Capítulo 61
Exatos quinze metros foi a distância mentalmente calculada por Paula, tenente da Polícia Militar, enquanto descia, acompanhada por seus parceiros, aquela enorme escadaria, abaixo do alçapão.
A situação, tão logo terminaram a descida, era simplesmente caótica.
Assim como havia sido informado na ligação feita a cerca de vinte minutos, haviam pessoas ali, sendo mantidas reféns por ninguém menos do que Vicente Montenegro, um dos grandes empresários daquela cidade.
Paula, de uma límpida e incrivelmente atraente pele negra e tão alta quanto qualquer homem ali, observou a garota. Sim, aos seus olhos, apenas uma garota. De armas em punho, porém um tanto quanto trêmula, vendo o corpo sem vida do pai estendido no chão, enquanto uma enorme poça de sangue se formava ao seu redor.
-Ei!- A tenente tirou as duas armas, uma pistola Glock semi automática e um revólver de calibre 38, das mãos de Anabella, que permanecia parada, num estado quase catatônico.- Me dê isso aqui. Tudo bem, moça? Ei...
Paula pôs a mão em seu rosto, virando-o com delicadeza, observando seus olhos.
Anabella a fitou, quase como se não a visse.
-Ele ia matar todos nós, por isso eu, eu...
A policial assentiu, de forma compreensiva.
-Eu sei. Fomos notificados de que poderíamos encontrar uma situação dessas aqui. Está tudo bem. Não tem ninguém ferido aqui, certo?
Lara, Cassandra e José confirmaram estarem intactos.
-Jader!- Anabella exclamou, saindo de perto da policial, de forma impetuosa.
Jader havia se arrastado até um canto e, encostado à uma das estantes, tapava o local onde a bala o havia atingido. O abdômen. Seu rosto agora pálido, demonstrava dor.
Anabella se ajoelhou perto dele, e segurou sua mão livre.
-Jader!- sussurrou.- Eu sinto muito por isso. Mas você se jogou na minha frente, eu...
-Não precisa sentir muito- Jader também sussurrava com certa dificuldade.- Eu... fiz isso porque... não suportaria perder você também.
Ela o fitou com pesar.
"Não sabe o quanto fico feliz e triste ao mesmo tempo, por ouvir isso."
-Eu também não posso suportar perder mais ninguém na minha vida- Anabella disse.- Então faça o favor de ficar vivo. Por favor! Ele precisa de atendimento, urgente!- gritou aos policiais.
-Como souberam que estávamos aqui?- Martín perguntou, ainda sem entender como a polícia invadira o local, de repente.
-Recebemos um chamado. Alguém nos disse que Vicente Montenegro estava mantendo pessoas presas dentro de um alçapão, na Vinícola.- A tenente Paula respondeu.
-Fui eu- disse Jader, enquanto era levantado por dois policiais.- Eu estava com a Mariana, observando tudo de longe. Ela acabou voltando para casa, por causa da família, mas eu fiquei.
Martín soltou um suspiro profundo de alívio, ao saber que Mariana e as crianças estavam bem e em segurança, em casa.
-Quando vi que vocês não saíam, eu deduzi que a coisa poderia estar séria aqui dentro, então consegui ligar para a polícia, pouco antes de Vicente me encontrar e me jogar aqui também.
Paula o olhou, reconhecendo a voz que ouvira durante ligação.
-Então foi você...?- Ela disse.
-Sim, fui eu.
-Foi muito arriscado o que você fez, Jader.- Paula se aproximou dele, tocou em seu ombro e sorriu.- Mas também foi muito corajoso. Se não tivesse nos ligado, a situação que encontraríamos seria bem pior.
Jader assentiu e fez uma careta de dor, seguida de um gemido.
Paula viu a bondade e a coragem nos olhos castanhos de Jader, cercados de pequenas gotículas de suor e gesticulou para seus parceiros:
-Podem levá-lo. Ele precisa de cuidados.
Jader foi levado e a policial se voltou para os demais.
