A TERCEIRA ESTUFA (PARTE 3)
— BOM, SÂMIA, SE VOCÊ QUERIA AVENTURA, AÍ ESTÁ!
O sorriso de Phil indicava o alívio de sua alma. De volta à estrada, caminhava com mais leveza. Não era para menos. A raiva e o poder de Drenton eram grandes o suficiente para jogá-los na prisão por décadas - mesmo a menina Sotein tendo apenas treze anos de idade. Pelas conversas, anos antes, o Unagor dera cinco ladrões como prato principal para aos seus cães.
Mentira ou não, dias depois uma carroça cheia de ossos ensanguentados desceu pela estrada da Terceira Estufa, à vista de todos.
— Ao menos, não temos mais de nos preocupar com cachorros, não é?! - Phil jogou o galho fora e alongou os braços.
— Você está pensando em cachorros? Ouviu o que ele disse: ele vai incitar as pessoas contra o continente! E sem provas!
— Sem provas? Sâmia, você se esqueceu das nossas aulas? Não há ursos em Arcéh. - a Sotein paralisou. — Por que essa cara de susto? Não é uma informação nova. Todo mundo sabe disso.
— Mas...
Sâmia preferiu o silêncio. Ela vira a ponte na madrugada: se ela e Madame Lita tiveram de se esforçar muito para não encostarem em nenhum dos congelados e causar danos às estátuas, imagine um urso. A não ser que tivessem incitado o bicho a entrar na cidade horas antes da chegada do inverno, não havia como o animal ter entrado em Arcéh durante a noite da Nyrill e muito menos por cima do oceano congelado. E ainda havia o seu sonho na casa da avó. Aquele urso não era selvagem, ela tinha certeza disso.
Ao menos não tão "selvagem" quanto um urso deveria ser.
Se o Unagor propusesse sanções aos continentais e incitasse o ódio, cometeria um erro sem precedentes na história da ilha.
— Chegamos.
Ela olhou para onde Phil apontava e parte de suas preocupações foram substituídas pelo deslumbre. O inverno não conseguira apagar o brilho da Terceira Estufa: o vidro reluzia em contraste com a escuridão da nevasca e a desafiava a escondê-lo em sua neve; as placas continuavam altivas ante o vento do alto da colina e convidavam o olhar a elevar-se o mais alto possível para admirar o topo da abóbada e a haste com a bandeira de Arcéh.
#pratodosverem | Descrição da imagem: em um ambiente enevoado, vê-se uma estrutura toda de vidro com árvores ao redor cujas as copas mal atingem a metade da altura das paredes da estufa.
***
— Pronta?
— Prontos.
Subiram os degraus da entrada e prepararam-se para empurrar a porta quando escutaram vozes estrada acima.
Uma delas, forte feito um trovão.
— Ah, não, Drenton voltou!
— Vamos, entra logo!
Phil a olhou como se estivesse louca.
— Você quer entrar?
— Eu não saio daqui sem essa maçã, Phil Voggi. Larga de ser covarde.
E o puxou para dentro.
Apesar da luz emitida do lado de fora, ali dentro a estufa estava em total escuridão. Os dois tatearam pelas paredes e, aos tropeções, embrenharam-se pelas plantas até acharem um local para se esconderem. Minutos depois, quando as oito badaladas da torre de Arcéh anunciaram a meia-noite, a porta foi aberta e a luminosidade das tochas de Drenton e do seu bando invadiu a estufa.
— ANDEM LOGO, ACENDAM ESTA ESTUFA! PRECISAMOS ACHAR PELO MENOS O CORPO DE UM! SÓ ASSIM ELES ACREDITARÃO EM MIM.
Os guardas seguiram pelos corredores acendendo os archotes e, a cada chama acesa, os queixos dos dois invasores despencavam mais e mais. Phil resumiu a situação com uma frase certeira:
— Alguém tem um mapa?
