Capítulo Cinco.
O trem das autoridades pousou na estação de Avalanche mais cedo que o esperado, mas não tão cedo a ponto de evitar que Hadassa e Saory chegassem antecipadamente demais. Ambas enfrentaram o frio cruel de Inverno as nocautear com força total pelas longas horas que gastaram caminhando até a estação; mas não demoraram tanto tempo assim. Gaeaf falhou na sua tentativa de as atrasar com seu frio incontestavelmente brutal e Saory jogou isso na cara de Hadassa assim que chegaram. Gross não se importou com a censura, havia se prevenido.
As ruas que percorreram estavam vazias. Apenas elas trotaram nas calçadas e receberam os flocos brancos e grosseiros que aquele dia cuspiu em seus rostos congelados. O dia parecia noite e a neblina cortina de fumaça. Quando finalmente chegaram na estação, essa estava mais vazia que o coração de um caçador. Chegaram bem antes do esperado, mas já anoitecia. Não que fosse possível notar muita diferença. Com a chegada antecipada, tiveram que dormir nos bancos da única lanchonete daquele lugar. Apenas uma garçonete as fez companhia naquela noite congelante, e ambas só foram permitidas se estabelecerem debaixo do aquecedor graças aos seus títulos. Fossem eles falsos ou não.
Saory pagou um chá fervendo e um jantar para Hadassa assim que chegaram, então ambas deitaram suas cabeças na mesa e passaram a noite em claro. Não conseguiram dormir. Nenhuma das duas. Talvez fosse culpa da falta de jeito que deitaram, dos bancos duros ou dos seus pensamentos insolúveis.
Quando o dia amanheceu o sol não o acompanhou, e ambas só entenderam que se tratava do dia seguinte quando o trem finalmente estacionou e levantou mais neblina.
O café da manhã foi bancado por Saory, e o assento de Hadassa no trem das autoridades não foi diferente. Com o sobrenome Cartelli ela poderia colocar qualquer um naquele trem. Até mesmo uma errata mentirosa, compenetrada e permanentemente emburrada.
As duas embarcaram o mais rápido que conseguiram, sentindo seus narizes, única parte verdadeiramente exposta de seus corpos, congelarem nos poucos minutos que passaram ao ar livre.
Inverno as queria solidificar ali, Gross sabia disso, mas também sabia que ela não aguentaria as atrasar por muito tempo. Nem passaria dos limites. Conseguia perceber que Gaeaf aos poucos recuava, perdendo qualquer ínfima força e esperança que lhe restara. E ela quase sentia pena pelo seu estado totalmente destroçado. Não a culpava no final. Ambas faziam o que precisavam fazer. Ambas estavam certas, ao menos para si mesmas.
– Apenas para eu saber. Está morrendo?
Hadassa Gross indagou, ao se irritar com os murmúrios de dor que saíam dos lábios ainda levemente arroxeados de frio de Saory Cartelli.
O trem das autoridades balançava menos que o da Vigia, e tinha um cheiro agradável de couro, Hadassa percebeu aquilo assim que entrou. Apenas as duas ocupavam um vagão envernizado inteiro, e a princesa se encolhia com um banco extra apenas para os lençóis que havia pedido ao funcionário do trem. Já haviam embarcado há cinco minutos e o veículo a acelerar, mas mesmo assim a ruiva continuava a bater o queixo de frio, reclamando o suficiente para cortar pela raiz a pequena muda de paciência que murchava dentro de Gross.
– Para o seu azar ainda não – respondeu malcriada, deixando apenas seus olhos verdes falsos para fora dos cobertores. Sua voz estava um pouco trêmula. – Sua pequena aventura não foi tão eficiente a esse ponto.
– Ótimo. Então pare de resmungar – ordenou, fechando a cortina de tecido ao lado de sua cabeça com um só puxão, escurecendo ainda mais o vagão na qual estavam. Do lado de fora Inverno ainda parecia quase saudável. Nevava o suficiente para parecer que não haviam mudado o mundo, nem desobedecido uma deusa.
– Eu estou congelando – protestou Saory, enquanto Hadassa esticava suas pernas no banco ao lado. Haviam se sentado com duas poltronas de diferença.
– Não está – retrucou, sem paciência. – Se estivesse não estaria resmungando.
Aquela constatação fez Saory aprumar, ofendida. Seu tom aumentou alguns decibéis, transformando sua voz rouca em algo um pouco menos amigável.
– Você é uma hipócrita. Sabia disso?
Gross não se importou minimamente com aquele comentário, debruçando-se para abrir a mochila que estava no chão mais abaixo. A princesa continuou:
– Você está sempre resmungando! – apontou, e Hadassa murmurou um xingamento em resposta. Aquilo fez Saory gesticular, vitoriosa. – É disso que eu estou falando.
A veronense se limitou a revirar os olhos, puxando sem classe um de seus muitos casacos pretos do lado de dentro e o apoiando atrás de seu pescoço. Suas mãos estavam encobertas por luvas duras de couro. Ela concentrou então, grande parte de sua atenção em seus dedos enquanto as tirava. O barulho do aquecedor que saia acima de si parecia com o de sua antiga e soterrada casa. O cheiro de couro a lembrava do carro alugado por Erick. A voz de Saory de seu propósito e sua impaciência. Depois de acusar Hadassa de ser uma hipocrita, a princesa ficou quieta, aquecendo-se o suficiente para parar de tremer e passar a sentir o cansaço pesar seu corpo magro. Gross agradeceu por aquilo mais do que tudo naquele dia estressante.
A veronense respirou profundamente, fechando seus olhos. Bem ao fundo, sua cabeça ardia, latejava. Suas pernas estavam doloridas e seu emocional exausto. Mesmo antes de Saory e Dantas chegarem, não andava dormindo bem. Seus pesadelos eram constantes. Ela sonhava com todos que havia decepcionado. Ela sonhava com o corpo de Erick em chamas. E estava tão cansada que pagaria por segundos de paz. Pagaria por uma boa dose de álcool forte. Pagaria para se sentir segura ao menos uma vez na sua estupida vida. Esse era seu plano com o feitiço, mas era ali que ele a havia levado.
– Quer um cobertor? – a voz de Saory fincou no cérebro de Hadassa como um prego. Ela abriu os olhos de uma só vez, inspirando profundamente.
– Não.
Seu tom saiu ríspido. Aquilo fez Saory umedecer seus lábios, ofendida, mas cansada o suficiente para não retrucar.
