A CASA DOS VOGGI (PARTE 5)
#pratodosverem | Descrição da imagem: vê-se uma pessoa que olha para um frasco com um líquido amarelo.
***
QUALQUER PESSOA SENTIRIA PENA DO GAROTO EM MEIO A TODA A TRAGÉDIA DA FAMÍLIA VOGGI. Sâmia, porém, substituiu esse sentimento por uma curiosidade desenfreada. Com a mente cheia dos acontecimentos de dois anos antes e perturbada pelos sonhos estranhos dos últimos meses, ela sentiu uma conexão entre a história de Phil e a sua própria aventura.
O milagre da Nyrill já ocorrera antes.
Ela não era a única.
Sentiu o toque gélido da mão do rapaz sobre a sua.
— Você está bem? Ficou pálida de repente... Quer que eu busque uma água ou...
— Não... Tudo bem...
— Tem certeza? Eu posso...
— Phil... Me escuta, por favor... Eu vou te fazer uma pergunta que pode parecer esquisita, mas... - ela ficou inquieta e levantou-se da cadeira. Se tudo não passasse de sua imaginação, causaria uma confusão capaz de abalar cada arcéh; capaz até de destruir a cidade.
O povo só aceitava a situação de períodos de gelo e calor por acreditarem nas histórias sobre a singela e delicada dama da neve, um respeito mais para mostrar às outras cidades certa tolerância do que uma prova de alguma mudança em relação às mulheres de Arcéh. Se, ao contrário da fada, soubessem se tratar de um homem, com certeza se sentiriam mais estimulados a um ataque e veriam as ideias de Drenton Paberos com outros olhos. Quando o deus ressurgisse com o inverno no bolso, seria recebido com armas e revolta.
O massacre escorreria pelas ruas de Arcéh.
Sâmia buscou manter a voz firme e encarou o namorado.
— Phil, você se lembra de alguma coisa daquele dia?
— Do dia que minha mãe morreu e eu... Que tipo de pergunta é essa?
— É muito simples: você lembra ou não lembra de alguma coisa?
— Sei lá, Sâmia...! Por que essa pergunta agora?
— Olha, Phil, eu... Eu sei que você deve estar me achando maluca com essa conversa esquisita; eu sei que naquele dia você nem tinha consciência do que estava acontecendo. Mas, com uma energia tão forte sobre sua mãe, eu imagino que alguma coisa deve ter ficado em suas lembranças.
Em um primeiro instante, Phil sorriu e meneou a cabeça. Talvez a descida até aquele ponto abaixo da terra, após passar por tantos corredores e salas, tenha deixado a namorada um pouco desnorteada. Contudo, o riso murchou tão rápido quanto surgiu. A mente dele começou a abrir portas até então trancadas e jogou-se pelos túneis do imaginário. Uma sombra passou pelos olhos dele e, por um breve momento, o garoto ficou rígido, os membros de encontro ao corpo e olhos vidrados em direção à garota. Tremeu e balbuciou alguma coisa, os lábios roxos como se estivesse com hipotermia. Quando ela se preparou para gritar por ajuda, a tensão se dissipou e ele tornou a exibir um sorriso como se nada tivesse acontecido. Fez um gesto pedindo para que Sâmia o esperasse e correu para a entrada da sala.
Mesmo àquela profundidade, podia ouvir o falatório da avó empolgada ao contar as velhas histórias da família. Havia uma espécie de fosso que passava pelo centro de toda a estrutura da casa usado para escoar a fumaça dos andares mais baixos. Essa arquitetura fazia com que cada palavra dita um pouco mais alto ecoasse por esse vão e fosse ouvida em quase todos os aposentos acima ou abaixo.
Era difícil contar algum segredo na casa dos Voggi.
Phil apurou os ouvidos. Pela animação das palavras da avó, ele já a imaginava de pé em frente a sra. Sotein, com o atiçador de brasas em uma das mãos e uma almofada na outra, em uma encenação de alguma das aventuras de quando era jovem. Quando Medebew enveredava por esses caminhos não prestava atenção mais em nada.
Satisfeito, fechou as cortinas e se virou para Sâmia. Não precisariam se preocupar com interrupções.