-Todos vocês, na verdade, precisam de cuidados e de alimentação. E posteriormente, também precisarão prestar depoimento. Mas por enquanto, eu só quero tirar vocês daqui.
Ela se aproximou de Anabella, para conversar em particular.
-Já sabemos que dois dos guardas dessa Vinícola eram cúmplices do seu pai.
-Ele... na verdade não era meu pai. No passado, ele matou meu verdadeiro pai, seu irmão, Cícero. Ele é... era apenas meu tio.
Paula ergueu as sobrancelhas surpresa com essa nova informação e fez uma anotação.
-Enfim, Anabella. Sabe se seu tio Vicente tinha mais algum comparsa de crime? Alguém que negociava as drogas e as armas junto com ele?
Anabella assentiu, com firmeza.
-Sim. O Sérgio. Sérgio Foster, primo do Jader. Ele é tão culpado quanto o Vicente.
-Sabe onde ele está?
-Ele desceu aqui nessa noite que passou para fazer uma entrega, depois meu pai o mandou embora.
-Sabe onde ele mora?
Anabella se lembrou enojada do apartamento onde Sérgio morava e onde havia estado com ele, algumas vezes.
-Sei.
Depois de receber a exata localização do tal apartamento, a tenente pediu reforços para ajudá-la com os reféns e para começarem a analisar melhor o local, como parte da investigação.
🍷
O sol já brilhava esplendorosamente no céu quando Sérgio, ao ver os carros de polícia e toda a movimentação na Vinícola, deu a ré em seu carro, determinado a fugir para o mais longe possível daquele lugar.
E se dependesse dele, jamais o encontrariam.
🍷
Para os funcionários da Vinícola Montenegro, aquele foi um dia bastante incomum.
Assim que chegavam, recebiam o comunicado de que podiam voltar para casa, e tirassem o dia de folga. Não haveria trabalho.
A Vinícola estava completamente interditada e, embora o local onde os crimes haviam acontecido já havia sido descoberto, o ambiente como um todo receberia uma vistoria completa e abrangente. Desde as adegas, passando pelos escritórios, até a loja de degustação.
A polícia Militar em conjunto com a polícia Civil de São Bento do Amaral debruçou-se sobre o caso, investigando, colhendo informações e depoimentos, a respeito de tudo o que havia acontecido não só naquela madrugada, mas em todos os dias, semanas, meses e anos anteriores, nos quais, de alguma forma, Vicente Montenegro havia sido o principal causador de males, mortes e destruições de famílias.
Em poucas horas, todos os veículos de imprensa, até mesmo vindos da capital Vitória, noticiavam a descoberta do esconderijo onde Vicente Montenegro traficava narcóticos e armamentos pesados.
A cidade vivia um dia agitado com tantas novas informações a respeito do homem que julgavam ser um dos melhores anfitriões; um cidadão de bem e incapaz de cometer crimes tão hediondos quanto os que eram noticiados. Entretanto, as provas estavam ali, por meio de fotos, vídeos e testemunhas.
A indignação alheia era grande, as pessoas sentiam-se ludibriadas mais uma vez por um dos poderosos, que colocam uma máscara de bondade no rosto, enganando a todos, enquanto secretamente, são capazes de cometer as maiores atrocidades.
Aos prantos, sentindo-se completamente destruída, Eleanor se trancou no banheiro, com uma caixinha de lenços que lhe entregaram, logo após ter liberado o corpo do marido para que o pessoal do IML desse início aos procedimentos.
Sabia que sua vida e a família que tanto lutara para ter havia começado a ruir diante de seus olhos, aos poucos. Cada dia um novo fator destrutivo.
Sempre preferiu fechar os olhos para certas situações, tudo por sua família que era o seu bem mais precioso.
Tanto zelo para quê? Para que sua única filha matasse o próprio pai, antes que ele a matasse?
Por que as coisas não poderiam ser mais simples para eles? Por que coisas tão terríveis tinham que acontecer justamente com sua família??
E mais importante: como não havia enxergado o monstro que Vicente realmente era?
Eleanor puxou da caixa o vigésimo lencinho.
