Capítulo 2- Palavras sufocadas
"Atravessei o hall
Entrei no seu quarto onde podia sentir seu cheiro
E eu não deveria estar aqui
Sem permissão"
- Your house (Alanis Morissette)
🍒🍒🍒
Os dias correram rapidamente e logo os dois criaram uma rotina sólida.
Julian continuava trabalhando na livraria, enquanto Eduardo passou a oferecer aulas particulares de língua inglesa.
Eles se encontravam brevemente pela manhã e ao final do dia. Porém, Julian percebeu que aqueles encontros estavam repletos de silêncio e palavras reprimidas, sufocantes.
Eduardo se recolhia no quarto pouco após o jantar para escrever, com algum comentário elogioso sobre a comida de Julian, ao que ele se limitava a agradecer.
Algo o incomodava naquela nova rotina.
"O que exatamente te preocupa?", perguntou a mulher.
A psicóloga era negra, com pintinhas no rosto e usava um grande óculos de aro de tartaruga. Ele sempre achou que havia qualquer coisa de maternal nela. Um ar de cuidado e carinho. Talvez fossem as mãos, grandes e suaves.
Deu de ombros.
"Eu não sei especificar, pra dizer a verdade. Sinto que somos estranhos às vezes. Em outras horas, parece que..."
Era madrugada de sábado.
Seus olhos pesavam.
Nenhum sinal de Eduardo até às 3h30, quando ele entrou pela porta, como se nada tivesse acontecido, cambaleando. Não dizia coisa com coisa e mal teve tempo de chegar até o banheiro e despejar o vômito no vaso.
Julian então o colocou no box do banheiro e começou a despi-lo.
Eduardo suava. Assim que ligou o chuveiro, ele se esparramou pelo chão, como se fosse algo líquido.
Julian esfregava a bucha por sobre o corpo do amigo, quando percebeu algo que lhe parecia absurdo.
"Eu acho que tem alguma coisa a ver com a pele dele. Sei lá, é sempre tão macia e fresquinha. Ele usa um perfume sempre, eu esqueci o nome, mas é um perfume muito gostoso. Tem cheiro de... cereja? Pelo menos é o que me parece, eu imagino uma grande árvore carregada. Eu sinto que preciso tocar nela. Na pele, eu digo. Eu preciso sentir o cheiro dele. Preciso sentir a pele dele na minha"
"Você diz sexualmente?"
"Não. É estranho, eu disse que era estranho, mas eu não tenho vontade de transar com ele. Acho que, se isso acontecesse, se a gente transasse, eu faria isso só pra agradar ele e acho que já passei dessa fase. Ou não. Não sei, na verdade”
"E como você se sente em relação a isso?"
Ele ficou um tempo em silêncio, processando as próprias emoções.
"Confuso. Acho que eu não devia sentir isso"
"Por quê? Por vocês serem dois homens?"
"Não. Em absoluto, não, eu não tenho problema com isso. Não vejo problema em me divertir com outros homens, eu nunca tive esse... tabu, ou seja como lá como chamem, mas com Eduardo é diferente. É como se eu não devesse sentir isso. Porque nós somos amigos há muito tempo. Porque ele já foi apaixonado por mim, e eu não correria o risco de machucar ele. É quase um... desejo"
Dizer aquelas palavras que estavam presas tanto tempo na garganta era libertador. O elefante branco na sala havia sido notado.
"Um desejo reprimido?"
"Isso. Na verdade, eu sinto que eu só não posso pensar essas coisas, sabe?"
Ela tirou os óculos e os limpou com um lenço.
"Julian, você lembra dos pensamentos que você tinha quando chegou até mim? Sobre causar mal a si mesmo ou aos outros? Pensamentos que você classificava como ruins?"
"Sim"
"E você lembra o que conversamos?"
"Que pensamentos são só pensamentos. Você acha que isso tem a ver com o TOC?"
"Por que teria? Você sente repulsa por esses pensamentos sobre seu amigo? Dores no peito? Angústia?"
Ele fez um gesto com a cabeça, negando.
"Então, não é um pensamento egodistônico. Você é um ser humano, Julian. Você pode sentir desejo, ter fantasias e vontades, desde que não esteja prejudicando ninguém. Não há nada com que se culpar"
"Mas eu sinto que preciso manter isso pra mim. Pra não deixar ele triste"
"E você já pensou em conversar com ele sobre isso?"
"Não, eu tenho medo"
"Você sente muito medo das coisas. Você se masturba com frequência?"
"Não. Fazia isso mais na adolescência, pra falar a verdade"
"Vamos fazer assim. Para nossa próxima consulta, pense um pouco sobre seus desejos. Pense no que te agrada. Conversamos sobre isso na próxima sessão, pode ser?"
Na saída do consultório, ele refletiu sobre o que tinha escutado da profissional. Não, ele não foi completamente aberto sobre suas opiniões e sentimentos sobre o sexo, pois, quando tentou, teve receio de ser visto como louco ou anormal. Havia certas coisas que ainda eram um bloqueio.
Na rua, escutou um pequeno miado próximo a uma lixeira.
Se aproximou e abriu o saco de lixo.
Um gatinho.
Branco com manchas pretas.
Os olhinhos estavam meio fechados, com alguma secreção.
Com cuidado, ele pegou o animal, que sibilou e o acomodou dentro de seu casaco.
Ligou para Eduardo, avisando que chegaria um pouco mais tarde.
Subiu em sua pequena Biz azul metálico e rumou ao veterinário mais próximo.
Ao chegar em casa com o novo amigo, encontrou Eduardo comendo uma pizza na sala.
"Será que ele não tem sarna, Julian? Ele parece meio sarnento", perguntou, enquanto o pequeno bichano cheirava os arredores do apartamento.
"Ele tá bem, mas tá com uma virose"
"É contagioso?", questionou, com um esgar de nojo.
"Não, besta. Quer dizer, só pra outros gatos"
"Eu não gosto desse bicho"
Julian riu.
"Você também não gostava de mim quando me conheceu. Agora, vou tomar um banho. O que você acha da gente assistir uma série depois?"
Eduardo mal teve tempo de responder, pois o outro se retirou ao banheiro, às pressas. Uma urgência o dominava. Molhou o rosto na água fria da pia. Estava vermelho.
Só de lembrar da conversa com a psicóloga, algo dentro dele se acendia.
Ligou o chuveiro e entrou no box. Começou.
Toda a tensão acumulada sobre seus ombros se transformou. Era como um exorcismo. Como se o que o perturbava saísse de seu corpo. Cabia na palma de uma mão.
Quando acabou, encostou a testa na parede gelada, sentindo um alívio percorrer todo seu corpo.
Com a refrescância do pós banho, saiu do banheiro e foi ao quarto, onde tirou o celular do carregador. Uma mensagem aparecia na barra de notificações.
EU VOU SER PAI DE NOVOOO
Era José, o irmão mais velho. Eles quase não se falavam, mas trocavam algumas mensagens de quando em quando.
Julian sorriu. Mesmo que nunca houvesse escutado um pedido de desculpas por ter sido deixado tantas vezes sozinho com o pai, sabia que o outro também lutava contra seus próprios demônios naquela época. No fundo, já havia perdoado.
Voltou para a sala e convidou Eduardo a assistir algum seriado qualquer.
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