1 - Quem é você?
Inspiro profundamente, munindo-me de paciência. O sujeito inventa de fazer a pergunta pouco antes de tentar me esfaquear. A bobeada vai lhe custar, malandro... Ah, se vai...
Bobeou, dançou!
Em questão de segundos, derrubo o cara e sento em cima do seu tórax - assim, ganho tempo para recuperar o fôlego. Puxo o fumo do bolso da camisa laranja e, enquanto enrolo o cigarro entre os dedos, resolvo pensar seriamente sobre a questão (que eu diria, é tão existencial quanto filosófica).
- Você quer saber mesmo quem sou eu? - Observo-o se contorcer, tentando alcançar a faca; eu a chuto para longe. - Vamos colocar da seguinte maneira: sou aquele que altera resultados.
Acendo o cigarro e trago profundamente. O que acabo de dizer é a mais pura verdade. Mas, tenho certeza de que o idiota não entende a referência ao filme O Protetor. Muito menos o alerta embutido para o que acontece depois dessa fala... O que ele gostaria de saber, infelizmente, não posso lhe dizer: que sou um fantasma e minhas raízes não podem ser rastreadas por qualquer sistema inteligente.
Estou na prisão, como vocês - gansos, freios de camburão e come quietos - não por ter cometido algum crime ou atrocidade... Meus crimes e atrocidades foram todos autorizados por uma parte do mesmo sistema que agora me "acolhe". Fique bem entendido, uma parte a que a sociedade costuma fechar os olhos para a existência.
Mas não se iluda, sou mais perigoso que qualquer um aqui dentro.
Inclino-me, pego a faca do mané... Um espim, como eles chamam, e encosto junto ao rosto dele. Puxo o cabelo pelas raízes, fazendo com que ele tenha que esticar o pescoço para trás. Puxo com tanta força que escuto o estalar de uma vértebra e o espim corta sua pele, formando um risco de sangue. Nossos olhos se encontram.
É assim que tem quer ser: olhos nos olhos. Mas sem beijo na boca.
- Eu vou te marcar, malandro - digo, num tom inequívoco. - Um aviso pra você não esquecer. Na próxima, arranco-lhe as tripas fora.
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Forseti. Esse era o nome da equipe, ou célula operacional de inteligência (COI), como o nosso supervisor classe 1 costumava denominar. Forseti ficava aninhada no - não menos secreto - departamento de planejamento da Inteligência (DPI). Forseti foi uma unidade tão secreta, que poucos sequer sabem que existiu, dentro da própria Inteligência. E eu fui o líder.
O nome da unidade tinha tudo a ver com o propósito de suas missões. Afinal, Forseti foi o deus nórdico da justiça, cujo desejo era de que os julgamentos fossem justos. Com finais justos. O deus Forseti só se contentava quando ambas as partes de um litígio ficavam satisfeitas.
Eu não diria que nossa célula operacional buscasse justiça, porque seria uma hipocrisia. Nenhum Departamento que trabalha para o Governo o faz de modo imparcial. Dependem de políticas, interesses, e necessidades. Não há imparcialidade em nada, no nosso trabalho. Ninguém faz o que é certo, neste mundo. E quem faz não dura muito. Aliás, já virou Santo. Está morto e enterrado.
Mas, digamos que nós igualávamos o jogo. Esse era o nosso papel.
Eu particularmente não estava nem aí para o outro lado da contenda. A missão era o que importava, e a sobrevivência dos meus subordinados no final. Ponto.
Nesse meio de campo, eu fazia força para que pessoas inocentes não pagassem pelos nossos alvos. E logo isso foi percebido. É inevitável que façamos inimigos ao longo da vida - agências e unidades rivais, grandes industriais, máfias, ou pessoal interno que usa o seu cargo para obter vantagens e lucros.
Mudar o modus operandi é o único meio de fazer as coisas acontecerem e me manter vivo... Mas principalmente, um meio de evitar que inocentes sejam envolvidos em nossa sujeira.
Ainda mais por um erro meu.
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Fui treinado para me misturar e passar despercebido, para agir de maneira cirúrgica. Treinado para fazer qualquer coisa para cumprir uma missão e não ser descoberto, nem permitir que meus superiores sejam descobertos.
Minhas missões eram focais: eliminar alvos, sem questionamentos; sequestrar pessoas e documentos de interesse. Essas abduções tinham vários procedimentos e diferentes destinos.
Quanto às pessoas de interesse, das duas, uma: o destino era o caixão (brincadeira, sem caixão, porque o corpo teria que desaparecer); ou inserção no esquema de proteção à testemunha. O que implicava em garantir que as pessoas de interesse alcançassem uma nova vida com os laços totalmente cortados com a antiga vida.
Na maioria das vezes, eu só precisava me infiltrar em empresas, agências, grupos e famílias, roubar documentos, provas, detectar pistas, e sair sem ser percebido. Mas de uns tempos para cá, os assassinatos encomendados aumentaram. As queimas de arquivo também.
