta. As duas agora estavam sozinhas na casa, a noite já com tons de friagem e o silêncio caído sobre a cidade. — Amanhã será outro dia, outro passo.
— Estou tremendo, vó.
— Eu também. Eu também... Mas não podemos ficar paradas, não é?! Temos uma promessa para cumprir.
Sâmia confirmou e seguiu para o estábulo. Ao casar-se com Phil ele fizera questão de levar seus dois cavalos para viverem com eles e dera de presente à esposa um novo animal. O combinado era chegarem à cidade, deixarem os cavalos nas proximidades da casa de Madame Voggi e dali seguirem a pé. Phil ficaria responsável por recolhê-los.
Sem mais preocupações, ela e Madame Lita selaram os cavalos e partiram a toda rumo à ponte.
***
#pratodosverem | Descrição da imagem: com a cidade ao fundo, destacando-se uma das torres, Sâmia e Madame Lita cavalgam sob um céu estrelado e uma lua cheia amarelada.
COMO HÁ DEZ ANOS, CENTENAS DE PESSOAS DESCIAM PARA A ORLA DE ARCÉH. A sociedade podia ter mudado, certas tradições sido deixadas de lado, tragédias acontecido e chocado a população, nada demoveria os arcéh de seguirem o velho ritual, alguns em busca de uma revelação, muitos com o único intuito de partir desta vida.
Sâmia e Madame Lita chegaram ao Pórtico de Entrada e, sem vacilar, caminharam pela ponte até o local combinado. Assim como da outra vez, a aurora boreal enfeitava o ar e conduzia o movimento do oceano junto com o vento. Ela pensou em dizer alguma coisa à avó, mas não havia mais nada a ser dito. As pontas de todas as arestas dessa história já estavam aparadas e, ela tinha noção disso, nenhuma palavra de última hora valeria a pena. Apenas a abraçou e tentou guardar o aconchego daquela mulher que a acompanhou durante tanto tempo.
As chamas dos lampiões pela orla tremeluziram até se apagarem.
Depois, o escuro correu em todas as direções e logo toda a cidade era um emaranhado de sombras e vultos.
O vento soprou e aquela música suave surgiu no ar. No horizonte, um brilho prateado surgiu e fez a boca de Sâmia ficar seca. O som da água se transformando em gelo tomou Arcéh e, em pouco tempo, tudo não passava de um deserto branco e frio. Sâmia soltou Madame Lita, agora uma perfeita estátua, e olhou a expressão no rosto da senhora: Lita Delgo estava feliz, tranquila.
Era o fim dessa história...
... E O INÍCIO DE OUTRA.
Uma tempestade de neve teve início quando a figura humanoide caminhou pelo gelo até flutuar mansamente por cima da amurada e pousar em frente à Sâmia, sem nenhum ruído. O rosto era o mesmo de dez anos atrás. Se pudesse comparar as duas épocas, diria até que o movimento do cabelo e das roupas seguia o mesmo padrão. Ela deteve a atenção em seus olhos e esperou pelo impacto, mas não encontrou o olhar selvagem tão esperado.
— Faz muito tempo, filha dos Homens. - saudou o deus com uma voz tranquila. Olhou para o corpo de Madame Lita. — Vejo que, mesmo se passado todos esses anos, você não se esqueceu da promessa. Sou grato por isso. Eu dei a você e à sua avó o que tanto você pediu. E não me arrependo. Porém, - o coração de Sâmia foi para a boca - além dela, vou levar você também.
Sâmia se assustou com a revelação. Deuses podem brincar? Não acreditava naquilo.
— Mas eu sobrevivi! Você não pode levar alguém que suportou o seu poder.
— É preciso. Sua sobrevivência quebrou muitos ciclos. Foi um erro.
— E por que só agora você decidiu isso? - a raiva já tomara a mulher. Ela não mais se importava quem estava na sua frente, se um deus, uma fada ou um mero mortal. Suas ansiedades e expectativas pelo encontro deram vez a uma vontade de bater no rosto daquela criatura. — Você me visitou outras vezes...
— Uma vez apenas.