– Vou dormir um pouco – anunciou, baixo. Hadassa murmurou um "ok" e mais uma vez o silêncio bem-vindo a abraçou. Ela fechou novamente os olhos, deixando que o escuro a preenchesse e o cansaço a ninasse como nunca antes.
Fazia tempo que não dormia profundamente, mas naquele momento, adormecera por longas horas, sem sonho algum para a fazer acordar com o coração acelerado. Nem realidade alguma para fazê-lo se destroçar.
– Sabe, Cartelli, isso é besteira – Hadassa apontou, com seu arisco tom intacto, mesmo depois de dois dias de viagem. – O mundo está se acabando e nós continuamos sendo as únicas a atravessar os continentes nesse trem.
Seu argumento fez Saory assentir com a cabeça. Enfurnadas naquele mesmo vagão por dois dias, com a companhia apenas uma da outra e, esporadicamente, do rapaz que as levava comida, tornava-se quase necessário dialogarem sazonalmente para passar o tempo. Quando não estavam dormindo, ou roubadas pelos seus pensamentos, as duas trocavam algumas palavras. Sem celular, sem mais ninguém, era natural que elas se comunicassem. Mas, naqueles dois dias de convivência com no máximo dez horas de consciência, elas haviam dialogado por no máximo cinco minutos. Aquilo já era o bastante para Hadassa, mas de longe insuficiente para Saory. Entretanto, apesar do tédio, a princesa havia desistido de puxar assunto com a sua companheira de ferrovia, entendendo que a errata só conversava quando queria e aceitando que não haviam nascido para viajarem juntas. Muito menos para conviverem.
– É – concordou, descruzando suas pernas e fechando a cortina. Agradecida por Hadassa ter puxado um assunto, afinal, apesar de ter se convencido que esse era seu destino, não aguentava mais ver neve e escuridão por detrás da janela. Foi por isso então, que ela não percebeu quando as primeiras gotas acertaram em cheio o vidro ao seu lado. – Mas o que eles realmente podem fazer?
Indagou, encarando os cabelos escuros de Hadassa caírem por detrás do banco no qual ela estava sentada. O mesmo desde o primeiro dia.
– Mais do que simplesmente ficar em seus escritórios. Monitorando deuses.
Respondeu, fazendo Saory rir ironicamente da indireta bem direcionada, aconchegando-se debaixo do único lençol que ainda usava.
– Oh, deuses. Essa é a viagem mais longa da minha vida. Sabe onde estamos? Acho que vou dormir de novo...
Hadassa se arrastou em direção a janela, abrindo a cortina com um puxão e vislumbrando pingos de chuva mancharem o vidro até então embaçado e borrado de escuro. Ela inspirou profundamente.
– Perto – apontou, fechando a cortina de uma só vez e se acomodando novamente no banco. Mas aquela revelação fez o contrário com Saory Cartelli. A fez despertar.
– Perto? – indagou, enquanto abria ela mesma o tecido de sua janela, apenas para encarar o vidro se encharcar. Aquilo a fez franzir sua testa. – Está chovendo? – agitou-se. – Já saímos de Inverno?
Hadassa negou com a cabeça, mesmo que ela não conseguisse ver.
– Não – cruzou sua perna, enroscando a ponta de seu casaco. – Esse é o Inverno que criamos.
Saory suspirou, fechando delicadamente a cortina e se acomodando mais uma vez. O barulho da chuva era superado pelo dos trilhos, mas ela jurava que podia sentir o cheiro de neve azeda por detrás de uma janela quase blindada.
Chuva forte em Inverno. Isso era Haf. E aquele era o primeiro contato que tinham com a desestruturação do continente de origem de Hadassa. As pessoas que moravam ali perto haviam sido evacuadas e as duas pivôs da destruição adentravam sozinhas no extremo noroeste de Inverno, o ponto mais caótico do continente. Passavam por ele com uma superioridade e proteção invejável. E o trem o percorria rápido o suficiente para chegarem na fronteira em minutos. Para adentrarem na ponte que interligava os continentes em ainda menos tempo e para fazer voltar a nevar ao mesmo tempo que caíam gotas de chuva.
– Não quer saber do plano? – depois de longos minutos de silêncio, Saory perguntou. Esquecendo-se por hora que havia prometido a si mesma que não forçaria mais contato que o necessário com Gross. Sentindo-se ansiosa depois de ver Inverno sucumbir. O trem fazia menos barulho quando em cima do mar, mas nenhuma das duas percebeu onde estavam naquele ponto. Anestesiadas com o barulho. – Você ainda não me perguntou.
– Plano? – indagou. Estranhamente, sua voz parecia mais branda que o normal. – Que plano?
– Para localizar Erick.
– Ah – exclamou, sem emoção. – Esse plano.
– Sim, esse plano – aprumou-se, desfazendo-se do edredom e recuperando seu linguajar técnico e real. – Então. Sobre o plano. Dantas e eu estávamos pensando em contactar uma bruxa. Raíssa me deu esse número que...
– Raíssa? – interrompeu-a sem cerimônias. Saory inspirou, preparando-se para o show que viria a seguir.
– Sim.
– Você está em contato com essa desequilibrada? – indagou, incrédula. Cartelli cruzou suas pernas com classe.
– Gross. Ela é minha irmã.
– Não me importo. Se encontrarmos com ela, eu quebrarei seu nariz.
Saory riu debochadamente.
– Ah, é? Boa sorte com isso – ironizou, desprendendo o coque de seu cabelo sem nenhum motivo específico. Suas pontas pouco enroladas caíram como ondas em seus ombros. As verdadeiras ondas oceânicas abaixo das duas digladiavam com força total enquanto a chuva batucava no teto de metal e a neve fazia o trilho gritar e se partir. – Mas, voltando ao plano. Nós temos essa bruxa, de confiança, ela fará um feitiço de localização e...
Antes que a princesa de Jasmim pudesse finalmente completar uma de suas falas, o veículo parou com brutalidade e pressa. A freada foi brusca, e fez ambas as meninas serem arremessadas sem aviso prévio para frente. Saory bateu com o joelho no banco, Hadassa pôde agradecer aos seus reflexos por se manter intacta. O trem parou por completo, forçando as duas a franzirem a testa.
– O que aconteceu? – Saory foi a primeira a indagar, sentindo seu estômago embrulhar. – Onde estamos?
