Capítulo 59
Houve um instante de silêncio e quietude, causados pela certeza de que não haviam se enganado quanto ao que ouviram, antes que Anabella começasse a correr na direção dos gritos. Martín logo seguiu em seu encalço, igualmente horrorizado.
Por precaução, Anabella corria com a mão no bolso de sua calça, onde estava a arma que havia tomado de Sérgio pela segunda vez. Lhe parecia estranha a idéia de que talvez viesse a precisar daquela arma, quando estavam rodeados de tantos armamentos pesados.
Entretanto, seu instinto natural a fez se certificar de que estaria preparada, caso algo acontecesse, embora a situação atual já fosse ruim por si só.
Após a rápida corrida, depararam-se com uma espécie de quartinho, ao virarem à direita, que assemelhava-se à uma pequena cela. E, agarrada às grades que ali haviam, estava Cassandra. Ela ainda gritava, suplicando por socorro; reação provocada ao ter a percepção de que alguém havia entrado ali.
-Cassi!- Anabella exclamou, pondo as mãos sobre a boca.
-Bella?? É você? Graças a Deus!- A mulher, completamente amedrontada e assustada disse, se agarrando ainda mais à grade.
-Cassandra...- sussurrou Anabella, com a voz embargada.- Foi meu pai quem fez isso com você??
Cassandra assentiu e olhou para os lados, como se temesse que a qualquer momento, seu algoz fosse aparecer.
-Sim. Ele fez isso comigo e com ela.
- Ela? Cassi, do que está falando?
Cassandra deu um passo para o lado e então puderam ver, no fundo do minúsculo quarto, o corpo de uma menina.
Anabella olhou aquilo e, com crescente espanto, percebeu que a conhecia. Pelo menos superficialmente.
-Lara- repetiu em voz alta o nome, do qual acabara de se lembrar.- Eu a conheço. Foi ela quem me levou até a casa de Mariana.
Anabella olhou para Martín, que também observava aquilo com nítida aflição.
O que teria acontecido para que seu pai mantivesse aquela garota presa daquela forma?
Anabella foi aterrorizada pela idéia de que Lara pudesse ter sido molestada. O simples pensar provocou-lhe náuseas.
-Eu estou aqui apenas desde ontem de manhã- explicou Cassandra.- E quando cheguei, ela já estava aqui. Pobrezinha...
-Ela está...- Martín olhou para a mulher, em dúvida.
-Desacordada. Tenho certeza de que colocaram alguma coisa na última refeição que nos trouxeram, pois a menina foi a única que comeu e um pouco depois, desmaiou. Eu ouvi os homens conversando por aí antes de chegarem até aqui, que tínhamos que estar desacordadas antes que alguém viesse fazer a entrega, pois não podíamos fazer barulho algum. Mas eles não ficaram aqui para supervisionar e então, eu não comi.
Anabella trocou um rápido olhar com Martín.
-Entrega? Hoje?- questionou ele.
Anabella pensou rapidamente.
-Temos que sair daqui agora. Martín, estoura mais esse cadeado. Rápido, temos que ir antes que alguém desça aqui!
Martín prontamente repetiu o mesmo que fizera nos cadeados do alçapão no pequeno cadeado do quartinho e logo, a porta de ferro estava aberta.
-Martín, pegue a Lara no colo, por favor. Eu vou ajudar a Cassi. Precisamos ir.
Martín fez o que lhe foi pedido.
Anabella deu o braço à Cassandra, embora ela estivesse perfeitamente apta para andar, apesar de tudo.
Saíram de dentro da pequena cela, voltando para a sala extensa, repleta de estantes nas paredes e caixas empilhadas umas sobre as outras, espalhadas pelo chão.
Martín seguiu na frente, com Lara jogada sobre seus ombros, ainda inconsciente.
Foram poucos passos, até ouvirem ruídos de vozes. Vozes de homens, grossas e rudes. Uma delas, um tanto quanto mais suave, Anabella reconheceu iminentemente. Era Sérgio.
-Espera!- Ela sussurrou.- São eles, já desceram!
Martín e Cassandra se detiveram.
-E agora?
Anabella sentia seu coração bater alucinado.