— Uma vez? Você me observava, eu sei disso! Estava sempre lá em cima - apontou para o céu — brilhando sozinho sobre a ilha e, quando não era uma estrela, vinha atormentar as pessoas aqui em baixo.
O olhar do Inverno tornou-se feroz. A neve rodopiou em nevasca e os ventos arrancaram algumas telhas.
— Sua petulância é motivo suficiente para eu congelar você e deixar apenas a cabeça livre do gelo para morrer aos poucos, sentindo o frio lhe perfurar a carne arrogante. - ela sentiu os dedos dos pés formigarem e lanças de gelo perfurarem as plantas dos seus pés. Mas a raiva ainda superava o medo. Sâmia levantou a manga direita do casaco e mostrou a cicatriz no braço.
— Você tentou uma vez e quer tentar de novo?
O deus olhou para a cicatriz e um pouco do seu brilho pareceu diminuir. A nevasca abrandou e a sensação de frio sobre Sâmia sumiu. Abaixo deles, ouviu o estralo de uma placa de gelo; o movimento flutuante das roupas e do cabelo tornou-se mais lento, como se eles também procurassem compreender aquela cicatriz. Uma parte do tecido se soltou e, feito uma serpente, enrolou-se no braço estendido da mulher. Diferente do que imaginou, ela sentiu um calor naquele gesto.
Quando o deus tonou a falar, sua voz tinha um tom pesaroso.
— Você é um risco para mim, filha dos Homens. Pode destruir o equilíbrio dos meus em relação aos seus e dos seus em relação a mim. Os Homens fingem tolerância, pois estão encantados com essas histórias tolas sobre Nyrills. Mas não hesitariam em retomar as armas caso descobrissem a verdade. E você sabe muito bem que eu não pensaria duas vezes antes de punir tamanho desrespeito. - ele ponderou por um instante e estendeu a mão à ela. — Peço-te, então: para evitar um massacre, venhas comigo.
Sâmia não compreendeu aquele gesto. Deu um passo para trás.
— Se o urso não era você... Quem era?
— Venhas comigo... Sâmia.
Ela sentiu um formigamento no corpo quando o ouviu dizer seu nome. O que estava acontecendo?, ela pensou. Encarou o Inverno e encontrou um cinza trêmulo. Havia medo ali? Receio? No esforço para esconder algo maior, talvez perigoso demais, ele acabava por revelar seus sentimentos. Ela olhou sua mão estendida para ela.
O Inverno tremia.
— V-Você... Você não quer me levar. Eu sei disso. Se quisesse de verdade já teria me congelado com um simples sopro. Por isso eu não morri daquela primeira vez...
— Você não sabe o que fala. Não sabe os problemas que pode causar.
— Quer que eu vá de livre vontade para não se sentir culpado...
— Não duvide da minha bondade! Eu posso matá-la quando eu quiser.
— Então vamos, mate! - Sâmia abriu os braços. Da última vez que agira assim, ele ficara furioso e, de fato, quase a matara. Contudo, daquela deixa, não havia aquela exposição de sentimentos por parte dele. Naquela época, ele ainda soava como um deus impassível; agora, parecia mais... humano; mortal. Mais suscetível à alguma emoção.
Ou assim ela pensou.
— Como queiras. - o senhor do frio entoou um cântico e fez com que a ponta dos pés e dos dedos das mãos de Sâmia começassem a congelar.
A dor era inacreditável e ela gritou. Sentia como se o gelo enraizasse por dentro da pele, como se cortasse e ferisse cada pedaço dela. Os músculos empedraram e ela sentiu o sangue mais grosso. Veias estouraram devido à pressão e ela tentou fechar os olhos, mas as pálpebras estavam petrificadas. A vista embaçou, a língua grudou no ceu da boca, algum osso quebrou. E ela sentiu tudo. O ar faltou aos pulmões e a caixa torácica se comprimiu em direção à coluna.
Não acreditava naquilo.
Pensou na avó e nos pais; pensou no sofrimento de Phil; pensou o quanto sonhou que aquele momento fosse diferente.
Sentiu um toque frio no rosto.
"A morte...", ela pensou.
Mas estava enganada.
***
#pratodosverem | Descrição da imagem: Sâmia e o deus invernal se beijam. Uma aura percorre o corpo dos dois..
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