Esquivou-se até a janela, abrindo a cortina para enxergar algo. Hadassa fez o mesmo. Do lado de fora, o escuro da noite sufocava o pequeno trem e seus trilhos. Estavam equilibradas sobre uma ponte com apenas o oceano feroz abaixo de si. Acima de suas cabeças, o céu estava cinza, nublado, revolto. Aquelas nuvens não pertenciam a Inverno. Hadassa entendeu rapidamente do que se tratava
– Estamos em Primavera – soltou, sem emoção, o que fez Saory arregalar os olhos.
– Primavera?
Antes mesmo que ambas pudessem esboçar alguma reação, o maquinista invadiu o vagão que estavam sem pedir licença. Carregando uma expressão assustada em seu rosto claro de Outono.
– Alteza. Senhorita – começou formalmente, roubando a atenção das duas. Apesar da relativa penumbra ambas puderam enxergar o nervosismo em sua testa bem marcada por linhas de expressão. Ele não fez mistério algum antes de completar: – O trilho está destruído.
– O quê? – Cartelli indagou, perplexa. Hadassa, por sua vez, não se surpreendeu, revirando seus olhos, puxando a mochila e enlaçando a alça em ambos os seus braços, ciente do que deveriam fazer a seguir.
– Não podemos continuar. Há um buraco. A neve...
– Vamos descer – Gross o interrompeu, ríspida, colocando-se de pé em um pulo e voltando seu olhar escuro para Saory. – Cartelli, venha.
– O quê? – repetiu, estupefata, mas Hadassa não a deu atenção, recolocando seus sapatos e abrindo caminho em direção ao vagão do qual o maquinista havia vindo. Saory trocou olhares confusos com o sujeito antes de voltar a falar: – Você me ouviu? – indagou, sendo ignorada sem cerimônias, aquilo a fez se irritar. – Estamos no meio do oceano! – Gross parou em frente a divisão entre os vagões para encará-la, mas não havia nada além de certeza em seu rosto.
– Se quiser ficar, fique.
Dito isso, a veronense caminhou sozinha em direção a frente do vagão, não deixando a Saory escolha alguma a não ser segui-la.
– Droga! – exclamou, colocando-se de pé em um pulo, calçando suas botas com mais rapidez ainda e jogando os edredons no chão. – Droga – abaixou-se para pegá-los desajeitada, sorrindo logo em seguida para o maquinista que a encarava assustado. – Obrigada pela hospitalidade – amassou os tecidos com pressa, jogando-os em cima dele logo em seguida. Ele quase se sufocou, mas permaneceu profissional. – E pelos cobertores – agachou-se para pegar sua pasta, seguindo Hadassa logo em seguida. – Grata. Grata. Grata – repetiu, enquanto passava correndo aos tropeços pelo maquinista, atrás da veronensse sem juízo.
Hadassa a ignorava, mesmo que tivesse visto que ela a seguia.
– Hadassa. Não, droga... White! – gritou, lembrando-se finalmente do nome falso da menina, enquanto tentava alcançá-la; mas só o fez quando essa chegou ao seu destino, parando em frente a porta do primeiro vagão. Saory se viu ofegante. Hadassa tocou na maçaneta. A princesa tornou a arregalar seus olhos. – Estamos no meio do mar. Você quer se matar?
– Não seja dramática. Não estamos no meio do mar – disse, e então simplesmente abriu a porta e desceu.
Saory prendeu sua respiração, assustada, caminhando lentamente para mais perto da porta e tentando enxergar algo além de escuro e chuva, certa de que sua parceira de viagem havia se jogado no oceano. Os pingos nocautearam seu rosto e ela os xingou, não conseguindo enxergar muito bem. E foi nesse momento que Hadassa reapareceu, viva, irritadiça, matando-a de susto e soltando por fim:
– Cartelli. Não temos o dia todo.
Então ela não fez mais cerimônias para puxá-la para fora, tendo que sustentar um gritinho em seu rosto e logo em seguida, um tapa em seu ombro com uma pasta dourada.
– Você é maluca! – gritou, entendendo aos poucos que havia sido obrigada a descer em terra firme e chuvarada. Estava estupidamente ofegante e ofendida. Bateu seus pés no chão. – Nunca mais me puxe desse jeito!
Hadassa não teve problema em soltá-la, assistindo seu cabelo ser ensopado pelas gostas grosseiras. Saory estava transtornada, com o peito batucando pelo susto e a incredulidade, mas Gross não a esperou se recuperar para continuar a caminhar, largando-a sozinha bem perto do precipício. A princesa tirou segundos para revistar precariamente sua situação, finalmente percebendo que o trem havia sim chegado em terra firme, mas apenas a sua ponta.
– Oh, deuses!
Exclamou, dando uma corridinha idiota para longe da beirada. Apenas a porta do primeiro vagão havia chegado em Primavera. Todo o resto o trem se equilibrava em cima do oceano irado. E a tempestade a lavava como um chuveiro no máximo. Eu vou matar Hadassa Gross.
A chuva castigava, quase furando a cabeça dura da veronensse jurada de morte. Em poucos segundos, seu casaco estava encharcado e seu cabelo ainda mais escuro. A menina deu poucos passos antes de finalmente chegar na dianteira do trem. O seu farol forte iluminava o que seus olhos buscavam: o motivo daquela parada não programada. O trilho quebrado. Por gelo.
Os pingos de chuva eram evidenciados pelo farol, mas também a neve, sendo rapidamente apagada pela chuva, mas mesmo assim, ainda presente.
Hadassa andou até o trilho despedaçado. O gelo havia o retorcido o suficiente para parar o trem, mas não para impedi-la de sair de Inverno. Com a nuca sendo afogada, Gross agachou-se próximo a neve, inspirando profundamente. Seus dedos tocaram o que mais a lembrava de sua casa, desfazendo todos os restos da resiliência de Gaeaf.
– Eu realmente gostaria que estivesse um pouco mais forte – sussurrou para a escuridão, recebendo nada além do silêncio em resposta. Gaeaf derretia como o gelo em seus dedos. E agora ela estava por conta própria.
Bom, isso antes que a princesa de Jasmim a alcançasse, juntamente com o maquinista e o outro funcionário do trem.
– Com quem está falando? – Saory indagou, com a voz mais rouca e ríspida que o normal, mas paralisou assim que encarou o mesmo que Hadassa. – Ah, uau. Gelo? – aproximou-se da menina com o cadarço de sua bota ainda não amarrado. A chuva a deixara com frio, por isso ela tremeu. Ou assim gostaria de acreditar. – Gaeaf, não? Achei que ela estava do nosso lado...
