A TORRE DE ARCÉH (PARTE 1)
#pratodosverem | Descrição da imagem: vê-se a deusa outonal, Yubay, sentada em um trono de folhas e de cipós, com vagalumes ao redor de tudo.
***
MESMO ABANDONADA E JOGADA À PRÓPRIA SORTE FRENTE A SECA DOS ÚLTIMOS DIAS, A ESTUFA DE NAUS AINDA MANTINHA TRAÇOS DE SUA BELEZA. Quem chegava pela ponte e olhava em direção às colinas podia ver os vestígios da outrora "joia dos arcéh". A estufa, construída para poder ser vista de todos os cantos da cidade, fora tomada por plantas e se transformara em um labirinto verde. O ferro retorcido da estrutura estava coberto por ervas e dava a impressão de que os galhos brotavam da ferrugem. Nas paredes carcomidas pelo tempo, as plantas se embrenhavam até o teto e formavam cortinas naturais. Muitos comparavam a estufa à uma espécie de catedral dedicada à Natureza.
"Natureza..."
O pensamento fez Yubay fechar os olhos e suspirar.
Aquela cena durante o Conselho não ficaria sem troco. Reconhecia o próprio erro, sim, mas jamais recebera palavras tão duras. Não era uma deusa qualquer para ser tratada daquele jeito. Os Anciãos lhe deviam muito para a ignorarem. No Princípio, quando os Grandes se reuniram e começaram a forjar os humanos, a obrigaram a se entregar ao Vento com o objetivo de engravidar. Assim, por causa dela, foram forjados os pilares da magia.
Yubay passou a mão pela barriga. Sentia falta de sua Déa. Cultivara aquela raiva por muitos milênios e ela só se intensificara nos últimos séculos. Estava na hora de fazer algo a respeito. A figura da Anciã de cabelos rubros tomou seu alvo. Sim, ela mostraria à Celbo. Banharia o mundo com o sangue dos seus queridos humanos para combinar com o cabelo da Natureza. Primeiro, mataria Gyen e a menina. Depois, cuidaria de Ladel e reivindicaria a posse da magia de Déa. Por fim, a Anciã teria uma resposta à altura. Já estava na hora de certas coisas mudarem e novos poderes virem à tona.
Yubay seria a nova Natureza.
Sentada em um trono de cipós e perdida em devaneios, o Outono esperava a hora certa para agir. Conhecia bem a lenda da Nyrill e sabia o significado daquela estufa para os arcéh. O plano seria muito simples: por uma noite, ela seria a Nyrill e surgiria em toda a sua grandeza no alto da colina. Viria como uma salvação contra aqueles tempos difíceis. Caminharia em meio ao povo, saudada e aplaudida; muitos ousariam até se aproximar, cuidadosos, surpresos por tamanha aparição. Os sinos tocariam, os choros de alegria seriam sua canção e em pouco tempo Arcéh estaria ao lado de sua "lenda" para enfrentar Gyen e Ladel.
"E eu terei uma nova primavera.", pensou. "Uma primavera sob o meu controle..."
Seus devaneios foram interrompidos por uma saudação repentina...
— VIVA! VIVA A NYRILL DE ARCÉH!
O grito encheu a estufa ao mesmo tempo em que uma flecha escura cortou o ar e acertou o trono pouco acima do ombro direito da deusa. Descendo as escadas do segundo andar, Ladel vestia uma casula* branca e tinha o rosto coberto pela máscara dourada de olhos e sorriso vazios. Parou no último degrau e tornou a disparar.
* NOTA DO AUTOR: casula é uma veste litúrgica, única e de forma arredondada, que cobre o corpo inteiro. Normalmente é usada por sacerdotes para expressar o desprendimento deste com as coisas terrenas em benefício de uma aproximação com o mundo espiritual.
Yubay não esperou pelo ataque. Jogou-se para frente e lançou um feitiço. Ladel desviou com facilidade do jorro de magia. De um pulo, ainda no ar, disparou três flechas de uma vez e correu para cima dela. A deusa rolou para o lado e, com um feitiço dito às pressas, fez alguns cipós abraçarem sua cintura e axilas para a erguerem até o teto.
O Outono desapareceu por entre as plantas.