-Vamos voltar. Se escondam!- sussurrou novamente.
Não deu tempo de colocar as outras duas novamente na cela.
Mal tinham se escondido atrás das caixas empilhadas, quando Sérgio e os dois homens terminaram sua descida.
Anabella prendeu a respiração, e manteve os sentidos aguçados.
Um silêncio estranho se instaurou naquele ambiente subterrâneo.
Então, ouviram os ruídos das novas caixas sendo colocadas no chão.
Os homens murmuravam palavras aleatórias sobre o sucesso da entrega, mas Anabella percebeu que Sérgio não havia dito nada.
Ao cabo de dois minutos e de ter cessado todo o barulho do descarregamento, o silêncio voltou.
-É o seguinte!- A voz de Sérgio repentinamente soou, alta e clara.- Eu sei que tem alguém aqui! Não sou idiota, vi os cadeados arrebentados.
Os três, escondidos atrás das caixas, se entreolharam, sentindo a mesma coisa: pavor.
-Onde quer que estejam, apareçam para que eu possa ver- Sérgio prosseguiu.- Façam isso, agora mesmo. Se ninguém se manifestar, eu vou abrir fogo por todo lado. E não estou brincando!
Trêmula, Anabella olhou para seu dedo indicador. A cicatriz, ainda muito recente, a fez se lembrar de que Sérgio era sim, muito capaz de fazer o que dizia. Ela sentira na própria pele o quanto ele podia ser cruel.
Com gestos claros e simples, sinalizou para que Martín deixasse a garota com Cassandra, mantendo assim, as duas escondidas atrás das caixas.
Martín segurou na mão dela.
-Mantenha a calma- Ele sussurrou.
Anabella suspirou e assentiu, embora a preocupação e o medo estivessem evidentes em sua tez vincada.
Ambos levantaram-se ao mesmo tempo, e saíram do esconderijo improvisado.
-Ah, então são vocês!- disse Sérgio.
Em contraste com a situação delicada, ele exibia um sorriso que beirava a psicopatia.
-Ok, vou ser sincero. Assim que notei o rombo nos cadeados, só pude pensar que tinham sido vocês. Bom, não pensei em você, exatamente- fitou Martín.- Mas em você sim, com certeza, Anabella.
Ambos o fitavam, impassíveis.
-Afinal de contas, você sempre foi obcecada por saber todos os segredos do seu pai. Pois aqui está- Ele fez um gesto com a mão, como se apresentasse o lugar.- Tcharaaaan! Segredo revelado. Eu e seu pai somos parceiros de negócios. Gostou, Anabella?
-É bem a cara de vocês dois, mesmo. Crimes- frisou ela.
-Bom, enquanto isso me rende lucros, eu prefiro chamar de negócios, e não de crime. Mas isso não importa, sei que você não entenderia. Porém se quer saber, eu acho que você seria uma excelente criminosa. Você tem, digamos... a garra necessária para isso.
-Já chega, Sérgio. Cala essa boca- Uma voz mais grave disse, atrás dele.
Anabella viu o pai entrar na sala, após descer a imensa escadaria.
Imediatamente, quis dar um passo à frente, mas Martín a impediu, colocando uma mão em seu ombro.
-Obrigado por ter me enviado a mensagem, contando que tínhamos visitas- disse Vicente, se dirigindo à Sérgio.- Agora você pode ir.
-Tem certeza?
-É claro. Depois acertamos os detalhes da entrega de hoje.
Vicente fez sinal para os dois homens.
-Vocês podem subir com ele. E permaneçam na entrada do prédio.
-Sim, senhor.
Com uma calma impressionante, Vicente observou os homens se retirarem e só depois, virou-se para Anabella e Martín. O pequeno sorriso em seu rosto dizia: "é isso mesmo que vocês estão vendo, não há o que fazer." Apesar de que seus olhos voltavam-se constantemente para a direção da cela.
Anabella o olhava, de forma intrigante.
-Eu nem sei por onde começar- disse.
Ela engoliu em seco e olhou ao redor. Seus olhos teimavam em lhe trair, permitindo que algumas lágrimas escapassem.