E então, se lembrou de Anabella. A filha devia estar tão ou mais arrasada que ela. Provavelmente estava confusa e carente de explicações que só poderiam vir dela.
Este era o momento em que teriam que apoiar-se uma na outra, ou sucumbiriam à tudo aquilo.
🍷
Na delegacia, a tenente Paula encontrou Anabella sentada em uma cadeira num corredor. Parecia exausta e faminta, embora tivesse recusado tudo o que haviam oferecido à ela.
-Aqui. Trouxe seu carro- a policial estendeu a chave para ela.
Anabella pegou sua chave e encarou a mulher, por um momento.
-Obrigada- murmurou.- Eu... posso ir para casa agora?
-É claro, querida. Você e os demais ainda serão chamados para outros depoimentos, mas quanto ao principal, não se preocupe. Não vai ser presa. Você fez o que chamamos de auto defesa. E isso não configura crime dentro da lei.
Anabella se levantou.
-Não estava preocupada com isso.
Ela deu alguns passos, mas voltou, ficando novamente de frente para a mulher.
-Você sabe como o Jader está?
-Sei. Neste exato momento ele está passando por uma cirurgia para remoção da bala alojada no abdômen.
Paula observou o rosto de Anabella, analiticamente.
-Ele vai ficar bem, se é o que quer saber.
Era exatamente isso. Anabella seguiu andando pelo corredor da delegacia, pensando consigo que afinal de contas, algum alívio teria naquele dia horrível. Jader ficaria bem e isso, no momento, era tudo o que importava.
Antes que chegasse à saída, encontrou-se com a mãe, que acabava de chegar.
-Filha!- Eleanor exclamou, abraçando-a, enquanto chorava.
-Eu sinto muito por tudo isso, filha, eu queria poder ter estado no seu lugar. Você não precisava passar por tudo aquilo...- Eleanor murmurava, enquanto apertava o corpo da filha contra o seu.
Anabella manteve seus braços estendidos, sem abraçar a mãe de volta.
-Que bom que você está bem, Bella. Eu tô tão feliz que nada tenha acontecido...- o choro da mulher parecia infindável e a postura fria e distante de Anabella permanecia a mesma.
Em nenhum momento, abraçou a mãe. Apenas esperou pacientemente que ela parasse de chorar e de falar.
Quando isso aconteceu, seguiu andando para fora da delegacia, em direção ao seu carro, sem dizer uma única palavra.
🍷
Susan observava o mar à sua frente, da sacada do quarto de hotel onde estava hospedada, em Fernando de Noronha. A água cristalina com sua espetacular oscilação entre os tons esverdeados e os azuis era realmente uma bela vista. Porém, embora estivesse encantada com a paisagem, ela encontrava-se melancólica.
-É inacreditável...- disse Laerte, após tomar um gole do vinho que estavam desfrutando juntos naquela tarde.
Haviam acabado de ver a notícia no site do jornal de São Bento do Amaral.
-Tráfico de armas e drogas!- Ele continuou.
Susan olhou para ele.
-Sabe que eu até esperava por algo desse tipo- falou.- O que realmente me surpreende e me deixa horrorizada é todo o resto. Manter pessoas presas, assédio, assassinato...
Susan buscou o ar como se se sentisse sufocar.
-Meu Deus! Eu... eu não posso acreditar no quanto fui apaixonada por um homem como esse...
Ela se levantou e pôs-se a andar pela sacada.
Laerte a observou curvar-se sobre a grade, cruzando os braços sobre ela.
Susan realmente era uma mulher muito linda e atraente. Usava apenas um robe branco, pois havia acabado de tomar banho logo após voltarem de mais um dia divertido na praia.
-E agora ele está morto. Morto pela própria filha. Quer dizer, sobrinha.
Laerte se levantou e foi até ela.
Esperou alguns segundos para dizer:
-Eu entendo se você quiser voltar. Afinal, vocês tiveram um caso e talvez queira ir ao velório...