Sussurrou, mas Hadassa não a respondeu. Não tinha o que responder, era uma pergunta retórica, como metade das que saiam de sua boca. Contudo, mesmo que a princesa estivesse em busca de uma resposta, a de Hadassa não seria satisfatória. Muito menos aclamada.
Depois da pergunta de Saory, os únicos que dividiam com elas aquele meio de transporte se juntaram na sua surpresa e perplexidade.
– Ah, nossa!
– Gelo?
Enquanto os dois se surpreendiam, Hadassa se colocava de pé. Encarando rapidamente todos os três na penumbra, a menina aumentou seu tom de voz para se fazer ouvir mesmo com a chuva forte e a situação inusitada e assustadora.
– Há algum estabelecimento por perto? – indagou. Um dos homens a encarou, gritando de volta:
– Acho que tem um posto de gasolina.
– E um bar – o maquinista completou por ele, gritando e tampando os olhos com as mãos. – Sempre há um bar nas fronteiras, para os viajantes – encarou Hadassa. – Nunca veio a Primavera antes?
– Em que direção fica o bar? – Saory respondeu por ela, tremendamente contrariada com a chuva que a encharcava, além da situação que haviam sido inseridas.
– Para lá. É só seguir reto – deu um tapa nas costas do outro funcionário. – Acompanhe elas. Eu preciso resolver... – encarou o gelo com a testa franzida. – Isso. Alteza, com a sua licença.
Saory acenou com a cabeça, o maquinista entrou no trem e então os três caminharam sem mais delongas até o bar. A partir do momento em que a princesa pediu orientação, elas tinham passagem garantida. E então caminharam poucos minutos na chuva, por um caminho traçado em meio a um matagal de beira de ferrovia, antes de finalmente chegarem em frente à algo similar a uma loja de conveniência. Ao lado de um posto de gasolina. Havia um led escrito "Bar" na frente da pequena construção e uma porta de vidro quase convidativa. Pisaram em asfalto e poça antes de adentrarem pingando no seu destino da noite.
O funcionário as deixou sozinhas e voltou ao trem. A tempestade piorou, as dando boas vindas.
Não sabiam, mas estavam em Canário de Fronteira. Uma cidade pequena, desconhecida pela princesa do continente e bastante afetada pelo novo mundo que elas criaram.
O bar estava vazio, como era de se esperar para uma noite tempestiva e atípica como aquela. Primavera não se preparava para chuvas, portanto, as ruas estavam alagadas, e era isso que passava na televisão que o barman assistia.
Assim que ambas adentraram o estabelecimento, começaram-se os trovões. Saory validou o recinto arrumado e iluminado com um sorriso de alívio no rosto. Sentia-se muito mais confiante fora da chuva. Mesas redondas e metálicas se estendiam por todo o local e um grande bar pulou aos seus olhos. Totalmente ensopadas, ambas trocaram de roupa no banheiro. Saory não havia levado muita coisa para aquela viagem, pretendendo voltar a casa de Raíssa bem mais cedo do que provavelmente o faria. Dentro de sua pasta só havia camisas. Seus únicos casacos estavam ensopados. Hadassa a emprestou então, à força, uma blusa de manga comprida, largando-a sozinha logo em seguida. Saory ficou um tempo a mais no banheiro, fazendo questão de ligar seu celular e telefonar para sua irmã. Enquanto explicava a situação para Raíssa, secava seu cabelo no secador de mão. Hadassa por sua vez, pegava uma mesa e chamava o garçom.
O telefonema foi breve. Raíssa pouco falava em ligações, e Saory deixou o banheiro com sua pasta e casacos ensopados com rapidez. Quando fora, buscou Hadassa com seu olhar, esperando encontrá-la pronta para seguir, mas não gostou nada do que viu. Eu vou matar Hadassa Gross. Jurou-a de morte uma segunda vez, enquanto caminhava furiosamente em sua direção.
– Você está brincando comigo? – indagou perplexa, ao encontrar sua companheira de viagem levemente alcoólatra bebericar um copo pouco cheio. Irritada, jogou sua pasta e casacos molhados em cima da mesa. Essa fez um barulho alto. Foi então que Saory estabeleceu de vez uma cena desnecessária, chamando a atenção do poucos outros ocupantes daquele bar afastado.
– O que? – Hadassa indagou, despreocupada, após dar um bom gole em sua bebida. Seu casaco e mochila estavam na cadeira ao lado. Ela levantou o copo na direção dos olhos embrutecidos de Cartelli. – Você quer? – provocou, forçando a outra a arquear uma das sobrancelhas. – Eu coloquei no seu nome, a propósito.
– Pare. Estamos em uma missão – ordenou. – Não temos tempo para beber. Precisamos contactar a bruxa.
– Não precisamos de uma bruxa – argumentou, calma. E foi o seu tom cristalino e inequívoco que fez Saory abaixar o seu tom de voz, cruzando os braços. Seus olhos desconfiados fixaram nos de Hadassa, que os sustentou sem vacilar.
– O que você não está me contando, Hadassa?
– Muitas coisas – deu de ombros, bebendo mais um gole. Sua bebida era amarela e seu copo já estava pela metade. Saory inspirou profundamente antes de continuar, tentando se controlar, apesar de querer estapea-la.
– Erick é uma delas?
– Sim.
– Ok. E você pretende encontrar ele no fundo desse copo?
– Talvez no do terceiro.
Cartelli encarou-a com superioridade e falta de paciência.
– Eu não estou pagando por isso.
– Sim você está.
Afirmou, bebendo mais um longo gole. Aquela foi a gota d'água.
– Pare de beber! – mais uma vez, aumentou seu tom, perdendo as estribeiras e se debruçando sobre a mesa para puxar o copo das mãos firmes de Hadassa. O objeto balançou o suficiente para derramar e molhar seus dedos e pertences. Mas ela ignorou, encarando Hadassa irritadiça. A veronensse a encarava de volta com um olhar quase inexpressivo. Ambas tinham atenção total do casal da mesa ao lado. – Dantas confiou em nós!
– Eu sei, Cartelli. E se vamos ser uma dupla você precisa começar a confiar em mim também – começou, indiferente, levantando uma de suas mãos para fazer sinal para o garçom. – Agora sente e beba. Ou vá. Eu não ligo, honestamente – continuou, mantendo seu tom neutro e despreocupado enquanto seu olhos transformavam a relutância de Saory pouco a pouco em fumaça. – Apenas pare de duvidar das minhas intenções. Eu sei o que estou fazendo. Eu deixei minha irmã e meus pais por isso. Não duvide de mim.