-Tráfico de drogas e armas...? Você precisa disso? Você é o dono de uma das maiores Vinícolas do país. E quer ser um criminoso??
-Filha, você não entenderia.
-Ah, mas eu não entendo mesmo. Você tem noção de como essas coisas acabam com a vida das pessoas? Torna elas dependentes e as matam! Matam!
-Isso já não é problema meu. O meu papel é apenas comprar, vender e usufruir dos lucros, nada mais. Se existem uns malucos que gostam de se intoxicar com essas merdas, o problema é deles.
Anabella suspirou, espantando o choro.
-Certo. É tudo pelo dinheiro. Sempre foi. Eu até seria capaz de te entender.
Anabella fitou o pai, inconformada e foi inevitável que novas lágrimas de indignação e decepção surgissem.
-Mas a Cassandra, pai?? E a Lara?? Ela é só uma criança! Por quê??? Por que você faz questão de ser esse monstro horrível e sem coração?? Não existem limites para as maldades que você faz??
-Não se meta neste assunto, Anabella. E não se preocupe, eu não toquei naquela menina.
-Ah, não? Então por que ela está aqui?
-Eu não tenho que dar explicações à você!- Vicente exclamou, passando por eles rapidamente, indo em direção à cela.
Entretanto, antes que chegasse até ela, encontrou Cassandra sentada atrás das caixas, com a menina deitada sobre seus joelhos. Ficou furioso ao notar a portinha de ferro aberta.
-Mas o que é isso?!?
Logo Anabella estava à frente dele, impedindo que se aproximasse de Cassandra, que tremia terrivelmente.
-O que você pensou? Que eu ia encontrar duas mulheres prisioneiras nesse antro criminoso e não iria libertá-las?
-Você é mesmo uma enxerida, não é?- Vicente fitou Anabella, com raiva, saindo dali e voltando para o centro da sala, onde estava Martín. Estupefato.
-E você é a pior pessoa da face da terra!- Anabella o seguiu.- Você não é só ganancioso, você é mau, seu coração é duro feito uma pedra!
-É! É isso aí mesmo!- Vicente gritou- A minha máscara caiu, como disse aquele pobre diabo, marido da Cassandra, que eu tive o prazer de apagar com duas balas no peito. Esse sou eu!
Ele lhes apontou um revólver, repentinamente.
-Os celulares. Me dêem os celulares, agora. Não me façam usar a força.
Martín e Anabella assim o fizeram, sem outra alternativa.
Anabella balançou a cabeça, encarando o pai, com total repúdio.
-Eu abomino você. Eu tenho vergonha de ser sua filha! E Ana Lúcia também teria! Que bom que ela não está aqui para ver isso. É a primeira vez que eu me sinto feliz por minha irmã não estar mais aqui!
Vicente deu uma risadinha breve e fraca.
Caminhou até o primeiro degrau da escada e disse:
-Que pena, querida. Berço não se escolhe. E olha só, enquanto eu decido o que fazer com vocês, todos vão ficar presos aqui.
-O quê?? Você ficou louco?- Martín enfim se manifestou.
-Não pode deixar a gente preso aqui!
-Eu posso e vou. E me agradeçam por não deixar todos vocês enfurnados naquela cela. De nada.
Com isso, Vicente saiu, deixando-os ali.
Anabella desabou no chão, o choro finalmente vindo à tona e ela não fez nenhuma questão de impedir.
🍷
Na casa de seus pais, Jader caminhava de um lado para o outro, pela sala. Sua inquietude externa evidenciava a aflição de seu coração, por preocupação com o que poderia estar acontecendo na Vinícola. Gostaria de sentar e esperar que Anabella lhe desse a notícia de que tudo havia ocorrido como esperado, mas sua perturbação interior era demasiado gritante.
-O quê que ele tem?- Rafaela perguntou, olhando por cima do ombro de Doralice.
As duas, incapazes de se manterem longe uma da outra desde a ida ao cinema, estavam juntas outra vez, assistindo à terceira temporada de mais uma série policial.
-Eu não tenho certeza, mas acho que está preocupado com alguma coisa envolvendo a família Montenegro. Especialmente, envolvendo a Anabella.
-É mesmo? Por que ela?
Doralice deu de ombros, não querendo aprofundar o assunto.