De onde estavam, não conseguiam mensurar nem o comprimento e nem a quantidade de andares da estufa. Vasos de plantas do tamanho de um adulto formavam um labirinto de corredores. Árvores frutíferas brotavam por toda a parte, pássaros e pequenos animais reclamavam da luz fora de hora e plantações estendiam-se por centenas de metros como se estivessem em uma fazenda qualquer.
Só então Sâmia notou o suor em seu corpo. Seria óbvio uma estufa ser aquecida, mas manter a temperatura de uma construção daquele porte não era trabalho suficiente para algumas dezenas de tochas. De trás do vaso onde estavam, a garota viu um dos funcionários descer por um alçapão e sumir em uma espécie de porão da estufa. Os pés da Sotein formigaram...
— Nem pense nisso! - Phil acompanhou o olhar de Sâmia e a trouxe de volta à realidade. — Enlouqueceu de vez?
— Deve ter alguma coisa forte lá embaixo pra manter a temperatura assim!
— Sim, deve. Mas isso não é do nosso interesse! Já temos problemas demais por causa de uma simples maçã! - e apontou para o alto. Os guardas corriam pelos andares em busca do tal "corpo" exigido pelo Unagor. — Imagina só eles buscarem o corpo de um dos cachorros atacados pelo urso e ao invés disso acharem dois arcéh bisbilhotando?
— Pode ter Manon lá embaixo!
— Certo. E como você pretende ir até lá sem que ninguém te veja?
— Ora, eles estão ocupados! Olha só: nem olham para os lados. Até o Unagor está procurando...
— Mas aquilo está de olho em tudo.
Sâmia olhou para onde Phil indicava e prendeu o fôlego. No alto, no exato ponto onde a abóbada da estufa fazia seu arco, havia um poleiro. Nele, um pássaro fundia-se à penumbra e observava a tudo com olhos traiçoeiros de um vermelho-sangue. A garras pareciam lâminas e brilhavam tanto quanto os vidros ao redor.
— Eu não sei que coisa é aquela, mas com certeza aquelas unhas não servem apenas para estraçalhar ratos.
— Temos de achar logo a macieira...
— ... e um caminho seguro e rápido para chegarmos até ela antes do pessoal sair.
— Mas é melhor esperar eles saírem, não?!
— Se esse pássaro foi igual a alguns que eu vejo durante a pescaria, essa coisa deve enxergar bem melhor no escuro. Seremos alvos fáceis.
— Quando entramos ele não nos viu.
— Nós não andamos nem cem metros, Sâmia. Confia em mim: na hora que corrermos para aquele alçapão, vamos virar comida de passarinho.
Covarde ou não, desde cedo Phil passara muitas temporadas no mar e isso era uma vantagem ali. Aquela estufa não era para passeios. Drenton e os outros continuavam em sua busca pela carcaça de um dos cachorros, afastando-se cada vez mais do vaso onde Sâmia e Phil estavam. Quando se viram apenas na companhia daqueles olhos, os dois rastejaram pelos corredores de plantas até alcançarem uma escadaria. Pararam por um instante e olharam para cima: a ave permanecia quieta, o corpo ora virado para um lado, ora para o outro.
Subiram para o quinto andar e aproximaram-se da borda.
Estivessem em outro momento, a vista de todos os setores da Terceira Estufa seria de emocionar. Contudo, mal tiveram tempo de localizar as macieiras em uma parte do terceiro piso e já tiveram de buscar por abrigo: o pássaro parecia incomodado e grasnava.
Sâmia sussurrou.
— Vamos voltar por onde viemos e subir pela escadaria do outro lado. Será mais fácil...
Phil arregalou os olhos e disse entredentes.
— Não-se-mexa.
— Por que não?
Ela não precisou de uma resposta para saber o motivo. Sentiu o casaco repuxar e, quando se virou, deu de cara com a bocarra de um dos cachorros do Unagor.
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