Assim que terminou seu discurso, deixou seu olhar entediado tombar sobre o garçom que vinha em sua direção. Saory por sua vez, continuou a encará-la, sentindo com se tivesse sido atingida por um tapa. A certeza de Hadassa era tanta que parecia contagiosa. Subitamente, sentiu-se um pouco envergonhada por ter arrancado o copo da mão daquela garota e de ter feito aquela cena. A verdade era que nunca havia duvidado das intenções de Hadassa. Pelo contrário, sabia o que ela faria por Erick. Era exatamente por isso que ela havia ido até ela para mostrar as fotos. Ela confiava em Hadassa e, pelo bem daquela missão, precisaria fazer o que muito raramente fazia: engolir seu orgulho e a obedecer.
– Mais um desse...
– Não – interrompeu o pedido de Hadassa pela metade, chamando a atenção do garçom de barba vermelha e da veronensse para seu rosto sardento. Com todos os olhares voltados a si, ela pousou com graciosidade o copo roubado na ponta da mesa, antes de finalmente continuar: – Você tem um péssimo gosto para drinks – explicou, sorrindo de forma forçada antes de voltar sua atenção para o rapaz confuso. – Dois Martínis Borboleta, por favor – pediu, retirando uma encarada desconfiada de Hadassa. Ela a fitou a fundo em resposta, afastando a cadeira para se sentar a sua frente e pousando sua pasta e casacos junto com os de Had. – Se eu estou pagando, vamos ao menos beber direito.
– Aquele cara me lembra o cabelos compridos – depois da terceira dose de Martíni Borboleta, Hadassa apontou, indicado com a taça cheia a direção na qual um sujeito de cabelos na altura dos ombros se debruçava sobre o balcão.
Naquele ponto, ambas haviam se esquecido brevemente da missão, e bebiam como se fossem algo além de parceiras de viagem. E a noite cada vez mais adentrava em sua consciência. E as palavras saíam com cada vez menos moderação de suas bocas. Saory escolheu confiar cegamente em Hadassa, que tinha certeza de que tudo que tinham que fazer era esperar. Portanto, era isso que faziam. Escolhendo a bebida para passar o tempo. O que não era exatamente a mais racional e madura das escolhas.
Havia sido o álcool que levara Hadassa a se lembrar e externar aquilo, e agora o mesmo componente transformava Saory em pedra. Ela não estava preparada para aquele assunto e quase se engasgou com a sua bebida ao ouvir o rótulo de Kaleb sair sem cerimônias dos lábios de Hadassa.
– Kaleb?
Hadassa pareceu confusa, mas fez pouco caso.
– Deve ser.
Saory engoliu a seco, virando-se para olhar o homem que Hadassa apontara com o peito batendo acelerado, mas voltando a encarar a menina com a testa franzida e uma expressão quase ofendida em seu rosto avermelhado.
– Aquele cara é ruivo – argumentou, o que fez Hadassa dar de ombros.
– Entediantemente, todos nesse bar são – Cartelli tentou sorrir em resposta, mas não conseguiu. Bebeu então mais um gole, subitamente ansiosa. Gross a analisou com atenção, rodando sua taça em mãos, presenciando quando a expressão da princesa se tornou quase caricatamente séria. Foi então que percebeu que havia tocado em um assunto sensível. – Não lembro o que aconteceu com ele.
Foi sincera, o que fez Saory voltar a encará-la. Seu peito batia em acelerado e aquilo a estava irritando. O fato era que não falava sobre Kaleb desde que tudo havia acontecido. Muito menos se dera conta que apenas ao pensar em seu rosto se sentiria daquela forma. Que idiota. Que babaca. Bateu com a taça na mesa, ficando abruptamente irritada.
– Bom, aquele mentiroso me enganou e...
– O que não significa que eu queira saber – interrompeu-a, séria. A ruiva arqueou a sobrancelha, gesticulando mais que o normal. Sentia seu pescoço queimar em rubor e sabia que esse era um dos sinais que já devia parar de beber, mas não foi isso que fez.
– Sim, você quer. Cale-se, beba isso e me escute – ordenou, comedo as palavras. Gross a encarava entediada, arrependida por ter acendido o assunto, mas ela não se importou em continuar: – Ele queria matar a minha mãe – desabafou, sentindo seu peito voltar a acelerar. – E esse foi o único motivo pelo qual ele se aproximou de mim.
Quando terminou de falar, seus lábios formaram um biquinho involuntariamente. Hadassa fez uma careta.
– Isso é triste.
A princesa suspirou.
– É.
– Beba – ordenou, e ela obedeceu, sedenta por afogar seus sentimentos, que borbulhavam sem nenhum controle, sendo vomitados sua boca.
– Sabe o que mais? – retornou a dizer, indigesta. Não tinha mais muito controle do que sentia ou falava. Encarou a taça entre seus dedos. Esse era o quarto ou o quinto? Não importava! Continuou, furiosa, entristecida: – Ele disse que me amava depois de confessar que só estava comigo para matar a minha mãe. Acredita? Que me amava!
Gross bebericou seu quarto martíni.
– E você?
Saory mordeu seus lábios, pensando por alguns segundos antes de a responder.
– Eu acho que eu o amava de volta.
Aquela situação fez Hadassa se sentir incomodada.
– Ele não te merecia.
Soltou, o que fez Saory sorrir, mudando subitamente de humor. Parecia quase orgulhosa de si mesma.
– Não, ele não me merecia.
O sorriso bobo e levianamente bêbado no rosto de Saory fez Hadassa se irritar.
– Beba.
Ordenou e mais uma vez a princesa obedeceu, bebendo tudo de uma vez. Terminando sua taça com uma expressão novamente cabisbaixa. Sua mudança de humor era quase tão súbita quanto o rumo da chuva do lado de fora.
– Eu me sinto triste – confessou, apoiando os cotovelos na mesa e encarando a veronensse incisivamente. – Hadassa, como era Erick?
Indagou, inesperadamente, forçando Hadassa a se aprumar.
– Não, não estamos fazendo isso. Beba em silêncio.
– Minha bebida acabou – resmungou, apoiando seu queixo em suas mãos.
– Então durma.
– Não – murmurou, balançando suas pernas. – Eu te contei sobre Kaleb, é a sua vez.
– Eu não pedi para me contar sobre Kaleb.
Saory bufou.
