A DOR DA HUMANIDADE (PARTE 2)
UM PANO FOI JOGADO SOBRE O MUNDO E O ANOITECER CAIU. No ceu não havia estrelas, cor ou lua; abaixo, os troncos ao longo da trilha não passavam de sombras enfileiradas feito estacas, com seus galhos nus perdidos na escuridão acima. O silêncio ficara intenso ao ponto de Gyen poder ouvir a própria respiração. O barulho era tão claro e tão alto que, no início, ele espiou de lado para se certificar de que não havia ninguém ao seu lado, soprando no seu ouvido.
Torcia para estar enganado.
Pouco tempo depois do escuro ter invadido a floresta, o Inverno ouviu um barulho diferente, abafado e solitário. Mas, como as roupas, os passos e até o coração acelerado já faziam tanto barulho, concluiu ser mais uma armadilha de sua própria imaginação. Ou então, uma peça pregada pelo seu cansaço.
"Não", pensou o deus com pesar, "Isso não é só cansaço..."
Era bem pior: sono.
Gyen dormia, é claro, mas não do modo como os humanos ou os animais, para repor as energias. O seu dormir era mais um processo de meditação em busca de respostas, nada comparado a um "desligar do corpo". Durante esse processo, apesar de ele parecer adormecido, continuava em alerta, ciente de tudo ao redor do corpo físico ao mesmo tempo em que vagava por uma espécie de "plano espiritual". Segundo Gyen, a sensação era como se um homem navegasse em um rio com a metade direita do corpo banhada pelo sol e a esquerda tomada pela noite. O fato de agora sentir os olhos se fecharem sem o seu controle era preocupante; desesperador.
"Você precisa dormir, Gyen.", disse-lhe a voz.
"Eu nunca durmo."
"O sono é traiçoeiro, Gyen. Ele chega quando menos se espera..."
"Não comigo. Eu ainda sou um deus!"
"Tens certeza disso, Gyen?"
"É claro que eu tenho."
Gyen caminhou por mais alguns metros. As palavras da voz ressoavam dentro dele em eco. Ele era um deus, sim. Sentia-se como tal. Isso não bastava? Tocou em uma árvore próxima e a congelou. Aquilo o deixou tranquilo, mas, ao dar alguns passos em frente, sentiu o equilíbrio lhe faltar e o corpo pender. Como previra a voz, ele desacelerou a caminhada aos poucos, as pernas pesadas e os vultos ao redor cada vez mais turvos até o ponto de tudo rodopiar. Ele mesmo se viu sem orientação, os pés em círculo, as mãos à frente com medo de bater em algo.
O deus estava com medo de si.
Sem controle, seus pés tropeçaram.
O Inverno caiu.
ABRIU OS OLHOS DEVAGAR E LEVANTOU-SE DE UM PULO. A noite densa e o silêncio das árvores pareciam intactos, mas ele não sabia responder por quanto tempo ficara desmaiado. Podia muito bem ter se passado um dia inteiro ou talvez semanas. O corpo estava rijo, dolorido. Ele nunca se sentira desse jeito antes. Andou alguns passos e parou.
Algo luminoso descia pela trilha em sua direção.
Gyen vacilou e deu um passo para trás.
"É só a floresta. É só a floresta.", repetiu as palavras sem acreditar nelas. Só a floresta já era algo bastante ruim. A luz prosseguia em sua descida até ele.
Mais um passo.
Gyen olhou com atenção. Pode ver uma silhueta iluminada com passos decididos para cima dele. Quando estava mais próxima, ele distinguiu cabelos pretos emaranhados, olhos arregalados e vazios, o vestido branco manchado de vermelho na parte do ventre. As mãos do deus se fecharam em receio; as palpitações do coração pareceram retumbar pelos troncos.
Aquela era garota de Arcéh e ela carregava um bebê nos braços.
Gyen recuou ainda mais e sentiu as costas tocarem em algo sólido.
Imaginou ser um tronco.
No fundo, porém, sabia que ali, no meio da estrada, não cresciam árvores. Tocou a superfície com a ponta dos dedos. Lembrava muito uma parede de pedra. Mas não havia mais tempo para qualquer reação.
Sâmia estava cara a cara com ele.
A garota choramingou e lhe estendeu o bebê.
— Tome, senhor, é sua...
Ele negou com a cabeça, evitou olhar para a criança. "POR QUE NÃO A CONGELA?", sua mente gritou. Mas ele não conseguiu reagir. Estava descrente nos próprios olhos e nas próprias sensações. O cheiro dela lembrava algo sujo, quase podre; a cada gota avermelhada que gotejava aos seus pés e ecoava pela floresta, Gyen estremecia. Em pouco tempo, o gotejar mesclou-se às suas palpitações e a floresta ecoou música, tambores em marcha; um anúncio de guerra interior. De dentro dos cobertores veio um chiado moribundo.
A garota insistiu.
O deus cerrou os olhos.
Silêncio.
"Deuses não temem, Gyen.", observou a voz. "Você ainda é um deus, não é?"
"Sou..."
"Abra os olhos, Gyen."
"Eu não posso..."
"Prove que ainda é um deus e abra esses malditos olhos, Gyen!"
Os chiados aumentaram. Os tambores ao redor não conseguiam fazê-lo parar com aquilo?