— Não pode contar isso para ninguém, certo? - pediu Phil, cada palavra recheada com um tom de preocupação. — Eu realmente não me lembro de nada. Não de forma nítida. Mas às vezes eu tenho uns sonhos estranhos, cheios de clarões brancos e névoa. E não apenas sonhos. Isso que aconteceu agora a pouco, esse transe, também é comum. É só eu ficar um tempo mais quieto, tentando trazer pensamentos, que isso acontece. É como se... Minha cabeça parasse de funcionar, sei lá... Quando não é nenhuma dessas duas coisas, eu me pego cantarolando essa música...
Phil abriu a caixa tirada da parede. Na parte interna da tampa havia um espelho e dentro da caixa um maquinário nunca visto por Sâmia. Ele girou uma das peças e deu voltas em outra. Quando soltou ambas e apertou uma alavanca, a música encheu a sala. A garota sentiu o corpo amolecer e teve arrepios.
— Uma melodia tranquila como uma valsa, forte como um tambor; capaz de arrepiar, encantar e fazer sonhar... - e, sem controle, começou a cantarolar a música. Quando o dispositivo da caixa estralou e o silêncio caiu entre os dois, ela estava exausta.
O Voggi fechou a caixa com uma expressão intrigada.
— Você sabe a melodia inteira! Mas... Como você conhece essa música? Não lembro de já ter cantarolado para você e... Que eu saiba essa música não existe. Ou, pelo menos, só existe aqui, entre eu e a vovó. Nós dois construímos essa caixinha de música. Não teria como você saber...
Sâmia chegou a abrir a boca para responder e quase deixou escapar onde (e em quais circunstâncias) já ouvira aquela canção. Já a ouvira ao vivo. Por sorte, já estava no controle das próprias faculdades mentais e conteve a língua a tempo de dizer algo comprometedor. Tinha de ter certeza sobre as lembranças de Phil para poder lhe contar a verdade.
— Ora, é só uma valsa! Há muitas valsas por aí. E qual música combinaria melhor com o inverno se não fosse uma valsa? Eu apenas... Cantarolei alguns trechos de outras músicas e pode ter soado igual... Foi sorte...
— É... Pode ser... - Phil não parecia nem um pouco crente naquela resposta. Deixou passar. Sâmia preferiu não dar tempo para novas perguntas por parte dele e emendou outra questão:
— Além dessa música e desses sonhos, você não lembra mais de nada? Nenhuma imagem um pouco mais... nítida? - e arriscou: - Um rosto, talvez...
— Um... rosto?
Phil parou, os pensamentos em turbilhão. Os sonhos sobre o passado vinham aos pedaços e nem sempre ele conseguia associar determinadas imagens com aquela noite de inverno vivida há mais de duas décadas. Contudo, dentre esses sonhos recorrentes, havia, sim, um rosto; uma face cuja luz interior assemelhava-se ao brilho das estrelas e se alojava nos baús do inconsciente do rapaz.
— Tem vezes que eu sonho com uma pessoa, sim. E eu sei muito bem que é a Nyrill de Arcéh. Quem mais poderia ser naquela ponte? Mas sabe... Tem uma coisa engraçada.
— O quê...? - o coração de Sâmia voou para a boca. Aquele "mas" significava muita coisa. — Fala logo!
— Calma.
— Esse teu jeito de contar as coisas por partes ao invés de falar de uma vez me irrita!
Phil estendeu o braço para tocar no rosto da garota, mas seu gesto foi reprimido com um tapa.
— Mas o quê, Phil? Estou esperando!
— Você é impossível, Sâmia. Ainda bem que eu te amo... O fato é que ninguém nunca acredita quando eu falo. Quer dizer: acreditava. Eu só contei para a vovó uma vez e ela meio que me proibiu de contar a mais alguém...
— Eu não sou Madame Voggi. E se você começou a me contar agora vai ter de terminar por quê senão eu vou te bater!
— Você hoje está bem curiosa, hein?! - disse entre um fôlego e outro das gargalhadas. Sâmia massageou a mão direita, calculou a força e deu um soco no estômago do namorado. A risadaria parou de pronto.
— Assim que eu gosto, Philzinho. Agora, fale, sim?!
— Tá.. bom. Ai! Tá, não precisa me olhar desse jeito... Bem, só é engraçado porque nos meus sonhos a Nyrill de Arcéh é um homem. E eu tenho absoluta certeza de que ele é a Nyrill porque o cara aparece deslizando pelo gelo como um pássaro, flutuando com os braços abertos, quase como se ele e a neve...
— ... fossem um. - completou Sâmia..