— Ora, por favor, não me faça rir com seus feitiços. A morte sempre alcança quem ela quer, Yubay! Sabe por quê? Porque ela quer e deseja matar de verdade. Ela não pensa ou chora ou duvida; ela não tem medo de nada e avança sempre. Sejamos sensatos, minha Yubay: eu vou ganhar essa luta e você sabe disso. – Ladel caminhou até o trono e se sentou.
— Você quer saber como a sua filha morreu? Diferente de você, ela não foi nem um pouco covarde. Ah, não! Não. Ela me encarou. Tão linda, tão inocente naquele mar de flores. E sabe do que eu não esqueço? Mesmo com as chamas lambendo o corpo, ela continuou lá, de pé, os braços abertos em rendição e me olhando com coragem, Yubay. Até mesmo quando eu caminhei pelas cinzas do mundo e segurei o crânio dela em minhas mãos, Déa ainda pareceu me encarar. Até hoje ela parece nos olhar...
O deus se levantou e estendeu os braços para frente. Na mão direita surgiu o vestido de Déa; na mão esquerda, um crânio chamuscado, cabelo e pedaços de pele ainda presos aos ossos. As plantas ao redor se mexeram. O verde por toda Naus ressecou. A estufa gemeu diante de uma ventania. Ladel pôs o crânio no assento e cheirou o vestido.
— Ah, minha doce Primavera... Que bons momentos tivemos antes do fim...
Yubay pulou e jogou o cajado contra as costas de Ladel. O deus desembainhou a espada e, com um golpe certeiro, cortou o cajado ao meio. O Outono caiu de joelhos. Ladel caminhou até ela sem pressa enquanto esmagava alguns cipós e raízes que ainda tentavam impedir seu avanço. Perante a deusa, agachou-se e segurou o queixo da mulher, obrigando-a a levantar o rosto e encarar o destino.
— É fácil matar pelas costas, não é, Yubay? Não foi assim com o acidente de Eve? Ãh? Ela não caiu do penhasco enquanto cantava para o sol? Cantava para mim? – os olhos do Outono se desviaram e Ladel apertou ainda mais o queixo. Alguns dentes se quebraram. — Olhe para mim! OLHE PARA MIM! Você não merece a magia que tem, Yubay... Eu vou te ensinar como se mata com vontade.
E ergueu a espada.
GYEN CRUZAVA O MAR DE ARCÉH QUANDO ALGO BATEU CONTRA ELE E CAIU NA ÁGUA. Sem acreditar no que seus olhos viam, abaixou-se e puxou a cabeça de Yubay de dentro d'água.
— Mortalmente linda, não é? – a voz fria de Ladel cortou a névoa e o Verão surgiu em direção ao semideus, o rosto escondido pela máscara dourada. — Sinceramente, foi uma decepção para mim. Yubay deveria ter me poupado o trabalho e se matado lá mesmo no Conselho. Era óbvio que não teria forças para me enfrentar. Agora, só faltam dois...
Gyen aproveitou a distração do irmão, puxou a espada e atingiu Ladel no peito. Nada aconteceu. Quando tentou se desvencilhar, já era tarde demais. Havia caído em uma armadilha: a lâmina ficou presa e o tecido criou vida. Expandiu-se para todos os lados e, tal qual uma serpente, enroscou-se em Gyen até deixar apenas o seu rosto descoberto.
— Ah, Gyen... Gyen! Você também vai me decepcionar!? – o verdadeiro Ladel brotou da escuridão e flutuou em direção ao semideus. O deus tinha um sorriso de escárnio nos lábios. — Você sobreviveu à floresta e ainda cai em um truque tão bobo? É tão previsível ser o seu irmão, sabia?! Você me dá vergonha, Gyen.
— Lute comigo, Ladel! Me solte e lute!
— Não! Não... Eu tenho planos muito melhores para hoje. Eu quero que você veja quando eu destruir essa cidade e encontrar a menina. Na verdade, as suas meninas. As duas. E, como sou generoso, vou te dar a oportunidade de assistir a tudo de um lugar bem especial. – segurou a gola de Gyen e subiu tão alto que os dois podiam ver quase toda a ilha.
— Ladel, ganhar um pouco a mais de magia não vale tudo isso...
O Verão gargalhou.
— Não é mais pela magia, Gyen. Eu já tenho magia suficiente para fazer o que eu quiser. – ele materializou a máscara dourada e a encaixou no rosto do irmão. — Agora, é só pela diversão...
***
#pratodosverem | Descrição da imagem: imagem de uma máscara dourada, a mesma usada por Ladel capítulos atrás.
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