Capítulo 20- Despedida
⚠️ AVISO: o capítulo a seguir contém breves menções a ansiedade e luto ⚠️
"Deixe me ir, preciso andar
Vou por aí a procurar
Rir pra não chorar
Se alguém por mim perguntar
Diga que eu só vou voltar
Depois que me encontrar"
- Preciso me encontrar (Cartola)
🍇🍇🍇
Julian se sentia cansado. Ansioso, torcia para que o dia do vestibular finalmente chegasse. Não aguentava mais seu trabalho e pensava em desistir todos os dias que pisava na oficina. O pior é que não enxergava outra opção. E se fracassasse? E se nunca saísse daquela cidade?
Aquela era sua rotina: ir à escola pela manhã, trabalhar à tarde e após isso partir para a casa de Eduardo e se enfiar nos livros até a madrugada. Dormia por lá. Não fazia sentido voltar para casa, onde não era querido. Depois tudo começava de novo.
Algumas vezes, no trabalho, quando o peito apertava, uma angústia o oprimindo, se fechava no banheiro e chorava. Precisava ser "alguém" na vida. Não queria terminar como seu pai.
Eduardo o visitava às vezes, levando garrafinhas de guaraná Antártica bem geladinhas.
O outro garoto se sentava em um banquinho de madeira e observava enquanto Julian trabalhava. Fazia pausas curtas para tomar seu refrigerante e descansar. Contava os números mentalmente, sempre que sentia que um pensamento intrusivo o cercava.
"Você tá ansioso?", perguntou a Edu, que o olhava, sentado, as pernas cruzadas, seu rosto vermelho.
"Tá com calor?"
"Não"
"Tem certeza? Aqui é abafado mesmo, pode esperar lá fora..."
"Tá tudo bem, Julian. Eu aguento o calor"
Deu de ombros. Ele andava esquisito. Podia sentir os olhos do amigo o penetrando enquanto trabalhava. Quando retribuía o olhar, o outro desviava.
"Então, tá ansioso pro vestibular?"
"Uhum", se limitou a responder.
Silêncio.
"Tem certeza que tá bem?"
"Tenho"
Parou e se encostou na parede, dando um gole em sua bebida. O comportamento de Eduardo lhe era indecifrável.
"Por que você fica me olhando?"
"Eu?"
"É, não tira os olhos de mim"
"Não, nada a ver isso aí que você tá falando, eu não fico te olhando coisa nenhuma"
"É porque eu tô sujo, né? Tô fedendo?"
"Não"
"Tá com nojo de mim?"
"Não, Julian. Meu Deus. Por que você só não continua o que tá fazendo? Finge que eu nem tô aqui"
Optou por se render. Não sairia nada dali. Talvez Edu estivesse sentindo asco e não quisesse admitir.
"Tudo bem. Eu tô tomando banho todo dia, só pra avisar, tá?"
Começou a trabalhar outra vez antes que seu patrão o pegasse parado, conversando, e passasse um sermão.
Não demorou para que sentisse olhos queimando em suas costas.
Voltou a cabeça para olhar.
Eduardo não teve tempo de se desviar. Pelo menos assim tinha certeza que não estava imaginando coisas.
Retornou ao que estava fazendo. Cheirou embaixo do braço. Não entendia. Não estava fedendo.
🍇🍇🍇
Julian e Eduardo conseguiram passar na faculdade. Ele mal conseguia acreditar quando viu os resultados. Tinha certeza de que o amigo passaria, mas sempre duvidou do próprio potencial.
Ele iria fazer geografia no próximo ano. Finalmente poderia se livrar da presença conturbada de seu pai e dos fantasmas do passado. Talvez na cidade grande conseguisse até ajuda para entender o que havia acontecido com sua mente.
Seu coração apertou ao perceber que não teria como compartilhar a notícia com sua mãe. Foi então que, mesmo após anos, a dor do luto o invadiu novamente. Ele se viu preso outras vez entre questionamentos do porquê. Por que as pessoas tinham que ser perversas? Por que as coisas tiveram que acontecer da forma que aconteceram? Por que Deus, se é que existia, permitia isso?
Deus.
Sentia vontade de rir quando pensava nisso.
Ele não sabia mais se acreditava em Deus.