Políticos ou chefes de alto-escalão com mais poder mandavam eliminar chefes e políticos com menos poder. Ou que ameaçavam expô-los. A exposição geralmente era o motivo principal de encomendarem as mortes.
Houve uma tentativa de tornar Forseti um grupo de extermínio pessoal. Como líder, eu me posicionei contra. Até que virei um empecilho, portanto, o novo alvo deles. E o motivo foi, justamente, a limpeza nas células em atividade que, de alguma forma, sofreram exposição por causa de algum Jason Bourne ou Edward Snow da vida. Sim, eu sei que um é personagem fictício e o outro, real. Mas não se iluda, a arte imita a vida...
A traição aconteceu quando eu menos esperava, vindo de dentro da Forseti... Por parte de um dos meus especialistas. Uma missão plantada e formatada com maestria para se fechar sobre nós... Uma armadilha mortal.
Escapamos. Reagrupamos. E estudamos a situação.
Se eu quisesse, seria fácil descobrir a raiz do problema. O problema é que eu não tive tempo. Quanto mais tempo perdesse com isso, mais riscos desnecessários o grupo correria. O outro problema é que eu estava vivendo uma vida dupla. Estava casado e não iria desaparecer sem garantir a segurança dela.
Então, eu dei início a um jogo perigoso. Ordenei ao grupo que se dispersasse, antes de Forseti ser desautorizada. Todos os meus especialistas desapareceram no mundo... Na verdade, joguei um departamento contra outro dentro da Inteligência - o Planejamento das missões versus a Corregedoria - e como uma noiva ultrajada, eu me refugiei no silêncio. Aceitei ser condenado e preso por todos os males do mundo. Deliberadamente, eu me enfiei na prisão, onde passei a controlar as variáveis ao meu redor e a meu favor. Não é fácil chegarem até mim, aqui dentro, apesar de pensarem que, por estar na prisão, virei um alvo mais fácil.
É justamente o contrário.
E eu vou explicar o porquê usando como analogia, o ataque de Boadiceia, a rainha celta. Reza a lenda que a rainha atacou os romanos liderando um exército de mais de cem mil homens selvagens e furiosos. (Não que ela não tivesse razão em atacá-los. O que os romanos fizeram com ela e suas filhas, foi horrível. No entanto, a rainha perdeu a vantagem da ofensiva por falta de estratégia e de visão militar).
Os romanos eram poucos, talvez dez mil. Posicionaram-se em um desfiladeiro, bem à vista, e aguardaram a turba enlouquecida vir com tudo. No final, perderam centenas de soldados. Em contrapartida, eliminaram mais de oitenta mil celtas. Pergunte o motivo.
Aí reside o poder da disciplina e da estratégia militar, aprimorados pelos romanos. E consistem na base das forças armadas da atualidade.
Ao invés de se borrarem nas calças, os romanos foram contidos pelo seu comandante, o general Caio Suetônio Paulino. Confiaram na formação e permaneceram no lugar, usando o cenário natural como proteção¹. E o que veio pela frente, eles simplesmente abateram... Até não restar mais ninguém em posição de atacá-los.
Os romanos tinham as armas certas, e o autocontrole para não debandar diante daqueles gigantes nus pintados de azul, gritando mais do que os demônios do inferno. No final, saíram vitoriosos.
A minha lógica segue mais ou menos por aí... Como a dos romanos... Meus inimigos não podem me atacar porque estou cercado por um desfiladeiro atrás e tenho uma vasta planície à frente. Só tenho que abater quem tentar vir pelo campo aberto, como o Zé Ruela que acabou de tentar me esfaquear.
No mais, possuo um bom motivo para permanecer exposto nesta vitrina. Estou esperando que o meu inimigo se revele. Quem será a próxima Boadiceia?
Tenho os meus palpites... E sei que ele logo irá perder a paciência, neste jogo de gato e rato que venho conduzindo há três anos. Desde que não descubra a única arma que poderia ter contra mim (a minha ex-esposa). Eu tive que destruir nosso relacionamento, para que Sofia seguisse em frente sem culpa, nem grandes riscos.
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Rodapé:
1 - Em grande desvantagem numérica, Suetônio escolheu o campo de batalha cuidadosamente: um estreito desfiladeiro com uma floresta atrás de suas forças e aberto para uma ampla planície à frente. O desfiladeiro protegia os flancos dos romanos e a floresta impedia uma aproximação por trás, o que evitaria que Boadiceia pudesse empregar seu grande número de guerreiros de forma efetiva contra suas forças; a planície à frente tornava qualquer emboscada impossível. Suetônio colocou seus legionários em ordem apertada, com os auxiliares ligeiros nos flancos e a cavalaria nas alas laterais (...).
Fonte: https://pt.wikipedia.org/wiki/Batalha_de_Watling_Street
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