-Ei, maninho!- disse alto, chamando a atenção dele.
Jader parou de andar, olhando para a irmã.
-O que foi?
-O que você tem? Sossega!
Jader mordeu os lábios, apreensivo.
Estava sofrendo no presente momento as consequências de ignorar seus sentimentos e suas intuições. Não queria também impor aos outros, talvez em um futuro próximo, qualquer tipo de sofrimento, tendo em vista que poderia ainda fazer alguma coisa.
Então, resolveu seguir seus instintos.
Jader pegou a chave do carro, passou pelas meninas, esquecendo-se de responder a pergunta de Doralice e então, partiu.
🍷
Mariana lia na sala, com a luz de um abajur, ao seu lado.
No quarto, as crianças dormiam. Seu Benício também já se recolhera, mas ela se sentia incapaz de pregar os olhos.
A batida rápida na porta a assustou e ao mesmo tempo, a animou. Finalmente! Martín havia voltado para ela e tudo havia corrido bem!
-Jader!?- exclamou, espantada, ao abrir a porta.
-O que houve? Por que você está aqui? Martín me contou que além de mim, você era o único que sabia sobre... o alçapão- Ela terminou a frase num cochicho.
-Calma- Jader a tranquilizou, em parte- Não aconteceu nada. Não que eu saiba. Eu pretendia ficar perto da Vinícola, para o caso de notar qualquer anormalidade, mas o Sérgio me viu e eu preferi não ficar.
Mariana então pôde respirar. Não podia negar que estava inquieta. Seus pensamentos, enquanto fazia o jantar naquela noite ou enquanto colocava a filha e o irmão para dormir, eram somente sobre Martín e o que ele poderia estar fazendo. Mas se Jader não viera lhe trazer nenhuma notícia ruim, então não tinha porquê se desesperar.
-Bom- disse ela- Então vamos aguardar.
-Mas eles disseram que comunicariam- Jader não estava mais tranquilo.
-Sim, mas talvez a demora deles em darem notícias seja porque estão explorando melhor o alçapão. Não está tão tarde assim.
Jader conferiu o relógio.
-Passa de meia noite, Mariana. Como não está tarde? Eles deveriam estar de volta, no máximo, às onze. Eu sinceramente, acho isso muito estranho.
Mariana enfiou os dedos no cabelo, puxando os fios.
-Pior que você tem razão...
Ficaram em silêncio por alguns instantes, até Jader opinar:
-Deveríamos contar tudo à dona Eleanor. Ela precisa ficar à par do que está acontecendo.
-Coitada, ela já tem que aguentar tanta coisa.
-E vai ter que aguentar mais essa.
-Está bem, mas e o horário? Ela deve estar dormindo...
-Eu enviei uma mensagem de texto para ela, dizendo que precisávamos conversar. Ela respondeu que não conseguia dormir mesmo e que me esperaria.
-Sendo assim, então vamos até lá.
Jader olhou para a casa.
-E a Analu?
-Está dormindo. Ela já dorme a noite inteira.
-Ok, não vamos demorar.
Mariana entrou em casa apenas para pegar sua bolsa, deixou um pequeno bilhete de aviso na cabeceira de seu Benício e em dois minutos, já estava no carro com Jader.
🍷
Anabella mal podia acreditar que estava presa- literalmente- num lugar subterrâneo na propriedade da família e que o carcereiro era o seu próprio pai.
Ao longo de sua vida, havia se acostumado a ver e até a presenciar situações extremamente conflituosas. E sempre que podia, procurava não se abalar ou não se mostrar abalada. Entretanto, nada se comparava ao que estava vivendo agora.
Recostada contra uma das muitas estantes, depois de subir em vão toda a escadaria para ver se, de fato, estavam trancafiados e descer novamente, ela agora se sentia exausta.
Cassandra lhe ofereceu um pouco da água que os homens haviam deixado ali quando foram levar o jantar. Não pôde recusar.
Mal tinha passado a garrafa para Martín, quando um barulho incomum começou a vir de dentro de um dos novos caixotes que haviam sido entregues naquela noite.
Novamente em estado de alerta, Anabella se levantou, colocando a mão sobre a arma, inconscientemente.