Susan voltou a olhar para o mar. Passar aqueles dias com Laerte ali naquele paraíso de mar e ilhas lindíssimas estava fazendo com que se sentisse incrivelmente bem. E no final das contas, sabia que era o melhor que poderia ter feito, pois do contrário, agora provavelmente estaria vivendo o inferno em São Bento do Amaral, no meio de tudo aquilo, como todos os outros.
Pela primeira vez agradeceu à Deus e à Vicente por tudo ter acabado e por ter sido chutada da vida dele de forma tão humilhante. O fato de ter se apaixonado arruinou seu maior plano, mas também a fez enxergar o quanto Vicente a desprezava. Então não, não queria voltar. Vicente Montenegro que fosse para o inferno e sem o adeus dela.
-Não quero voltar para lá- disse à Laerte.- Eu quero manter esse passado enterrado, assim como o Vicente em breve vai estar. Quero continuar aqui.
Laerte gostou do que ouviu.
Com certa hesitação, colocou sua mão sobre a de Susan.
-Tem algo que eu possa fazer para que você se sinta melhor?
Susan olhou para aquela mão ali e mordeu os lábios. Soltou uma risada baixa e meio rouca.
-Sabe que tem sim?
Ela se aproximou dele, e desatou o nó de seu roupão.
-Não faz isso comigo, Susan...- Laerte quis fechar os olhos.
-Qual é!- Ela se aproximou ainda mais, rindo.- Vai me dizer que era mesmo verdade aquele papo de que você não tinha segundas intenções comigo?
-Bom, era sim. Eu não pretendia e nem pretendo fazer nada que você não queira.
Ela o puxou para dentro do quarto, de volta, trazendo consigo a garrafa de vinho.
Laerte perdeu o fôlego com o beijo quente e voluptuoso de Susan.
-Então quer dizer que você tinha segundas intenções comigo?- perguntou, embriagado pelo doce gosto do beijo dela.
Susan o fitou com seus brilhantes olhos pretos como a noite.
-Um fato sobre mim: eu sempre tenho segundas intenções.
Com isso, deixou o roupão cair por completo e um Laerte louco de desejo por ela.
🍷
Anabella acordou na escuridão de seu quarto e se levantou indo até a janela, que era de onde vinha a escassa luz proveniente dos postes de iluminação pública da rua.
Depois de ter saído da delegacia, se alimentado e tomado banho, havia dormido o dia inteiro. A cama familiar foi um verdadeiro conforto para seu corpo e mente cansados e pegar no sono não foi difícil.
Agora, tarde da noite, despertou e tendo em vista que não conseguiria mais dormir, decidiu sair do quarto.
Anabella sentiu-se uma estranha ao andar pelo corredor do segundo andar.
Era tudo estranho.
Ana Lúcia não estava mais no quarto ao lado.
Cassandra não trabalhava mais ali e agora, Vicente também seria apenas mais um que se fora.
"Porque eu o matei" pensou, enquanto descia a escada em silêncio, a mão deslizando pelo corrimão.
Sua própria imagem atirando dezenas de vezes contra ele a assombrou por um momento.
Anabella gostaria de sentir-se vingada por todas as pessoas às quais Vicente fizera mal. Queria se sentir bem por ter feito o que fez mas além do alívio por ter sido ele e não ela, só conseguia sentir o quão anormal e aterrorizante era aquilo tudo. As coisas em uma família definitivamente não deveriam ser assim.
Anabella, com uma larga calça de dormir e camiseta, decidiu ir até a cozinha comer mais alguma coisa, já que por ora, não conseguiria voltar a dormir, embora fosse quase madrugada.
Quase voltou da porta da cozinha, ao ver que a mãe estava lá, sentada em uma cadeira, os olhos vermelhos e inchados fixados na mesa.
Entretanto, queria comer alguma coisa e decidiu ignorá-la apenas. Ao abrir a geladeira e pegar a jarra de suco, ouviu a mãe falar com ela.
-Seu pai mal teve um velório e um enterro dignos. Precisava ver os insultos que eu tive que escutar enquanto íamos para o cemitério. Para me consolar e oferecer algum tipo de ajuda eu não vi ninguém se manifestar. Mas para destilar ódio e repúdio contra seu pai todos foram capazes.
