DEIXAR PARTIR (PARTE 1)
NO CAMINHO DE VOLTA PARA A CASA DE MADAME LITA, OS PENSAMENTOS DE SÂMIA FERVILHAVAM. A decisão da avó de partir continente afora despertou na garota uma urgência em consertar as coisas, não em relação a ela mesma, mas sim em relação à mãe. Desde pequena, a menina se acostumou às brigas entre Margareth e Lita e cresceu ciente do quanto o embate entre as duas, talvez, nunca tivesse uma trégua. Assim como a confusão que acontecera no seu aniversário, cada tentativa de convívio entre as duas mulheres vigorava por poucas horas antes de converter-se em acusações e gritos.
"Prefiro tentar resolver a questão da ilha com o continente do que da sua mãe com a sra. Delgo!", brincara Higor anos antes.
Assim, de brincadeira em brincadeira, Sâmia tomou a rixa como algo comum à uma família (afinal, ela mesma não era nenhum exemplo de boa convivência com a própria mãe). Agora, porém, veio a promessa ao Inverno e, logo depois, as tentativas de assassinato...
Ao pensar na situação dela com o pai, Sâmia se sentiu aliviada por sempre ter tido a oportunidade de conversar com Higor e falar-lhe sobre tudo; tê-lo como um amigo, um irmão. Quando a notícia sobre o ataque chegou aos seus ouvidos, seu coração paralisou pelos mais diversos sentimentos, mas dentre eles, disso ela tinha certeza, não estava nenhum sinal de arrependimento por ter compartilhado de sua vida com o pai. Já quanto a Margareth em relação à Madame Lita, a situação era bem diferente...
Quando as notícias desencontradas sobre os ataques chegaram aos ouvidos da sra. Sotein, a mulher se dividiu entre o desespero por Higor, o susto por Oiv e a culpa por Lita. Pensou ter perdido a mãe e o choque lhe deixou destruída. Com a ajuda dos vizinhos, seguiu para a cidade e ao chegar, tendo notícias mais tranquilizadoras sobre o marido, correu para a casa da mãe. Diante da destruição da residência, desabou em frente às ruínas, o choro em queda pelo rosto, o gosto de lamentações, raiva e mágoa em cada lágrima.
#pratodosverem | Descrição da imagem: ao fundo, vê-se uma cena de destruição, com uma casa em chamas. Em frente a esse cenário, Margareth Sotein esconde o rosto entre as mãos e chora.
***
Muitas das pessoas que vieram em seu auxílio chegaram a escutar as palavras de dor da mulher. Contudo, quando ela foi contida e informada sobre a real situação da matriarca, Margareth até chegou a ir ao encontro de Lita, mas não conseguiu repetir nenhuma das palavras vomitadas durante o pranto de minutos antes. Pelo contrário, à mudez somou-se o julgamento pela atitude da mãe de ter enfrentado Drenton. Se não fosse pelo comentário de uma vizinha da sra. Delgo que presenciara a cena protagonizada por Margareth Sotein em frente à casa incendiada, Sâmia jamais teria sabido dos sentimentos da mãe.
— Vó, a senhora se incomodaria se eu trouxesse a mamãe para conversar com a senhora?
Madame Lita lançou o cansaço do seu olhar sobre a neta.
— Por que isso agora, Sâmia? Em um momento tão delicado?
— A senhora não acha que está na hora de vocês duas conversarem? Acertarem tudo... - e acrescentou: — Lembra de que a senhora falou que quando vê pessoas aos prantos sobre um morto sempre pensa que muitas das lágrimas derramadas são pela dor das palavras não ditas? Por não ter mais a oportunidade de dizê-las? A senhora não fica angustiada de algo assim acontecer?
O marejar da face de Lita foi resposta suficiente. Ela mesma desabara sobre os corpos de Uriel e de Erwank por ter perdido essas oportunidades. Na primeira vez, não conseguira pedir perdão ao marido por tantas coisas cometidas; na segunda, a vida lhe tirara a oportunidade de conviver com o amado. A dor de sua alma vinha de palavras perdidas no vento, enterradas na memória, escorridas pelo rosto.
Pela janela da carruagem, a senhora viu vários arcéh vestidos de luto pelo Capitão dos Mensageiros, mas com olhares tranquilos: diferente dela, eles não traziam o fardo na alma; não tinham pendências com Erwank Maxil. Ela não desejava para Margareth uma vida de arrependimentos pelo não dito; por não saber como as coisas poderiam ter sido diferentes.
Quando morresse, Lita queria choros de saudade e nada mais.
— Tudo bem, Sâmia. Traga sua mãe aqui. Não sabemos o que o dia de amanhã nos reserva... A dor das palavras engolidas por causa da covardia de não as dizer não é apenas para os que ficam, mas também para os que se vão. Eu preciso partir em paz...
A garota sentiu um arrepio.
Se a avó falava sobre a viagem futura com Oiv ou sobre a própria morte, Sâmia preferiu não saber.
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