Capítulo 51
"Eu escalaria todas as montanhas e nadaria todos os oceanos, só para estar com você e consertar o que eu quebrei.
Porque eu preciso que você veja que você é a razão."
(You are the reason- Calum Scott)
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Jader olhou pela janela do Café onde estava e assustou-se ao perceber que já estava anoitecendo.
Não vira as horas passarem!
Desde o momento em que saíra da JM após ser demitido, recusou-se a voltar para o apartamento.
A princípio, entrara no Café em frente à empresa apenas para comer alguma coisa e sua intenção era sair para caminhar um pouco.
Tentaria se distrair e ver se conseguia esquecer todos os sentimentos que lhe sufocavam: culpa, autocensura e tristeza, muita tristeza.
Mas um copo de café levou ao outro e seus pensamentos o deixaram ali, estático, sentado em um canto do estabelecimento, fitando a rua lá fora, sem realmente vê-la.
Alguns funcionários e até o próprio dono haviam ido diversas vezes até sua mesa perguntar se ele estava bem. Uns o olhavam com pena e eram simpáticos, provavelmente porque acreditavam que ele tinha algum problema sério; outros o encaravam como se ele fosse estranho. Sabia que só não o mandaram se retirar pois passara o dia consumindo alguma coisa, nem que fosse café.
No entanto, ao perceber que o dia já havia chegado ao fim, decidiu se levantar e ir embora.
Já do lado de fora, observou o prédio da JM à sua frente.
Sete anos. Foram sete anos trabalhando ali. Havia sido feliz, não podia negar. Publicidade era algo que sempre soube que gostaria de fazer e afinal, se não houvesse sido convidado para prestigiar aquele evento no Rio de Janeiro meses atrás, talvez não teria conhecido Ana Lúcia.
Jader se lembrou com saudades daquele dia. Fora tão especial...
Ana Lúcia parecia flutuar em cima daquela passarela. Seu sorriso era encantador e ele lembrou de como ela havia ficado envergonhada e se auto repreendido por ter se assustado com uma mosca em seu canapé.
Jader sorriu, de forma involuntária.
E então, vieram os encontros posteriores, os beijos, os abraços, os pais dela e... Anabella.
Jader não conseguia entender quando ou como foi que percebera que Anabella era tão importante em sua vida quanto Ana Lúcia.
Teria sido quando quase atirou nele por acidente e posteriormente desabafara sobre porquê havia entrado em pânico?
Jader percebeu que sentira a necessidade de confortá-la e de consolá-la. E que afinal, ela não era tão durona quanto parecia.
Mas então sua vida e tudo ao seu redor se tornou uma confusão imensa e nada pareceu fazer mais sentido.
Por um só momento Jader desejou não tê-las conhecido; nem uma, nem outra. Afinal, agora não estaria se sentindo tão... desolado.
Seus pensamentos foram interrompidos quando ele mal deu dois passos para atravessar a rua em direção ao seu carro e sentiu seu corpo chocar-se contra o corpo de uma mulher.
Jader percebeu que a conhecia.
-Mariana??
Ela, que andava apressada e com as vistas baixas, quis esconder-se, ou enfiar-se em um buraco qualquer.
A vergonha e a humilhação estavam expostas em sua face na qual, a custo de muita maquiagem, ela conseguira disfarçar o quanto havia chorado.
Jader a observou e embora soubesse que de fato era ela, talvez se a olhasse de longe, não a reconheceria.
-Por que está vestida dessa forma?
Mariana prendeu os lábios um ao outro, desejando poder desaparecer.
-Estou parecendo uma prostituta, não é?- Murmurou.
-Não, me desculpe- Jader apressou-se em se explicar- Não foi isso o que eu quis dizer. É que geralmente você se veste de uma forma diferente e...
-Eu sei que você não quis dizer isso, Jader. Mas é assim que eu me sinto. Como uma prostituta. Ainda mais sabendo o que eu estou prestes a fazer...- Mariana sentiu sua voz tremer ao terminar de falar.