Anabella colocou a jarra de volta na geladeira e a fechou com força.
-Em primeiro lugar, aquele homem não era meu pai então pare de falar como se fosse. E em segundo lugar, eu acho é pouco. Não sei como você ainda teve coragem de se importar com aquele verme e achar que alguém mais se importaria, depois de tudo o que ele fez.
Eleanor olhou para a filha com paciência, compreendendo os motivos para que ela agisse daquela forma.
Ela mesma ainda estava abalada e Deus sabe se algum dia iria se recuperar depois de descobrir tanta sujeira vinda do marido.
-Filha, por favor, vamos ser compreensivas uma com a outra. Não sabe como é difícil para mim ter que olhar para você sabendo que matou seu... o Vicente. Por outro lado, eu sei que se não tivesse feito isso, seria a sua morte que eu estaria chorando agora. Então vamos nos apoiar mutuamente porque agora somos tudo o que resta uma à outra.
-Eu não quero me apoiar em você. Desde cedo eu aprendi que não deveria confiar em ninguém e sei que foi o melhor que eu pude fazer porque as pessoas realmente não são confiáveis. As pessoas roubam, mentem, matam e traem umas às outras constantemente e eu estou inserida na maioria destes termos, para o meu próprio desgosto. Não foi há poucos dias que eu percebi a pessoa podre que o Vicente era e por isso, eu também não confiava nele. Mas você, você mãe- Anabella sentiu sua voz tremer e precisou continuar firme.- Você era a única pessoa na qual eu ainda confiava. Era a única que eu ainda esperava que fosse sincera comigo, desde que a Ana Lúcia se foi.
-Mas eu fui, querida, eu fui...
-Como você pode dizer que foi sincera comigo se mentiu para mim durante todos esses anos? Você colocou dentro da nossa casa, no seio da nossa família, um monstro! Um psicopata capaz de cometer os crimes mais terríveis até mesmo contra sua suposta filha! Um homem capaz de matar o próprio irmão para possuir tudo o que era dele, inclusive a esposa. Eu não entendo como foi capaz de fazer isso! Não entendo como foi capaz de compactuar com algo tão doentio e asqueroso! Por que, por quê???
Eleanor se levantou da cadeira.
-Filha, por favor acredite quando eu digo que fiz isso por amor à você e à sua irmã. Eu não fazia idéia de que Vicente havia matado o verdadeiro pai de vocês, o Cícero. Por favor, senta que eu vou te contar tudo, tudo o que eu sei.
Anabella recusou-se a sentar e Eleanor teve que usar um pouco de sua autoridade de mãe.
-Anabella, eu estou mandando você sentar. Sente-se aí e mesmo que não queira, vai ter que me ouvir.
Anabella se sentou, cruzando os braços e as pernas, enquanto encarava seriamente a mãe, esperando que esta falasse.
-Quando eu me casei com o seu pai, o seu verdadeiro pai, o Cícero, eu não sabia que ele tinha um irmão gêmeo. Demorou muito tempo para que ele contasse isso para mim. Aparentemente esse irmão vivia em outro estado e eles não tinham muita interação, nem mesmo por telefone. Foi apenas no dia do nosso casamento que ele apareceu e eu fiquei simplesmente espantada com o quanto eram parecidos. Na verdade, eram idênticos, assim como você e Ana Lúcia. Vicente mal ficou para a festa e Cícero me disse que não havia nada demais entre eles, apenas que não eram irmãos tão chegados assim e que Vicente tinha seus compromissos onde morava. Então eu tive a melhor notícia da minha vida, um pouco depois- os olhos de Eleanor brilharam, com emoção.- Descobri que estava grávida e quando soube que eram gêmeas a alegria foi duplicada.
Ela parou, sorrindo com o próprio trocadilho e enxugou o olho.
-Nossa imensa felicidade foi um pouco abafada logo após o nascimento de vocês porque seu pai descobriu que tinha um tumor no cérebro. Foi uma época muito conturbada de nossas vidas. Vocês eram apenas bebês e eu tinha que dar conta de tudo e ainda apoiar seu pai com todos os tratamentos e tudo o mais. Então Vicente ofereceu ajuda com a Vinícola, já que, estando doente, seu pai praticamente não podia mais trabalhar.
