¤ O Capuz e O Machado ¤
Ele vai...ele vai, pela floresta, ele vai...
...Correndo como um louco ele vai. Às vezes sobre suas patas traseiras, em uma desengonçada afronta aos bípedes, em outras, como o quadrúpede que é, reduzindo seus dois metros de altura a quase a metade disso. Estava ofegante, como se seus pulmões de aço fossem subitamente explodir. Mas como seria possível? Como algo tão simples lhe fugira ao controle? Uma simples caçada se tornara um perigo? Logo ELE? Que adquiriu uma grande fama ao derrubar casas com seu sopro assombroso? De certo modo, a falha com a de tijolos, afetou seriamente sua masculinidade e sua fama entre os de sua espécie. Até mesmo dois dos sete anões vagabundos o satirizavam. Mas, ser "a presa" em vez de caçador, era simplesmente um absurdo sem igual.
Depois de um longo tempo fugindo, finalmente ele para. Se encosta em uma grande árvore e olha para cima. Vê que sua doce amada brilha cheia entre as nuvens, e teve que morder a própria língua para evitar o desejo de uivar em sua glória. Um só rosnado o denunciaria, um simples arquear de suas longas orelhas pontudas, iria expô-lo.
Ele pôs a enorme pata em seu peito, coberto por uma grossa pelagem cinza escura, e percebeu seu coração galopando. Nunca sentira aquela sensação antes...havia a percebido muitas vezes, mas nos olhos dos que ELE dilacerou e estripou. Mas agora, era diferente. Era ele quem sentia o medo.
Sangue fluía por entre suas garras, pois, por pouco não caiu na armadilha da caçadora. A maldita garota estava escondida, esperando-o num caminho escuro e estreito, um atalho que ele sempre usava. Não a percebeu por causa da lama em seu corpo e nisso ela realmente o surpreendeu, não imaginava que ela se sujaria de lama para disfarçar seu cheiro delicioso...aquele aroma suave que apenas a carne humana é capaz de ter.
"Maldita!"
Ele rosnou, baixo. Mas não o suficiente.
A lâmina veio cortando o ar, a luz lunar refletindo-se no aço especialmente afiado para aquela caçada. Um breve momento e...
..Ele deslizou para trás do grande tronco da árvore em que descansava. O machado errou o alvo e enterrou sua lâmina assassina na árvore. O coração do lupino acelerou ainda mais e para cada lugar da floresta que ele olhava, ele a via...ela e aquele maldito capuz negro. Seria mesmo aquela a cor do capuz? Ou apenas lama? Pensou melhor, e decidiu que era a cor certa, já que se tratava da vestimenta de caça da própria Morte.
Ele enfiou as garras afiadas na árvore, e a escalou. Tão rápido quanto os seus amigos lhe ensinaram. E que saudade sentiu desses amigos. Justamente os colegas de caça que o ensinaram a apreciar o sabor de carne humana. Aqueles três Ursos fiéis que lhe ofereceram a carne de uma menina, linda e macia, como seus cachinhos dourados.
O lobo sentiu saudade...
...De tempos em que era fácil caçar. Não porcos construtores de casas ou coelhos loucos e perdidos, procurando por países maravilhosos longe de suas tocas...não. Isso não! Mas, humanos sim! E como se perdiam fácil na Floresta Negra. Sua última vítima havia sido um pobre lenhador, que estava distraído, realizando um ofício tão desprezível, que nem percebeu a fera chegar. O Lobo, apenas esperou o momento em que sua vítima ergueu o machado, para num só golpe certeiro, cortar seus braços.
O lenhador berrou pelo susto...
...E o Lobo adorou. Sádico era seu sobrenome. Mais do que adequado, para o lobo mais novo de sete irmãos e o mais cruel dentre eles. O pobre lenhador viu seu sangue jorrar; O golpe foi tão veloz e os braços arrancados tão facilmente, que o homem não sentiu as enormes garras prateadas o dilacerando.
O Lobo sorriu ao lembrar da cena...
...e lembrou do outro machado.
A garota de capuz, arrancou com facilidade o machado da árvore e lançou-o novamente.
O lobo por sua vez, saltou de uma árvore para outra e prosseguiu, de galho em galho como um macaco sabe muito bem fazer, apesar da imensa diferença de peso entre estes animais.
Seu coração saltitava em seu peito, o medo da morte nunca foi uma ameaça. Talvez porque realmente NUNCA havia sido ameaçado de morte.
Sua garganta estava seca e sua cabeça começava a doer...
Após algum tempo, o Lobo deu uma leve olhada para trás; por sobre o ombro esquerdo e depois para baixo. Não viu nada...além de árvores...árvores e mais...
...uma vez o machado...
...que dessa vez atingiu o alvo. Certamente não onde a garota desejou, mas a lâmina fez um bom serviço. O Lobo, dessa vez liberou seu uivo reprimido. Não um uivo de adoração àquela que dera uma segunda chance a Jack Frost, estava mais para um uivo de agonia, por sentir uma dor tão intensa que seu cérebro lupino pareceu cozinhar. O Lobo prosseguiu em sua corrida desastrosa, enquanto, o som de folhas e galhos se quebrando...e finalmente, um estrondo, quando o seu braço direito tocou o solo.