– Ora, vamos. Ele era um doce, não é tão difícil. Conte-me algo feliz.
– Não.
– Ele era verdadeiro? – insistiu, forçando Hadassa a inspirar profundamente, limitando-se a encará-la por longos segundos antes de finalmente ceder:
– Sim.
Os lábios da ruiva se alargaram em um longo sorriso sugestivo.
– Vocês...
Fez um sinal com as mãos. Hadassa não alterou sua expressão, apesar de ter entendido o que ela queria perguntar.
– Não é da sua conta – arrastou sua taça na direção da menina. – Beba.
Saory empurrou-a de volta, encarando-a animada como uma criança recebendo seu presente de aniversário.
– Eu tenho certeza que sim! Como foi?
Had cruzou seus braços, analisando a expressão alegre da princesa de Jasmim. O quarto Martini pela metade contratava com o rosto branco da menina e fazia sua língua mais flexível que o normal. Se alguém perguntasse, ela culparia o álcool, mas na verdade, não estava tão bêbada assim.
– Bom.
Saory se aproximou, com um sorriso torto tatuado em seu rosto.
– Só bom?
Gross não se alterou ao completar:
– Muito bom.
Aquilo satisfez a curiosidade de Saory, que voltou a se encostar em sua cadeira, pensativa mais uma vez.
– Kaleb era maravilhoso – anunciou, suspirando e apoiando novamente seu queixo em suas mãos. Seus olhos se voltaram para Hadassa, ela mordeu os lábios. – Estou um pouco tonta, vou parar por aqui. Você?
A veronensse deu de ombros.
– Estou bem.
Foi sincera, mas Saory ao menos escutou a resposta para a sua pergunta, apontando sem discrição para algo que a havia distraído de repente atrás de Gross.
– Aquele cara está olhando para mim? – indagou. Had se virou então, apenas para dar de cara com um sujeito meio sujo e ruivo encarar Saory como a um pedaço de carne.
– Sim – disse, encarando sua parceira de viagem mais uma vez. Sua expressão entregou sua opinião sobre aquilo, mas Saory ao menos viu. Com a sua resposta, a princesa se colocou rapidamente de pé, encarando-o sedutoramente. Hadassa se apressou em se debruçar e segurar seu pulso. – Não, fique sentada, você está bêbada.
Ordenou, chamando a atenção da menina por alguns instantes, mas não da forma como gostaria.
– Ah, por favor – balançou seu pulso enquanto sorria encantadoramente na direção do sujeito. Hadassa praguejou, puxando-a mais incisivamente.
– Cartelli – quando não conseguiu sua atenção a força, mudou contrariadamente de tática. – Erick era maravilhoso também.
Como esperado, aquela confissão fez Saory voltar mais uma vez toda a sua atenção a seus olhos escuros, esquecendo-se complemente do rapaz. Um sorriso malicioso cortou seu rosto enquanto ela se sentava mais uma vez.
– Ah, você ama os ruivos!
Provocou, sorrindo. Aquilo fez Hadassa ter se arrependido de tê-la ajudado. Ou quase isso.
– Menos, Cartelli.
– Sente falta dele? – indagou curiosa. Seus olhos brilhavam. Ela a encarava atentamente, apesar da leve tontura. Saory realmente gostaria de saber o que sentia. Aquilo fez Hadassa beber mais um gole do Martini antes de a responder com sinceridade:
– Sim.
A ruiva inspirou profundamente, encarando-a com zelo. Como se ela fosse um pobre animal machucado.
– Vai funcionar. Essa missão vai funcionar. Você merece seu bom moço de volta.
Gross levantou as sobrancelhas, pouco enjoada com aquele sentimentalismo súbito.
– Ok.
– E eu preciso de um bom moço na minha vida! – voltou novamente sua atenção para o sujeito sujo atrás de Hadasssa. – Aquele rapaz parece um bom moço para você?
Gross bebericou sua bebida antes de a responder, séria:
– Não.
– Droga. Tudo bem – deu de ombros. – É provavelmente um sinal. Deixe-me te contar um segredo – debruçou-se sobre a mesa para se aproximar de Hadassa. As taças vazias balançaram e a mesa rangeu, mas Saory não se importou, chegando o mais próximo que conseguiu de um Hadassa com a testa franzida. – Eu nunca realmente gostei ruivos – sussurrou, dramaticamente, retirando algo similar a um riso dos lábios de Hadassa.
Aquela reação espontânea e inesperada fez Saory sorrir com mais intensidade, jogando-se na cadeira de forma desajeitada. Hadassa suspirou, voltando a sua expressão séria quase tão rápido quanto essa havia sumido. E aquele era o primeiro riso que dava em meses. Tão rápido quanto os pingos de chuva em queda livre, mas já era alguma coisa.
– Eu gostei.
Pontuando sua lamentação, um barulho alto e inesperado de um trovão fez a princesa de Jasmim pular de sua cadeira e Hadassa largar com velocidade a taça vazia com a qual brincava. O clarão penetrou o estabelecimento e as ponta de seus dedos a machucaram. Ela franziu sua testa, abrindo e fechando suas mãos enquanto voltava com receio a tocar na taça, fingindo que não tinha sentido seu dedo eletrizado. Fingindo que não sabia o que acontecia.
– Essas chuvas idiotas – Saory começou, mais uma vez irritada, passando a comer letras. Do lado de fora, outro relâmpago penetrou o bar, mas não ouve estrondo dessa vez. Hadassa decidiu largar sua taça. – Elas assustam os bichinhos. Isso não é meu continente.
Gross a encarou a fundo.
– O continente não é seu.
Aquela afirmação fez Saory tombar seu rosto e pesar suas palavras. Em sua mente alegre aquilo pareceu certo demais. Profundo demais, tão profundo que arrastou no substrato de seu coração, levantando poeiras e farpas.
– Você está certa – admitiu, cruzando seus braços com as mangas dobradas. – Nem governar eu posso! Consegue imaginar? Eloy assumindo. Tra-gédia.
Hadassa apoiou suas mãos na mesa. Ambas haviam parado de formigar. Ela só não sabia se aquilo era um bom ou um mal sinal. Ainda.
– Como funciona a sucessão?
– O filho mais velho assume. Seguido de seus filhos.
Hadassa levantou uma das sobrancelhas, puxando a taça por reflexo mas se decepcionando ao perceber que ela estava vazia. Foi então que ela novamente chamou o garçom, continuando despretensiosamente:
– Eu achei que a filha mais velha era a caçadora desequilibrada.