Jader não precisava ser um perito em psicologia para perceber que ela não parecia nada bem.
-Mariana, fique calma e me conta o que está acontecendo.
Afastaram-se para o canto da calçada, a fim de não atrapalharem o fluxo de pedestres que iam e vinham.
-Eu me sinto tão envergonhada...- Mariana deixou escapar um soluço- E estou com tanto medo. Estou indo me encontrar com... meu chefe. O Vicente.
-Vicente Montenegro? Está trabalhando para ele, agora?
Ela assentiu.
-Ele tem me feito propostas... indecorosas desde que comecei a trabalhar lá. Eu sempre me saí muito bem deixando claro que não teria nada com ele, até porque ambos somos comprometidos. Mas ele... Ele não liga para nada disso. Hoje de manhã ele me presenteou com esse vestido e disse que era pra eu usar à noite. Disse que me daria um apartamento se eu...- Ela não conseguiu completar a frase, mas Jader entendeu perfeitamente.
-Então eu disse à ele que não era nenhuma prostituta para fazer algo assim, mas ele...
-Ele o quê, Mariana? Me conta!
Mariana se lembrou do que havia acontecido em seguida, após sua recusa. A cena não saía de sua cabeça.
Vicente havia sido mais rápido, antes que ela conseguisse sair da sala de reuniões.
-Você acha que pode recusar uma proposta dessas, assim?- Ele a puxou pelo braço, fechando novamente a porta.
Mariana teve medo ao olhar nos olhos injetados de fúria do homem à sua frente.
-Ninguém me diz não, Mariana. Você está me entendendo? Ninguém!
-Me desculpe, mas eu não quero esse apartamento, nem nada...- Sua voz e seu corpo tremiam e ela não conseguia formular bem a frase.
-Já não estamos falando sobre o apartamento. Eu quero você, Mariana- Vicente sussurrou ao pé do ouvido dela e a moça sentiu um arrepio ruim.
-Mas eu não quero!- Quase gritou, louca para se livrar daquelas mãos ao redor de seu corpo.
-Mariana, Mariana- Ele disse, olhando-a como se ela fosse uma garotinha rebelde- Você não me subestime.
-Deixa eu sair, por favor...- Ela implorou, à beira do choro.
Ele a ignorou.
-Eu investiguei toda a sua vida, Mariana. Sei onde você morava e sei que o seu pai, ainda mora lá. Eu vou deixar você sair- Ele a soltou, de repente.- Mas se não aparecer naquele apartamento hoje à noite, não se espante se nunca mais ver o seu pai vivo.
Jader observou a amiga, com pena e intimamente amaldiçoou Vicente Montenegro. Sabia que não era nenhum santo, mas a forma como o sogro, ou ex sogro agia, beirava a crueldade.
-Ele ameaçou matar o meu pai!- Mariana soluçou- Aquele filho da mãe me disse com todas as letras que mataria o meu pai se eu não fosse me encontrar com ele. É por isso que eu estou vestindo essa porcaria de roupa que ele me deu e estou procurando a droga do apartamento, que fica em algum lugar aqui por perto.
Jader sabia que se tinha se deparado com ela ali, não havia sido em vão. Ele precisava fazer alguma coisa.
-Não, Mari. Não faz isso- Pediu, tocando em seus ombros trêmulos.
-Como não?- Ela ergueu seus olhos lacrimejantes para ele.- Se eu não fizer isso...
-Eu já sei, ele te ameaçou e ameaçou o seu pai. Mas não se entregue tão fácil assim. Não ponha em risco a história linda que você está começando com o Martín. Você pode se arrepender amargamente depois e acredite, eu sei do que estou falando. Mas não ceda às ameaças dele.
-O que eu faço, então?
Jader pensou um pouco.
-À que horas marcaram de se encontrar nesse apartamento?