-Meu pai tinha um tumor no cérebro?- Anabella mal podia acreditar no que havia acabado de escutar.- Foi por isso que a Ana Lúcia...?
-Não sei se tem algo a ver, mas pode ser que sim.
-Isso quer dizer que eu também tenho ou posso ter...?
-Não, Bella! Por Deus, não diga uma barbaridade dessas!
Anabella encolheu os ombros.
-A maioria das pessoas devem se perguntar como eu fui capaz de me casar com um homem como Vicente. Mas não entendem que ele simplesmente não era ou pelo menos não aparentava ser o que acabou demonstrando. Pelo contrário, ele foi o responsável por não deixar a Vinícola falir e acabar de vez naquela época. Foi ele quem segurou as pontas para que nada fugisse totalmente do nosso controle. Ele se mudou definitivamente para o Espírito Santo e passou a conviver com a gente. Talvez tenha sido naqueles dias, nos dias mais difíceis da minha vida, com seu pai tão doente e com todo o mundo parecendo desabar ao meu redor que eu tenha começado a gostar do Vicente. Isso porque ele foi um verdadeiro apoio, um amigo leal e presente em cada momento. Hoje sei que tudo provavelmente foi pura articulação e interesse, mas naquela época...
Eleanor soltou um longo suspiro.
-Naquela época eu não fazia idéia. Tudo aconteceu muito naturalmente. Pouco antes de vocês completarem dois anos de idade, Cícero teve uma piora significativa em seu quadro, muito parecida com a que Ana teve quando voltamos do Rio. Vicente o levou de casa, alegando que iria procurar os melhores médicos para tratá-lo e eu concordei. Cícero havia me deixado um lindo bilhete falando sobre como era importante que celebrássemos o aniversário de dois anos de vocês e eu, para atender ao pedido dele, decidi fazer a festa. Foi naquela noite, depois que todos os convidados já haviam ido embora, que Vicente me contou que seu pai havia falecido. Eu acreditei que ele não havia resistido ao tumor e por isso, foi no próprio Vicente que encontrei apoio e consolo naquele momento. Se eu soubesse...
A mulher cobriu o rosto com as mãos, abafando os soluços que surgiram em sequência.
-E como você não desconfiou? Não viu o corpo do Cícero?- Anabella perguntou.
-Não! Vicente não permitiu. Ele me garantiu que já havia cuidado de tudo e que eu não precisaria me preocupar com nada. Que eu e minhas filhas não ficaríamos desamparadas pois ele estava ali e seria um verdadeiro refúgio para nós.
Anabella não conseguia entender.
-Mas e os médicos que tratavam dele, ninguém perguntou ou disse nada? Como simplesmente tudo ficou por isso mesmo?
-Na época eu estava abalada demais para pensar a respeito, mas hoje, só posso pensar que ele provavelmente subornou os médicos para me dizer que era verdade, que Cícero havia morrido em decorrência do tumor no cérebro.
-Então foi isso? Vicente mata o meu pai e depois você simplesmente se joga nos braços dele??
-Eu não sabia que ele o tinha matado! E não foi bem assim. Não foi da noite para o dia. As coisas foram acontecendo aos poucos. Quando eu dei por mim já estava completamente envolvida por ele e então...
-Ok, já chega! Eu não preciso ouvir mais nada.
Eleanor segurou as mãos de Anabella.
-Você me entende agora, querida?
Anabella soltou as mãos da mãe, se levantando de repente.
-Gostaria muito, mas não. Eu não entendo. Não consigo entender.
Ela fitou a mãe, com verdadeira mágoa no olhar.
-Vicente Montenegro destruiu a nossa família. E você o trouxe para as nossas vidas. Eu nunca vou te perdoar por isso.
-Bella!
Eleanor viu a filha sair apressadamente da cozinha e seguir na direção da escada.
-Filha, por favor, me perdoa! Eu não fazia idéia!