Saory arregalou os olhos, apoiando seu queixo em suas mãos e encarando sua interlocutora pensativa.
– Deuses. Você está certa.
Catastroficamente, um relâmpago nada inesperado atingiu em cheio o bar, cortando o mais longo diálogo – embriagado – que ambas já tiveram a força. Subitamente, o iluminado recinto se transformou em masmorra. As luzes se apagaram sincronizadas. Todas. O barulho do trovão veio segundos depois. Algo similar a um rugido, a uma risada. Hadassa não conseguiu mais fingir que não sentia mais nada. Não quando dedos estavam a matando. Ela os amaldiçoou, fazendo uma careta involuntária de dor.
– Que incrível – ironizou Saory. Sua voz saiu de algum ponto do escuro, e Hadassa tentou a caçar. Suas pupilas ainda estavam desacostumadas ao breu repentino. Do lado de fora, a chuva batia com força na porta de vidro. Com força suficiente para entrar. – Não há gerador?
Gritou, propositalmente, inserindo-se na massa que começara a resmungar pela falta de luz. Hadassa tentava enxergar a silhueta de Saory quando uma pontada forte pareceu furar seus dedos no meio. Ambas estavam distraídas quando a cadeira largada vazia ao seu lado rangeu.
– É bom vê-la de novo – a voz saiu alta, forte, aterrorizante, e não pertencia a nenhuma das duas.
Hadassa voltou seu olhar com rapidez para a direção de onde o som vinha, dando de cara com uma silhueta invasora. Seus dedos responderam por ela o que estava prestes a acontecer.
– Quer dizer, não a vejo muito bem – riu sozinha, com o seu timbre irreconhecível e sua presença imponente. Saory sentiu seu peito se apertar, vislumbrando com mais adaptação que a errata a sua frente, o cabelo armado e escuro da intrusa. O plano de fundo para suas ondas era a chuva, os trovões. Cartelli sentiu que ia infartar. Gross engoliu sua ira a seco. Aquilo arranhou todo seu interior. – Gostaram do meu novo visual? Admito, é muito mais simples se apossar de qualquer um. Erratas são um artigo em extinção.
– Haf – finalmente, a errata se pronunciou, fechando seus punhos e os posicionando sobre suas coxas. – Não sabia que era adepta a shows.
– Ah, essa besteirinha? – gesticulou, com seu corpo roubado aos poucos surgindo melhor a vista das duas humanas. – Isso até você consegue, querida.
Provocou, voltando seu olhar para as mãos de Gross. Hadassa percebeu. Era claro que ela sabia. Foi então que resolveu apoiá-las em cima da mesa, sentindo o sangue subir pelo seu pescoço e os choques percorrerem seus antebraços.
– O que faz aqui? – indagou, ríspida.
A deusa de Verão cruzou seus braços, encarando-a a fundo. Ao redor das três, as pessoas continuavam a reclamar da luz, a sair do bar, a pedir a conta, mas nenhuma delas escutava o que acontecia no plano de fundo. Não quando sua mesa era sufocada pela deusa de Verão. Não quando a iminência de algo doentio era socado para dentro de suas gargantas e fazia arder seus olhos.
– Senti saudades. Vim bebem com vocês. Vocês parecem estar se divertindo – virou-se subitamente para Saory, com um sorriso assustador em seu rosto roubado. – Olá, querida, acho que não fomos apresentadas. Haf.
Saory encarou-a quase tão incisivamente quanto ela fazia. Sua voz não tremeu nem vacilou quando ela soltou:
– Saory. Princesa de Jasmim.
– A bela mestiça de G – sorriu, encarando Saory dos pés a cabeça. – Você ficaria melhor com os olhos que sem querer te dei, Alteza.
Saory engoliu a seco, encarando Hadassa assustada. A errata teve tempo de se surpreender com a revelação de que a princesa era uma mestiça, mas ambas se desfizeram de todas suas preocupações não imediatas quando Haf se aproximou da ruiva. Hadassa bateu com os punhos na mesa, sem pensar duas vezes.
– Chega – interrompeu sua movimentação, chamado novamente a atenção da deusa de Verão para si. Seus olhos se cruzaram em um embate silencioso. As chamas em ambos parecia consumir o pequeno bar. – Fale de uma vez o que quer. Ou faça o que veio fazer. Eu não estou aqui por você, mas não nego um presente do destino.
– Destino? – riu, revezando seu olhar entre as duas antes de se recostar novamente. Tranquila. – Vamos falar de destino.
– Ou não vamos falar – Hadassa arrastou suas mãos para próximo do corpo de Haf. Saory franziu sua testa, confusa a respeito daquela estratégia. Haf encarou-a sem se alterar, entendendo sua ameaça, mas não se preocupando minimamente. Afinal, ela ainda era uma deusa enquanto Hadassa não passava uma humana com síndrome de heroísmo.
– Eu tenho certeza que vocês tem alergia a visões, dado o nosso passado – ignorou as mãos eletrizadas de Had, cruzando seus braços e suas pernas, provocando mais relâmpagos do lado de fora. – Mas Melinda continua vendo coisas.
Saory encarou Hadassa rapidamente, essa mantinha o olhar fixo em Haf e as mãos trêmulas. A deusa de Verão sorriu, e foi então que um garçom finalmente se aproximou inocentemente, sem ser convidado.
– Meninas, sinto muito, mas...
– Não interrompa as damas, querido – cortou-o, encarando-o e estendendo a mão para tocar seu braço. Foi muito rápido, e aquele simples toque o suficiente para o deixar estático. – A luz já voltará. Estamos bem. Não nos incomode novamente. Fui clara?
O rapaz não disse mais nada, virando-se e as largando quase petrificado. Haf voltou a sorrir para as meninas em cada um de seus lados logo em seguida.
O que ela queria dessa vez?
– Continuando – ajeitou seus cabelos com uma das mãos, franzindo a testa. – Onde eu estava?
– Melinda – Saory respondeu, recebendo um sorriso de recompensa.
– Verdade. Sim. Melinda – voltou-se para Hadassa. – Ela continua a ver o futuro.
– E você está aqui para alterá-lo? – indagou a veronensse, forçando Haf a se aprumar lentamente. Como uma leoa cercando suas presas. Sua presa. Aquela movimentação era clara. Elas deveriam ter previsto o que vinha a seguir.
– Como uma deusa, querida, eu estou aqui para escrevê-lo.