— Isso mesmo. - Phil parou e a olhou assustado. — Você leu isso em algum lugar ou é mais uma que você adivinhou?
Sâmia esfregou o braço. Era impressão sua ou a temperatura havia despencado enquanto conversavam? Em um impulso, pegou as mãos de Phil entre as suas e as levou ao rosto. Sentia-se desprotegida, perdida em meio às sensações e às dúvidas sobre como agir. Agarrou-se à Phil e o abraçou ao ponto de os nós dos seus dedos ficarem esbranquiçados.
— Sâmia... Você está tremendo...
— Phil... vi... - o sussurro saiu dos lábios da garota em baforadas de névoa.
— Eu não entendi...
— Eu também vi esse homem.
— Impossível!
A garota se afastou e tomou o rosto dele entre as suas mãos. Se pudesse, pularia para dentro daqueles olhos e ficaria lá até se sentir melhor. Aquele castanho lhe oferecia conforto e proteção de pai, amigo, irmão e companheiro.
— Eu estava lá, Phil... Dois anos atrás.... Com a minha avó...
— A sra. Delgo... - Phil deu um passo para trás. A conversa tinha tomado um rumo inesperado. — Espera aí... Então, a melhora na aparência dela, o vigor, a felicidade... Se isso for verdade... Ah, não! Não! C-Co-Como vocês d-duas estão vivas?
Sâmia abriu a boca para explicar, mas tornou a fechar ao ouvir passos pelo corredor acompanhados pela voz da sra. Sotein. Os gritos ricocheteavam pelas paredes e, absorvidos pelo fosso, ecoavam pela casa e pelas entranhas da colina. Como um trovão em fúria, a mulher chamava pela filha em um misto de urgência e desespero.
— Eu tenho que ir, Phil.
— Não! Você brigou por que eu comecei a minha história e quase não terminei. Agora vai fazer a mesma coisa?
— É diferente, Phil. Depois a gente continua... Amanhã eu vou...
— Amanhã não! Hoje! Você vai me encontrar hoje à noite.
— Ficou maluco?! Eu não posso vir aqui.
— Aqui não. Na velha Estufa de Naus.
Os gritos da sra. Sotein ficaram mais próximos e os passos pelo assoalho já entravam pelas frestas da porta.
— Em pleno inverno? A gente vai morrer congelado.
— Não vamos não. Espera aí. - o garoto mexeu em algumas das caixas espalhadas pelo chão até encontrar um baú pequeno o suficiente para ser carregado debaixo do braço. Decorado com inscrições entalhadas na madeira, soltou um rangido metálico ao ser aberto e denunciou a própria idade através do cheiro de mofo do seu conteúdo. Phil pegou um frasco lá de dentro, tirou a poeira e o entregou à Sâmia.
— Antes de você sair hoje à noite, beba isso aqui.
— O que é? - Sâmia revirou o frasco na mão e o ergueu contra o fogo dos lampiões. Dentro, um líquido amarelado de aspecto viscoso fazia espuma a cada movimento um pouco mais brusco.
— Confia em mim. Isso vai te deixar aquecida pra você poder ir e voltar da estufa. Eu vou te esperar até o primeiro badalar da Torre Norte, uma hora da manhã.
— Phil, eu não sei se vou poder ir...
O rosto do garoto assumiu em expressão de ironia.
— Sâmia, eu te conheço muito bem. Você não aguenta mais carregar esse segredo sozinha. Eu vejo isso nos teus olhos. Além disso, não sei se você notou, mas nossas histórias parecem ter algo em comum. Portanto, você vai dar um jeito de ir. Eu tenho certeza disso.
Ela guardou o frasco no bolso sem falar nada. Pelo visto, Phil Voggi a conhecia tão bem quanto os seus pais.
Ou até melhor...
E chegamos ao fim do décimo primeiro capítulo. Phil e Sâmia têm tanto em comum que o mais natural, realmente, seria ficarem juntos. Contudo, a parte essencial ainda não foi revelada pela garota e Phil precisa saber de tudo para poder ajudá-la, não?!
Vamos ver como isso se dará...
Teu apoio é muito importante. Obrigado mesmo por ter chegado até aqui.
No capítulo seguinte (que marca a metade do livro!), teremos um passeio de Margareth com Madame Voggi antes do tal encontro entre Sâmia e Phil na estufa de Naus.
Até lá!
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