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A FESTA DE BOA PESCARIA (PARTE 6)

OS PORTÕES DO TERRENO ONDE FICAVA A TORRE DE ARCÉH SE ABRIAM PARA RECEPCIONAR O PÚBLICO. As ruas ao redor estavam abarrotadas de carruagens enquanto as calçadas eram o tapete para a procissão de pessoas em direção ao salão de festas. Aqui e ali, era possível ouvir gritos de susto quando alguém escorregava devido à neve, mas o som predominante naquela noite era de risos. Não havia como ser diferente: a Festa de Boa Pescaria era a celebração da coragem dos homens de Arcéh em desbravarem o mar congelado em busca de alimentos. Formados por pescadores mais experientes e aprendizes recém-saídos das rédeas dos pais, os grupos rumavam em todas as direções da ilha e daí para dias de caminhada sobre a camada de gelo. O objetivo era encontrar um lugar no oceano congelado que fosse fino o bastante para poder perfurar e pescar – ou, como muitos diziam com um humor de gosto bem mórbido, "fino o bastante para engolir alguns deles e usá-los como comida de peixe".

Os pescadores não ficavam muito tempo na tarefa, no máximo, dois anos. Isso porque, com o passar do inverno e a iminência do verão, o gelo tendia a diminuir de espessura e a piada de mal gosto dos arcéh beirava a realidade. Contudo, mesmo com o pouco tempo fora de casa, ainda era uma rara oportunidade para um garoto da ilha aprender a lidar com a natureza, com a solidão e com a realidade da vida dura do lugar. Além disso, era o tipo de atividade para enaltecer a dita "superioridade masculina" de Arcéh: enquanto as noites de vigília na ponte era permitida a ambos os gêneros, a jornada de pescaria no mar congelado era restrita aos homens.

— Se não fosse assim, seria uma boa fuga... – Sâmia pensou alto ao entrar no salão. A conversa com a avó, apesar de tranquilizadora, ainda deixara resquícios de temor em suas ideias.

— Fugir do quê, menina?

— Dos problemas, sr. Maxil.

— Erwank não entender quais problemas uma pessoa tão nova ter.

— Ah, Erwank, você nem imagina... – mal acabou de falar e percebeu Baa Icethy vir em sua direção acompanhada de mais duas garotas.

É engraçado como as amizades se destroem: em um dia, todos são crianças e amigos; no outro, crescem alguns centímetros, ganham atributos e toda e qualquer afinidade é enterrada com pás e mais pás de rivalidade. Quando ocorreu esse momento de mudança em relação à Icethy, Sâmia não fazia ideia. Em sua cabeça, não havia um porquê para os atritos entre as duas. Mas, desconfiava, a preferência de Phil Voggi pelos Sotein tinha uma boa dose de influência nisso. O toque final para a mistura de desavenças ficava por conta das "estranhezas" da garota mais nova.

— Ora, ora, ora, se não temos a honra de ter aqui a rebelde da cidade! E então, querida, decidiu pegar os panos de chão e fazer um vestido? – Baa olhou para a garota de cima a baixo com sua melhor cara de desdém. Sâmia sustentou o olhar.

— Ah, não foi preciso... Fui na casa da sua mãe e pedi as roupas dela emprestadas.

Erwank engasgou com o vinho e as outras duas meninas fizeram esforço para não gargalharem. A Icethy saboreou uma resposta à altura, abriu e fechou as mãos algumas vezes e, por fim, escolheu sua melhor máscara de desprezo.

— Pode sorrir, sua infeliz. Eu não me importo! Para a sua informação, o suco de Nubor já foi servido e quem estava ao lado do seu adorado Phil era eu.

Sâmia olhou de Baa para Erwank e deste para o salão, a vista perdida em busca de uma confirmação da mentira.

— Erwank não acreditar nisso!

— E o que você, um mensageiro continental que mal sabe falar, sabe sobre as coisas? Pra início de conversa, você nem deveria estar aqui.

— Não ousar falar assim com Erwank, garota. Erwank ser um senhor.

Baa imitou o sotaque do sr. Maxil e elevou o tom de voz.

— "Não ousar falar assim com Erwank"! Ah, faça-me o favor! Quando tudo se resolver você será o primeiro a ser chutado desta ilha, seu...

Talvez por coincidência, talvez pelo pedido de alguém, os músicos tocaram mais alto e os insultos da garota foram abafados junto ao barulho do soco dado por Sâmia. Enquanto as pessoas deixavam suas mesas e iam para o centro do salão para dançar até não sentir mais as pernas (aquela era a única festa durante os cinco anos de inverno), a um canto outra festa tivera início: a garota Sotein atracava-se com Baa Icethy, Erwank tentava conter as duas e ainda lutava para afastar as companheiras de Baa enquanto Higor Sotein, Phil Voggi e mais três rapazes corriam em auxílio.

Não foi uma tarefa fácil. A raiva é capaz de dar energia até ao mais pacato dos seres humanos. Sâmia não era um desses seres humanos, é claro. Mas, apesar de sua fama em Arcéh, nunca havia se metido em brigas.

Baa Icethy a deixara com sangue nos olhos.

#pratodosverem | Descrição da imagem: vê-se uma imagem aproximada da parte dos olhos. Um deles, o esquerdo, está roxo após um soco.

***

Sob o som de acordes animados e aos gritos de felicidade dos demais convidados alheios ao tumulto, Sâmia puxou os cabelos impecáveis da outra garota, esfregou restos de comida em seu rosto e conseguiu a proeza de dar uma cusparada em seu olho. Em contrapartida, levara um soco no olho direito, tivera alguns fios de cabelo arrancados e ficara com parte da barra do vestido destroçada. Quando Phil a pôs no ombro e a levou para longe, ela ainda conseguiu gritar impropérios para Baa. Mas, em meio a todos os impropérios ditos, uma afirmação calou certeiro em boa parte de quem estava próximo.

— Saiba que Erwank ainda vai salvar a todos que o humilham dia e noite nesta cidade!

Era uma daquelas verdades profundas, reveladas de súbito, vindas de algum lugar impensado.

A menina Sotein não fazia ideia do quanto estava certa...

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