Abismados, viram o tal caixote se remexer e sua tampa ser levantada, de dentro para fora.
Um grito de exclamação causado pelo espanto da cena que presenciavam escapou da garganta de todos, exceto da garota, que permanecia desacordada.
O homem de cabelos brancos, pele muito pálida, de baixa estatura e corpo franzino, surgiu de dentro do caixote.
-O que é isso?- Martín disse, intrigado- Senhor José, o que está fazendo??
Sim, José, o colhedor de uvas, acabara de sair de dentro de um dos caixotes. Sem o seu inseparável chapéu, parecia ainda mais baixo.
-Como...?- Anabella olhava dele para o caixote, sem parar.
José bateu a poeira de sua camisa surrada e ergueu as mãos.
-Por favor, meus jovens, se acalmem. Sou só eu. José.
-Já sabemos quem o senhor é. Mas o que está fazendo? E por que está aqui?
-Primeiro quero deixar claro o modo como vim parar aqui. Antes preciso dizer que para o mal ou para o bem, eu escuto muita coisa nesse lugar. Geralmente, para o bem. E eu ouvi vocês falando que desceriam o alçapão nesta noite. Podemos...?- Ele indicou o chão e voltaram todos a se sentar.
José perguntou o que a menina tinha, por estar daquela forma e lhe explicaram rapidamente o que havia acontecido.
-Continuando- disse ele.- Assim que eu soube que vocês desceriam, eu procurei uma forma de vir também. Mas tive receio de pedir para descer com vocês, pois isso soaria muito estranho, com razão. Afinal, eu sou só mais um trabalhador nessa Vinícola. Então eu esperei por uma oportunidade, e ela veio. Vi Sérgio e os outros dois capangas do Vicente chegarem com as caixas e aproveitei um momento de distração deles, para me enfiar em uma delas. Eu realmente tive sorte, pois enquanto foram buscar mais caixas no carro, consegui tirar toda a mercadoria, esconder ela nos vinhedos e me esconder. Depois, foi torcer para que eles não notassem nada e prosseguissem com a entrega. Deu certo, eu estou aqui.
Anabella, Martín e Cassandra se entreolharam.
-Tá, mas... Por quê?? O que você quer aqui?- Questionou Anabella.
-Eu quero ajudar. Ajudar você, Anabella.
José a fitava, profundamente. Mais uma vez, Anabella teve a sensação de que aquele velho senhor sabia mais sobre ela do que ela mesma.
-Como você pode me ajudar? Estamos presos aqui. Eu descobri que tenho um pai cruel e criminoso, que não hesitou nem um só segundo em me deixar presa aqui, porque finalmente descobri toda a verdade sobre ele. O meu pai é perigoso e todos nós, inclusive o senhor, está em perigo. Então, eu diria que sua atitude não foi muito inteligente.
José abriu a boca para responder, mas Cassandra chamou a atenção de todos para a menina, que começava, enfim, a despertar.
Lara acordou, e se mostrou bastante confusa com todas aquelas pessoas ali. Agora, ao vê-la melhor, Anabella notou o quanto parecia suja e assustada. Seus olhos arregalados fitavam cada pessoa com desconfiança e medo.
Anabella, assim como os demais, notou o sangue seco nas pernas dela. Porém, as pernas não pareciam machucadas.
"Meu Deus, ele fez isso mesmo."
-Lara...- Ela se aproximou, com cautela.- Lembra de mim? Anabella.
A garota fez que sim, abaixando a cabeça e recolhendo o corpo para mais perto de Cassandra, que mantinha o braço em volta dela.
-Você é a filha dele- Lara murmurou.
Anabella olhou para Cassandra que acenou com a cabeça afirmativamente, dando a entender que fora ela quem havia dado essa informação à menina.
-Sou- Anabella ajoelhou-se ao lado dela e tentou segurar sua mão.- Mas não sou como ele. Eu estou aqui para ajudar vocês. Ainda não sei como, porque ele também me trancou aqui, mas vamos dar um jeito.
Os ombros de Lara começaram a se sacudir, de repente. Ela estava chorando.
-Ele matou a minha mãe...