Sua família nunca foi religiosa, mas ele sentia uma espécie de repulsa em relação à religião. Achava que ela existia apenas para dividir as pessoas e fazer com que elas discutissem e ficassem tristes.
Ele se segurou em Eduardo, como se fosse a única chance que ele tivesse de escapar do inferno que sua cabeça havia se tornado. Sabia que devia muito ao amigo. Sem ele provavelmente nunca teria terminado a escola, não faria faculdade e se contentaria com um serviço medíocre igual ao resto de sua família.
🍇🍇🍇
Em uma noite de tempestade, antes do dia em que iria para a cidade onde cursaria, Julian se espantou com alguém batendo à porta. Passava das 10.
Abriu a porta, apenas para encontrar Eduardo, ensopado.
"Edu? O que aconteceu? Entra. Olha seu estado! Eu devia te dar uns tapinhas. Você sabe que essa rua é perigosa"
"Eu... eu... não quero ir embora. Quero ficar com você"
"Que é isso, cara, a gente só vai ficar longe por alguns meses. Depois, vamos nos ver nas férias"
"Mas eu não quero ir", disse, entre lágrimas.
Julian não conseguia entender. Lutaram por tanto tempo para chegar até ali e agora Eduardo parecia relutante. Tentou compreender o que o levava a agir daquela maneira.
"Julian, eu não sei quem sou sem você"
Ele abanou a cabeça.
"Eu agradeço muito suas palavras, Edu, mas não repita isso, por favor. Sem mim, você continua sendo você. Esse tempo separados vai ser bom pra que perceba isso! Agora vamos, eu vou pegar roupas limpas", falou, o guiando até seu quarto.
Ele ajudou o outro a se despir, se limpar e colocar roupas secas. Ao término, Eduardo o surpreendeu com um abraço.
Chorou copiosamente, molhando a camisa de Julian.
"Vai ficar tudo bem", o confortou, baixinho.
Assim que parou de verter lágrimas, o soltou, exausto.
"Posso dormir aqui?", questionou, a voz rouca.
"Claro, não só pode como deve, com esse tempo eu não te deixaria sair. Vem, deita e descansa. Amanhã é um longo dia", respondeu, depositando um beijo em sua testa.
Deitaram.
"Quer que eu cante uma música pra dormir?"
"Não precisa"
"Se essa rua, se essa rua fosse minha..."
"Não acredito que vai fazer isso"
"... eu mandava, eu mandava ladrilhar..."
Eduardo cedeu, o corpo relaxando, enquanto Julian acariciava seus cabelos.
"... com pedrinhas, com pedrinhas de diamante..."
Aquela era a canção que Marta cantarolava para ele, algo dos dois, mas que ele não via problemas em compartilhar com Eduardo. A voz dela era doce, suave, muito diferente da de Julian, rouca e desafinada.
"Você tem voz de taquara rachada", riu.
A resposta foi um tapinha.
"Eu tô tentando te consolar e você me responde assim"
Um silêncio confortável os cobriu por alguns minutos.
"Ju?"
"O quê?"
"Você ama seu pai?"
Pensou por alguns segundos.
"Sim, acho que sim. Por quê?"
"Eu não sei... às vezes sinto que não amo o meu. Quase chego a odiar ele. Sou uma pessoa ruim por isso?"
"Não, Edu. É uma reação natural, eu acho, porque ele não é um bom pai"
"Mas esse é o problema. Eu acho que ele é um bom pai, talvez eu que não seja um bom filho"
Julian afagou os cabelos de Eduardo.
"Não diz isso. Você é um bom filho. Sei que dá o seu melhor. Pra ser sincero, cara, teu pai é um legítimo babaca"
Ouviu o outro engolir em seco.
"Você acha que... que ele me aceitaria se eu fosse diferente?"
Não precisou perguntar o que ele queria dizer. Simplesmente sabia.
"Edu, se ele não te aceitar o problema é dele, não seu. Você não precisa se responsabilizar pelo sentimento dos outros"
Eduardo bocejou.
"Vamos dormir, por favor? Tô morrendo de sono"
"Tudo bem, meu menino. Durma bem"
"Seu?"
"É. Não gosta de ser chamado assim?"
"Gosto. Gosto muito"
Adormeceram, abraçados pela última vez em meses.
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