E aquele foi o fim daquele nada bem-vindo diálogo. Antes que qualquer uma das duas humanas pudesse ter algum tipo de reação, Haf se debruçou assustadoramente para perto de Saory, agarrando um de seus braços com uma força descomunal e a apertando mais que o necessário para fazer o que devia.
Cartelli gritou com o gesto, sem reação alguma além de tentar se desvencilhar. Sem sucesso. Os dedos de Haf pareceram descamar seu braço fino. O cheiro de queimado entregou o que ela fazia. Em segundos, ela selou o destino de Saory Cartelli, usando apenas uma das mãos e nada além de um olhar sinistro e um linguajar afiado.
– Nos veremos, Alteza – fez questão de sussurrar, antes de finalmente soltar seu braço e desaparecer junto com outro relâmpago. A luz voltou no mesmo segundo em que ela desapareceu, e os olhos arregalados de Saory enxergaram de camarote Hadassa tentar acertar o vazio a sua frente. Tudo aconteceu rápido demais, de forma que nenhuma das duas havia conseguido evitar o sucesso de Haf.
Saory encarou Hadassa com o peito tamborilhando e os olhos marejados pela dor e o desespero que sentia. Seu braço ainda estava estupidamente esticado quando Hadassa o agarrou, analisando-o com perspicácia e pressa.
Cartelli sentia-se nauseada, dolorida, assustada.
– Ela queimou meu braço? – indagou, ainda tentando entender o que acontecera, apesar de sentir toda a dor que o aperto de Haf havia causado. Hadassa não a respondeu, analisando criteriosamente aquela marca. Os dedos de Haf estavam cravados na pele de Saory. Queimada. Como uma marca de gado. Assim como os de Hydref haviam ficado nos seus meses antes. Mas de alguma forma, aquilo parecia diferente. Ela a queimou por algum motivo. – Ai!
Saory exclamou, puxando seu braço com força. A dor era parcialmente amortecida pelos seus sentidos levemente alcoolizados. Mas ainda era catastrófica, desnecessária. Hadassa a encarou com a testa franzida.
– Isso é uma marca – afirmou, séria. Ao seu redor, as poucas pessoas que ainda sobravam naquele bar começavam a encará-las. O garçom haviam sumido. Elas não se importaram.
– Um marca? – subitamente, o celular em seu bolso começou a tocar de forma estridente. Ela pulou de susto mais uma vez, o que a fez xingar em alto em bom som, retirando-o com seu braço bom, recusando a ligação e o jogando em cima da mesa. Continuando logo em seguida, preocupada: – Uma marca?
Repetiu, o que forçou Hadassa a puxar novamente seu pulso sem nenhuma delicadeza. Ela resmungou de dor. Seu celular tornou a tocar.
– Isso deve significar algo – anunciou, analisando novamente o machucado da menina. Saory recusou mais uma vez a ligação, encarando-a apreensiva. A dor decaía exponencialmente e estranhamente, a marca também o fazia. Hadassa franziu sua testa. – Mas está clareando.
– Quê?
Quando Saory se contorceu para olhar, seu celular tocou mais uma vez. Ela xingou antes de o ignorar. Hadassa também, focada, utilizando por costume, uma de suas mãos formigando para na marca tocar. E foi então que a coisa mais estranha de sua vida aconteceu. Ela ao menos sentiu antes que uma pequena faísca saísse de um de seus dedos, perdendo-se na pele clara de Saory. A princesa arregalou os olhos. Hadassa afastou sua mão com velocidade. Cartelli recolheu seu braço, encarando-a assustada.
– O que foi isso? – indagou, confusa. Um raio atingiu a frente do bar no momento exato, as cegando. A errata apontou para o celular tremendo em cima da mesa, sem saber como a responder.
– Atenda logo essa porcaria – ordenou, sentindo-se ela mesma assustada com o que tinha acabado de acontecer. Gaeaf a havia contado sobre os seus "poderes", mas senti-los era completamente diferente. O formigamento em suas mãos havia passado depois que a faísca atingiu Saory, e tudo que ela sentia agora era vazio e... fervor. Encarou seus dedos. O que havia sido isso?
– Droga – contrariada, Saory finalmente atendeu, puxando o aparelho com agressividade e o pousando em seus ouvidos. – Alô?
Gross sentou-se na cadeira onde Haf antes estava. Sua cabeça rodava. Coisas demais haviam acabado de acontecer e ela sabia que era apenas o começo. O quão longe seus poderes poderiam ir?
– Pelos deuses! – subitamente, Saory exclamou, em desespero cru. Hadassa levantou seu olhar para encará-la, assustando-se ao fitar seus olhos encharcados e seu rosto mais pálido que o normal. Gross encontrou uma brecha em sua preocupação pessoal para se sentir minimamente preocupada com a expressão da menina. – Aham. Certo. Certo. Eu voltarei. Eu... Mamãe? – encarou o aparelho perplexa. Haviam desligado. Droga! Droga! Praguejou, voltando seu olhar marejado para Hadassa. Seu peito batucava em suas costelas. Subitamente, nada do que tinha acabado de acontecer tinha espaço em sua mente. – Minha sobrinha. Eles a pegaram.
Explicou, terminando sua sentença em um soluço. Hadassa soltou então, todo o ar de uma vez, compadecida.
E então o jogo havia verdadeiramente recomeçado.
"Você quer jogar? Você quer vir brincar? Nos meus jogos destorcidos."
Twisted Games, Night Panda.
Fim de capítulo!!
Olá, meus amores. Ufa, acabei. Adianto pedindo desculpas caso esse capítulo não esteja impecável, mas o final do período está me matando e eu tive que escrever na correria. Mas, tirando os contratempos, digo que adoro esse capítulo hehe. Espero que tenham gostado também.
O que acharam da interação Saory e Hadassa? O que acharam desse final só tapa na nossa cara? Me contem tudo!
Esse capítulo foi dedicado a Gmika21 que adorou a parceria entre Had e Saory e sempre está aqui me enchendo de comentários e de carinho. Fico muito feliz MESMO em sempre te ver aqui. Espero que continue a curtir OBDE e essas meninas irritadinhas haha. E claro, espero que tenha gostado do capítulo haha.
É isso por hoje, gente. Não se esqueçam de clicar na estrelinha caso tenham gostado do capítulo e de comentar suas impressões.
Até capítulo que vem.
Big beijo, Bia.
## perguntinha bônus:
6) Qual a intenção de Haf com essa marca?
Capítulo publicado em: 23/06/19.
Todos os direitos reservados.
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