Anabella abriu a boca, novamente horrorizada.
-Meu Deus, Lara. Eu realmente sinto muito. Como... como ele chegou até vocês?
Cassandra repetiu movimentos carinhosos no cabelo preto e enrolado da garota, até que ela estivesse calma o suficiente para voltar a falar.
-Ele apareceu uma noite na nossa rua, procurando a Mari...- A voz precoce tremulava- Eu fui dizer à ele que não tinha ninguém na casa e então ele me perguntou se eu gostaria de ganhar um apartamento... Eu disse que precisava falar com a minha mãe primeiro e ele quis me acompanhar até a minha casa. Quando a gente chegou, ele contou para minha mãe que era um tipo de agente social, que estava pesquisando qual a família que mais merecia ganhar aquele apartamento. Eu vi que minha mãe ficou um pouco desconfiada, mas ela aceitou conhecer o tal apartamento, como ele estava pedindo. Então nós fomos, nós duas.
Lara fez uma pausa, para enxugar, com a manga do vestido, o rosto molhado.
-E o que aconteceu depois, Lara?- insistiu Anabella.
-Depois que nós entramos no apartamento, ele começou a mudar o jeito gentil e educado. Começou a dizer que se minha mãe quisesse mesmo aquele apartamento, teria que transar com ele. Mamãe ficou indignada e quis ir embora. Mas ele não deixou. E ameaçou matar nós duas, caso ela não fizesse. Minha mãe então resolveu fazer aquilo, e cochichou para mim que nem era pelo apartamento, mas que eu esperasse quieta e calada, que depois que tudo acabasse, nós iríamos embora para nossa casa. Ela entrou em um dos quartos com ele e eu fiquei sentada na sala, no chão, porque não tinha coragem nem de sentar no sofá, e fiquei tremendo e chorando.
Anabella segurou novamente na mão dela, conseguindo enfim. A garota não parava de tremer.
-Eu estava quase pegando no sono quando eles finalmente saíram do quarto. Minha mãe parecia aliviada e me chamou para irmos embora, mas ele tirou a arma e disse que aquilo infelizmente não seria possível, que ele não iria arriscar deixar a gente sair, porque depois poderíamos ir na polícia. Mamãe jurou que não iria, que ele só nos deixasse em paz, mas ele apontou a arma para ela e atirou. O sangue de mamãe respingou por todo lado, inclusive em mim e eu fiquei deitada no chão, só esperando ele me matar também. Mas ele não fez isso. Apenas me mandou ficar quieta. Não sei como, mas eu devo ter apagado, porque quando acordei, já estava aqui.
A expressão de compaixão contida no rosto de cada um somada à tristeza que aquela narrativa despertava em todos, perdurou por muito tempo.
Outra vez, a crueldade e maldade de Vicente Montenegro fazia-o parecer cada vez mais inumano.
Anabella não teve mais palavras. Apenas abraçou Lara com força.
Via-se na pele daquela pobre e órfã garota, pois também havia visto alguém que amava muito morrer, de forma cruel, em sua frente.
Adolescentes não deviam ver suas melhores amigas ou mães morrerem nas mãos de homens abusadores. Aquilo era inadmissível, um jeito macabro de passar da adolescência à juventude e, posteriormente, à vida adulta. Agora aquela garota cresceria cheia de traumas, incapaz de confiar em alguém, afastando as pessoas e desconfiando até mesmo dos que realmente lhe queriam bem.
-Lara, esse sangue na sua perna... é seu, ou da sua mãe?- Anabella perguntou, por mais que odiasse ter que insistir naquele assunto.
-É da minha mãe. Foi quando ele atirou nela, espalhando sangue pra todo lado.
O suspiro de alívio foi unânime.
-Então ele não tocou em você, ou te machucou de alguma forma?
-Não. Apenas me trancou aqui e disse que eu não poderia sair até ele decidir o que fazer.
-Entendi. Você vai sair daqui. Nós vamos. Eu só preciso pensar.
Anabella se levantou, e pôs-se a andar pela enorme sala, massageando as têmporas com os dedos.
-Preciso pensar...