"ABRA OS OLHOS, SEU COVARDE!", berrou Ladel dentro de sua cabeça.
E Gyen obedeceu.
Não por vontade própria e sim por espanto.
A garota pegou sua mão e, sem encontrar resistência, levou-a até o bebê, forçando os dedos do Inverno a roçarem no cabelo e depois na pele fria e suada da criança.
A curiosidade superou os outros sentimentos e ele olhou para baixo.
Era uma aberração.
#pratodosverem | Descrição da imagem: Sâmia aparece de perfil, o rosto esburacado, sangue escorrendo pelo rosto. é possível ver os tendões dos músculos e parte da arcada dentária. Nos braços, ela segura o que seria um bebê, mas dentro vê-se apenas uma massa de carne ensanguentada.
***
Sem acreditar no que via, hipnotizado pela coisa monstruosa, Gyen aproximou o rosto para se certificar de que não estava enganado. Era burrice, ele sabia. Mas aquele horror o atraia. O bebê parecia ter sido virado do avesso, ossos, músculos e órgãos expostos. Os olhos não passavam de fendas e a boca era um rasgo mal feito na altura do pescoço. Os cabelos, contudo, eram brancos.
Manchados de sangue, sim, mas ainda alvos feito a neve.
As mãozinhas purulentas se ergueram e agarraram o pescoço do deus. Com o susto, Gyen se afastou de súbito. As unhas da criança rasgaram sua pele. Ele não se importou. Jogou o bebê para cima da mãe e disparou trilha adentro.
Enquanto corria, os galhos das árvores pareceram se esticar para tentar impedir sua fuga. Os tambores de antes deram vez ao choro do bebê e depois às gargalhadas da garota. O manto da noite pareceu ainda mais denso e nem mesmo o brilho emanado pelo deus foi suficiente para clarear centímetros adiante. Gyen parou, ofegante. Aquilo não era uma floresta. Era a materialização dos seus medos. Era óbvio: desde a conversa com o irmão, seus pensamentos estavam na suposta filha. Por vezes, pegava-se em suposições sobre como seria sua aparência, se havia algum defeito; como a magia divina reagiria ao se unir ao sangue humano. Não era a primeira vez que tinha aquele pesadelo.
Mas não podia estar sonhando, concluiu. O toque da garota, o cheiro, as feridas em seu pescoço, tudo parecia ser bem real.
— Tudo é real. – disse Gyen em voz alta como se quisesse se certificar de que não estava enganado. Deveria haver algo além de todo aquele medo. Não era possível que a floresta fosse tão maldosa ao ponto de extrair os seus segredos apenas para perturbar quem se arriscava por suas trilhas.
Lembrou-se da parede de pedra que tocara a pouco e o óbvio surgiu: não era uma simples parede, um fruto dos seus temores; fruto do medo de ser apanhado pelos rebeldes e torturado, exposto pelas praças mundo afora como causador de invernos infindáveis. Ele estava enganado. Tocara, sim, na montanha que tanto procurava, sólida e eterna, guardada pela floresta, velada até revelar-se rumo ao infinito.
"Volte, encare e mude.", ordenou-lhe a voz com estranha seriedade.
Sim, pensou Gyen. Se ficasse parado ou continuasse em fuga realizaria as previsões de Ladel e se curvaria perante a vontade dos outros, como sempre fizera. Desde os primórdios dos tempos, viveu sob as leis seculares sem nunca questionar, nunca elevar a voz. Foi forçado a assumir papéis de poder que traziam mais desgraça do que benefícios, mas nunca se opôs. Sempre calado, cego e surdo aos próprios anseios; sempre com a visão de ser uma criatura superior e eterno e que por isso não deveria se importar com os mortais e suas vidas diminutas, o Inverno prosseguiu.
Olhou para as próprias mãos, trêmulas pelo medo, e tocou os arranhões em seu pescoço. Quase gritou de dor, mas sorriu. Havia algo de diferente nele.
Algo humano, mortal e urgente.
E, ele bem sabia, uma das maiores qualidades dos humanos era a capacidade de serem rebeldes e corajosos ao ponto de encontrarem forças para enfrentarem um deus.
Gyen se virou e deu de cara com pontos luminosos. Ao invés da escuridão da floresta, uma multidão formada por pessoas de várias partes do mundo portava tochas e armas; ao fundo, no flanco direito da gigantesca montanha, estava a entrada da caverna. E, no centro de tudo, a mulher com a aberração nos braços.
Mais uma vez, Gyen tocou os arranhões no pescoço e ofegou de dor. Um formigamento encheu o seu corpo. Ao invés de superior, ele agora era mais um dentre tantos. Se fosse para morrer ali, naquela floresta, preferia morrer como um bravo mortal a sucumbir aos caprichos e covardias de sua divindade.
Sem armas e de peito aberto, pela primeira vez em seus séculos de vida, Gyen partiu para o ataque.
Ele sorria.
Humano, enfim?
Por vezes, grandes ganhos só vêm depois de perdas doloridas. Aprende-se algo diante do fim...
Obrigado pela sua companhia durante toda esta caminhada. Faltam poucas peças para encerrarmos nossa jornada.
Mas ainda há questões a serem solucionadas...
Confie.
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