Uivos rasgaram a floresta como se fosse o fim do mundo. Mas ele não hesitou em continuar a fugir. Deslizou pelo tronco de uma árvore, usando as garras da pata esquerda, deixando uma espiral de cascas dependuradas.
Uma fuga alucinante...
O lupino corria ainda mais, deixando um rastro de sangue por toda a floresta. Seus olhos, faziam o que seu clã achava impossível: lacrimejavam por conta da dor, tanto pela amputação forçada quanto pelo orgulho ferido.
O maldito Machado...
...foi lançado e desta vez quase lhe atingia a cabeça. Um pensamento surgiu: Seus olhos o enganaram? A Maldita caçadora não tinha ficado para trás? O machado surgiu à sua frente! A única explicação seria...
O Lobo, agora faminto e não tão rápido, sentiu um aroma diferente. Sabia que era carne humana, mas diferente da caçadora, aquele aroma era...antigo? Carne velha?!
"PEGA ELE VÓ!"
O grito da jovem, num tom de sarcasmo e impaciência, rasgou o ar, justamente quando o velho Lobo saltou por uma grande raiz esparramada pelo chão. Um segundo a menos e suas pernas seriam decepadas. Ele caiu e girou sobre si mesmo, em uma cambalhota improvisada. O sangue continuava a fluir de seu braço amputado e, ao erguer o focinho, viu os dois vultos à sua frente. O desespero brotou de sua alma até se fazer visível, em cada tremer e em cada respiração entrecortada diante daqueles vultos encapuzados.
Do lado esquerdo, uma figura coberta por um manto coberto de lama, mas que de alguma forma o Lobo sabia ser vermelho, a sua verdadeira cor. A caçadora portava uma aljava presa às costas e um pequeno arco pendendo no ombro esquerdo. Essa era a dona do machado, a maldita caçadora e pelo que parecia a mais nova delas. Tinha o tamanho das crianças que ele viu serem devoradas pela Bruxa da Casa Doce, uma anciã que geralmente fornecia carcaças humanas aos Lobos. "Hanzel"..."Ranzel"..."Hezel", ele não tinha certeza de seus nomes verdadeiros. Na verdade, nenhum habitante da floresta tinha, por isso apelidaram as tais crianças de João e a outra de Maria. Crianças que haviam sido famosas, pois, foram as únicas que tentaram fugir do destino fatal de quem entra na Casa Doce. Mas no fim...viraram apenas fezes da velha Bruxa.
A figura enigmática da direita, surgira sem ele perceber. Tinha nas costas um enorme volume que ele julgou ser uma corcunda. Já havia ouvido histórias de seus amigos Gárgulas sobre essa peculiaridade entre alguns humanos. Num certo encontro, que ocorria anualmente entre os seres mefistofélicos da Floresta Negra e seus convidados, as Gárgulas comentaram algo sobre um Corcunda obcecado por sinos da Catedral de Notre Dame e de como foi difícil devorá-lo por causa do tal volume em sua costa. Ele gargalhou, assim como os demais presentes no Encontro, quando ouviu a história. Mas agora, o sorriso não era bem vindo.
A caçadora da direita tinha em sua cintura uma bainha enorme, mas sem a espada. O Lobo se perguntava se ela já os estaria perseguindo. Mas como não percebeu sua presença? Com aquele odor de carne velha apodrecendo? Ele já questionava a própria sanidade, pois, à sua frente, estava uma figura de idade avançada, mas com habilidades mortais de caçador.
Obviamente ela era a tal "Vó".
O Lobo pensou em perguntar como a mulher velha conseguia persegui-lo mesmo com aquela corcunda gigantesca, mas sentiu que um ataque se aproximava.
...MACHADO! ...
A velha gritou pedindo o machado e foi atendida. O Lobo se defendeu bravamente, mesmo com apenas um dos braços. A disputa estava acirrada. A garota, sorrateiramente escapou do ângulo de visão do Lobo e isso o deixou aflito. A luta pela vida estava prestes a tomar um rumo de que o velho Lobo se lamentaria.
"A Espada! Onde está a espada daquela bainha?!"
Como se pra responder aos pensamentos do velho Lobo, a garota de capuz o trespassou com a espada. Uma dor aguda, percorreu desde a sua coxa esquerda até o topo da sua espinha. A maldita garota lhe perfurara a coxa e agora, tentava retirar a lâmina para terminar o serviço.
A velha ergueu o machado, mas tropeçou...
E o lobo não desperdiçou sua chance. Com a pata que lhe restara empurrou a jovem para trás e ao vê-la cair longe, retirou, num só esforço, a espada que ela lhe encravou.
A idosa já alcançava o machado que escapara de suas mãos após o seu tombo, quando o Lobo a decapitou. Seu sangue manchou o pelo da fera, enquanto o corpo sem vida da caçadora idosa se debatia no chão de folhas e galhos secos.