-É um pouco tarde para isso- Anabella a fitou novamente do alto da escada e então entrou no quarto, batendo a porta.
No último degrau da escada, Eleanor se sentou. As lágrimas que faziam seus olhos arderem não eram nada, comparadas ao peso da culpa e do arrependimento que agora sentia.
🍷
Quatro dias depois, tendo recebido alta do hospital, Jader voltou para casa.
Sua cirurgia para retirada da bala alojada no abdômen havia transcorrido sem nenhuma intercorrência e recebeu permissão para concluir sua recuperação em casa.
O pai fora buscá-lo e agora que já haviam chegado, a família inteira estava reunida, para dá-lo as boas vindas de volta à casa e à vida.
-Que ato heróico, meu filho.- A mãe o abraçou, com ternura e cuidado.- Porém muito arriscado. Você sabe como isso poderia ter terminado mal.
-Se colocar na frente de uma bala por alguém só pode significar que você a ama muito- O pai disse, guiando-o até a cozinha.
Jader deu um breve sorriso para o pai.
Só ele e Deus sabiam o tamanho da verdade que aquela frase carregava.
Doralice os esperava na cozinha, com uma mesa farta de pães, biscoitos, torradas, suco, leite e café. Também havia um jarro com flores frescas e bonitas.
-Opa!- Jader exclamou, surpreso.
Doralice foi até ele, dando-lhe um beijo no rosto.
-Arrumei tudo com muito carinho pra você, acho que merece depois de tudo o que passou.
-Obrigada, Dora. Você é um doce.
Jader se sentou. A família também se juntou à ele, e desfrutaram de um café da manhã descontraído e delicioso, como já há alguns dias não faziam.
Evitaram ao máximo não mencionar os últimos acontecimentos, já que não se falava em outra coisa por toda a cidade. O assunto era demasiadamente desagradável para ser tocado em um momento em que tudo o que queriam era proporcionar um café da manhã agradável à Jader.
Uma hora depois, Doralice levantou-se, pedindo licença para se arrumar, pois tinha que estar na ONG e logo em seguida na galeria. Teria um dia cheio e por isso, despediu-se da família, saindo logo em seguida.
🍷
Jader ainda conversava com os pais na cozinha, quando a campainha soou. Seu Rodolfo foi atender a porta e um minuto depois, estava de volta.
A expressão em seu rosto era séria e ele disse ao filho que a visita era para ele.
Jader se levantou com cuidado devido aos pontos em sua barriga e encaminhou-se para a sala.
Do lado de fora, viu Anabella. Estava arrumada e tinha uma bolsa pendurada em seu ombro. Seu cabelo estava preso em um rabo de cavalo e as pontas grossas e onduladas estavam espalhadas pela gola enorme do casaco de usava.
-Anabella!- Jader exclamou.- Que surpresa, você na minha casa! Vem, entra, por favor.
-Não, Jader. Eu não quero entrar. Eu... só vim me despedir.
Jader se aproximou mais. Agora, mais próximo à porta, pôde ver o táxi parado ali, que provavelmente a esperava.
-Se despedir? Por quê? Pra onde você vai?
Anabella balançou a cabeça.
-Isso não importa. Mas estou indo embora de São Bento do Amaral. Diante de tudo o que aconteceu eu não consigo mais me sentir bem nesse lugar. Minha vida toda foi uma grande mentira e eu... não posso mais continuar aqui.
Jader sentiu seu coração se apertar enquanto a ouvia falar.
-Não- disse, inconformado.- Você não pode fazer isso. Não pode... Por favor, eu te imploro. Não vai.
-Não posso ficar, ou eu vou enlouquecer neste lugar. Quis vir me despedir de você pois achei que era o mínimo que poderia fazer, depois de tudo o que você fez por mim e pela minha família e depois de tudo o que passou. Obrigada por tudo, Jader.
-Quem vai enlouquecer sou eu, se não tiver mais você aqui. Essa cidade não vai ter mais nenhuma graça pra mim. E além do mais, eu... Eu preciso cuidar de você, lembra? Me deixa ao menos ir com você, não importa para onde.