Martín rasgou um pedaço de sua camisa e, molhando-o com um pouco de água da garrafa, entregou à Cassandra, para que limpasse o sangue das pernas de Lara. A garota, na verdade, precisava de um bom banho, mas aquilo, por enquanto, serviria.
🍷
Anabella começou a vasculhar todo o lugar, para matar o tempo.
Além das estantes abarrotadas de narcóticos e das paredes cheias de armas à exposição, haviam móveis velhos e puídos, dispostos aleatoriamente pelo salão. Ela viu registros fiscais, arquivos antigos da Vinícola, planilhas de controle de estoque de datas passadas, além de fichas de funcionários que trabalharam ali há muitos anos. Eram muitos papéis, a maioria já bastante desgastada.
Anabella suspirou pesadamente, e olhou para os outros.
Martín estava encostado à parede, os braços estendidos sobre os joelhos e olhos fechados. Provavelmente, estava preocupado com Mariana, e com o fato de que havia prometido dar notícias à ela.
"Desculpa meter você nisso, Martín."
Cassandra e José conversavam, enquanto Lara, com a cabeça no colo da mulher, parecia cochilar.
Anabella soltou um novo suspiro.
Sentia-se culpada, de certa forma. Embora a grande culpa fosse do pai.
Continuou inspecionando as gavetas, até chegar na última, ainda mais velha e empoeirada, o que fez seu nariz protestar, com um espirro.
Encontrou papéis, folhas de pagamento, arquivos e mais arquivos antigos.
Anabella estava prestes a fechar aquela gaveta com um bom pontapé, quando se deparou com o seu próprio nome, em uma daquelas folhas velhas.
Ao longo de toda a sua vida, orgulhara-se de não ter conhecido uma única pessoa com o mesmo nome que o seu. Mas, aparentemente, na Vinícola Montenegro, há muitos anos atrás, havia trabalhado alguém chamada Anabella.
Entretanto, ao olhar com um pouco mais de atenção, percebeu que aquela não era a ficha de um funcionário.
Era uma certidão de nascimento.
Abaixo da mesma folha, encontrou uma segunda, e se espantou mais uma vez, ao ver o nome de Ana Lúcia.
Anabella franziu a testa. Se bem se lembrava, sua certidão de nascimento e a de Ana Lúcia estavam muito bem guardadas no escritório de casa. Em folhas limpas e conservadas.
Estranhou aquilo.
Contudo, sua data de nascimento e horário estavam corretos, assim como o nome de sua mãe. Ao correr os olhos pela folha, sentiu seu coração bater forte.
-Nome do pai, Cícero Montenegro- murmurou, trêmula.
Conferiu a certidão de Ana Lúcia. O nome do pai também constava como Cícero Montenegro.
-Não pode ser...
José a ouviu e se levantou, indo até ela.
-Anabella? Tudo bem??
Ela não sabia o que pensar. Tudo parecia uma tremenda confusão em sua cabeça. O que estava acontecendo??
-Encontrei certidões de nascimento minha e da Ana Lúcia.
Ela falava pausadamente, como se tentasse compreender as próprias palavras.
-Não entendo. Aqui diz que o nome do meu pai é Cícero. Mas quem é Cícero??
José arregalou os olhos, atônito.
Então não havia sido preciso ele abrir sua boca. A garota era tão boa que descobrira por conta própria.
-Foi por isso que eu quis vir até aqui. A hora chegou, Anabella. Você finalmente sabe da verdade, agora.
Anabella cravou os olhos nele. De sua testa, um suor fino começava a brotar.
-Quem é Cícero?- perguntou.
-Cícero é o nome do seu verdadeiro pai. Ele e Vicente eram irmãos gêmeos. Vicente Montenegro na verdade, é seu tio.
Anabella abriu a boca. Embora a incredulidade fosse visível em seus olhos castanhos e firmes, ela soube que aquele velho senhor estava falando a verdade. Afinal, ele sempre soubera.
-E onde ele está...? O... o meu verdadeiro pai?
José balançou a cabeça, consternado.
-Está morto. Vicente Montenegro o matou.
〰〰〰〰〰
É babado atrás de babado nessa história!🎳
Segundo os meus cálculos e se tudo der certo, o próximo capítulo sai sábado.
Até lá! 😘
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