A Garota se levantou calmamente. Não esboçara reação alguma, o Lobo presumira que ela se debateria, se desesperaria e tornaria tudo mais fácil para ele. Algo estava estranho.
Ele sentiu no ar...
Um arrepio lhe roubou a respiração, um vento frio soprou seus pelos ao ponto de o Lobo pensar ter seu sangue congelado. Tudo isso...emanando dela? O Lobo sentiu novamente aquela sensação lhe tomando o peito. A Garota deu um passo para frente, o Lobo recuou dois; ela andou mais quatro passos e ele começou a correr...
... e ela alcançou o machado.
O Lobo correu como um covarde que era, correndo como um bípede que não era. Corria lentamente, quase que cambaleando e lembrou novamente do tal Corcunda...mas não sorriu. A situação estava cada vez mais perigosa.
Atrás do Lobo, a caçadora vinha saltitante, cantarolando algo que o lupino não conseguiu entender. As batidas de seu coração abafavam todo o som ao seu redor. Ela, por outro lado, estava calma. Aquilo era apenas mais uma caçada. Talvez a quarta? Ou a sexta da semana? Não fazia diferença. Ainda mais agora que os lucros não precisariam mais ser divididos com a velha chata que a obrigava a chamá-la de "Vó". Estava farta de fingir ser a tal netinha da caçadora. Era grata por ter sido salva de morrer congelada,quando ainda era uma recém nascida. Mas substituir a neta que foi morta por um Cavaleiro Sem Cabeça? Assim já era demais.
Por isso ela cantarolava...
Era seu ritual de assassina. Em breve receberia seu pagamento, venderia a casa velha em que morava e sairia matando e matando...até chegar àquele reino, onde anões a aguardavam, para dar início à rebelião contra a Rainha Má.
O Lobo tropeçou...
Caiu sem esperanças de ficar novamente de pé. A garota, que antes vinha saltitando (talvez prevendo a iminente derrota do Lobo) e cantarolando, agora, andava, quase parando. A visão do Lobo estava turva, mas ele pôde ver bem quando a caçadora jogou o capuz para trás. A lua ainda brilhava forte, desempenhando seu papel milenar, mas o Lobo não sentiu vontade de uivar para ela dessa vez. Ao ver o rosto da jovem que o perseguiu por quase toda a Floresta Negra, seu coração desacelerou. O rosto que o encarava era provido da mais pura beleza, tão gentil e jovial. A garota sorriu e lhe perguntou seu nome, enquanto se abaixava próximo de sua cabeça.
-Me chamam...me chamam de Wittgenstein! -disse o lobo, enquanto cuspia sangue de sua boca enorme. A visão de um dos olhos se fora, quando a jovem caçadora o arrancou. O lobo só teve tempo de dar um breve grunhido de dor. Seu corpo estava lento...estava...
- É veneno. Nossas lâminas são todas banhadas em veneno de Sapo - Príncipe! -disse a garota ao ver a agitação do Lobo, enquanto guardava o olho lupino em um frasco.
-Ah...Desculpe pelo olho! Mas é que pra mim é um troféu.
O Lobo não se importou. Nem se importaria mais com nada. Antes de seu suspiro final, lembrou das velhas lendas que seus avós contavam, sobre um mundo distante, onde um Rei governava com tirania. Um lugar para onde todos os lupinos vão quando morrem. O Reino do Rei Uivante, lar de todos os lobos guerreiros. Se era apenas uma lenda antiga ou não, era nisso que ele acreditava. Wittgenstein reuniu forças e uivou pela última vez, ao menos neste lugar, onde ceifara tantas vidas.
A garota, que tinha um rosto lindo e eternamente jovem, empunhou seu machado mais uma vez...em meio a uivos dolorosos, seu rosto, branco como a neve, se sujou com o sangue de um velho lobo, que resistiu até o último instante.
A jovem caçadora guardou em um saco de estopa, que trazia consigo, a cabeça sangrenta de sua vítima e o amarrou bem. Era a prova de que tinha cumprido seu contrato. Sua contratante, uma Leitoa Baronesa, havia perdido seus três filhos: Prático, Heitor e Cícero, construtores famosos do Reino Grimm. A Leitoa oferecera uma gorda recompensa pela cabeça do Lobo, e a jovem com pele branca como a neve, a receberia com gratidão.
A caçada terminou. Esta, pelo menos. A jovem pegou um pergaminho oculto dentro de seu manto negro e o abriu. Nele, dentre inúmeros nomes escritos riscou o "WITTGENSTEIN" com um pequeno "x". Abaixo dele, havia Bruxa Má, seu próximo alvo.
A garota guardou o pergaminho, pôs novamente seu capuz, agora com manchas de sangue lupinos e apanhou o saco de estopa. Saltitante e feliz, cantarolou a única música que conhecia, enquanto seguia seu caminho...um atalho escuro e perigoso.
"Quem têm medo do Lobo Mau? Lobo Mau..."
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