Anabella sorriu com certa meiguice.
-Jader, você já cumpriu tantas vezes com sua promessa de cuidar de mim. Eu tô viva por sua causa. Você arriscou sua vida pra salvar a minha e eu nunca poderia retribuir tudo isso. Mas agora, eu realmente preciso ir. Eu sei que vou ficar bem e quero que você fique bem, também.
Jader engoliu o nó em sua garganta.
-Para onde você vai?
-Você não tem que saber disso. Não quero que vá atrás de mim. Sabe que não existe possibilidades para nós. Para que haja nada além do que já houve.
-Mas eu... eu te amo, Anabella. Pensei que isso tivesse ficado claro.
-E ficou. Ficou bem claro. Essa é a única coisa boa que eu vou levar daqui, comigo, acredite.
Ele segurou a mão dela, envolvendo-a entre as suas.
-Você não me ama, também? Por favor, fique.
Anabella suspirou profundamente. Precisava acabar logo com aquilo, ou poderia vacilar, diante de Jader.
-Não posso.
Jader começou a se desesperar, ao vê-la se afastar.
-Mas e a sua mãe? A sua faculdade, a Vinícola... tudo o que você tem aqui?
-Minha mãe ficará bem. E quanto às outras coisas... não me importo mais com nada disso. Eu vou recomeçar, onde estiver.
Anabella abriu a porta do carro, que a esperava e virou-se novamente para Jader.
Os dois pares de olhos castanhos se encontraram, por um momento. Os de Jader, chorosos. Os de Anabella, vacilantes.
Jader sentiu uma pontinha de esperança, ao vê-la caminhar na direção dele. O beijo na pele de seu rosto o fez fechar os olhos, aproveitando aquele breve instante.
-Eu nunca vou me esquecer de você- ela disse.
Jader a observou andar até o carro, acenar brevemente e finalmente, ir embora.
Jogou-se de joelhos no chão, deixando as lágrimas caírem livremente de seus olhos. Ali ficou, até o pai sair de dentro de casa, e ajudá-lo a se levantar.
🍷
Anabella fez o check in de seu vôo pelo celular, enquanto sentia suas mãos tremerem.
A viagem até Vitória não foi capaz de fazê-la descansar um só momento.
Seu corpo estava cada vez mais distante daquela cidade, entretanto, sua mente não saía de lá.
"Ah, Jader! Eu sinto muito..."
Quando finalmente chegou ao aeroporto da capital, passou mecanicamente por cada um dos procedimentos, pois sentia-se entorpecida, como quando vira Jader levar um tiro e cair no chão.
Depois de despachar suas malas e ir até a área de embarque, sentou-se, sentindo uma certa exaustão mental.
Foi somente quando os alto falantes anunciaram o vôo de Vitória para Toronto, Canadá, que ela reagiu.
Mal podia esperar pelo momento em que aquele avião decolaria, levando-a para longe de toda aquela realidade trágica que havia sido sua vida em São Bento do Amaral.
Havia sim, uma parte de sua história em que havia sido verdadeiramente feliz ali e todas as pessoas que foram responsáveis por esses pequenos momentos jamais poderiam ser esquecidas. Guardaria-as com carinho em sua memória, mas seguiria em frente.
Agora, um novo destino a aguardava. O Canadá.
Era real. Ela iria. E quem sabe lá poderia, como dissera à Jader, recomeçar.
Recomeçar de verdade.
〰〰〰〰〰
Pessoal, quanto à Anabella não ter sido incriminada, lembrem-se de que essa história é uma ficção e algumas coisas tomam determinado rumo para melhor andamento da história, ok?
Viram que tem personagem novo e nos próximos capítulos, outros chegarão.
Obrigada a quem está acompanhando a história até aqui e não desistam de Anabella. Parece um exagero o que ela está fazendo, mas eu, quando me coloco no lugar dela, penso que faria exatamente a mesma coisa.
É uma barra e tanto e passar esse tempo longe fará muito bem à ela.
Até o próximo capítulo!❤
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