-Às sete e meia.
Jader consultou o relógio em seu pulso, rapidamente.
-Agora ainda são seis e quarenta. É provável que esteja te esperando ou talvez nem ele mesmo tenha chegado. Vamos fazer o seguinte: vem comigo. Meu carro está logo ali. A gente vai até a sua casa e de lá, levamos o seu pai para a ONG. Não consigo pensar em melhor lugar para ele ficar, pelo menos por enquanto. Ele vai estar seguro na ONG. E depois, a gente vê o que faz.
Mariana o olhou com olhos esperançosos.
-Tem razão.
Jader estendeu a mão para ela, ajudando-a a se equilibrar sobre os saltos, e caminharam juntos até o carro.
🍷
Levaram cerca de meia hora para chegar até a casa pintada de um branco desbotado.
Jader mal havia estacionado e Mariana já pulava para fora, correndo até a casa.
Não importando o quanto o pai a tivesse feito sofrer ao expulsá-la de casa, ela ainda o amava e não se perdoaria se, por sua causa, algo acontecesse com ele.
Irrompeu pela porta, que estava apenas encostada, e ao vê-lo ali, vivo e inteiro, sentado no sofá enquanto assistia à televisão, lançou os braços ao seu redor, num abraço que demonstrava medo e alívio, simultaneamente.
Jader apontou na soleira da porta, também certificando-se de que estava tudo bem.
-Mas o que é isso?- Élio indagou, obviamente sem entender o que estava acontecendo.
Mariana percebeu, com alívio redobrado, que ele estava sóbrio.
-Pai! Preciso pedir que venha conosco para a ONG, agora- Ela disse, rogando aos céus mentalmente que aquilo não fosse tão difícil.
-Ir para a ONG? Por quê? O que aconteceu?- O homem perguntou, visivelmente irritado e incomodado.
-Eu prometo explicar tudo, se o senhor vier conosco. Não precisa se preocupar com nada, apenas pegue seus documentos.
Mariana fez sinal para Jader ficar de olho em seu pai e desapareceu por alguns minutos em um dos quartos da casa.
Ao voltar, estava sem o vestido vermelho. Usava uma calça moletom de cor cinza e uma de suas antigas blusas, que havia ficado ali. Sentia-se consideravelmente bem melhor agora.
-Em que furada foi que você se meteu, Mariana?- O pai perguntou, ao vê-la.
-Não me meti em nenhuma furada, pai. Por favor, uma única vez na vida confie em mim e venha para a ONG, com a gente.
-Seu Élio, pelo seu próprio bem, ouça sua filha- Jader interveio.
Levaram mais alguns minutos, até o convencerem.
Somente quando estavam os três dentro do carro e Jader dirigia em direção à ONG, foi que Mariana se permitiu ficar um pouco mais sossegada.
🍷
No apartamento, a poucas quadras de distância do prédio da empresa de publicidade, Vicente andava de um lado para o outro na sala enorme e de poucos móveis. Estava furioso.
Olhou o relógio. Faltavam poucos minutos para as oito horas da noite e nada. Mariana não havia aparecido.
Chutou com raiva acentuada uma caixa vazia de um eletrodoméstico qualquer, para longe.
"Ah, Mariana! Você não devia me subestimar tanto assim."
Seus pensamentos furiosos tornavam-se cada vez mais descontrolados, enquanto ele saía do apartamento, descia pelo elevador e até ao entrar em seu carro, dando partida até o endereço que havia descoberto.
Dirigiu centrado e, pegando seu telefone, contatou um dos seus homens de confiança.
-Está livre, não é?- Ouviu por um segundo- Pois bem, fique de olho no telefone. Posso te ligar a qualquer momento para que você cuide de um certo problema para mim.
Com isso, desligou o telefone, percebendo que se aproximava da casinha onde Mariana havia morado antes das gêmeas entrarem em sua vida.
-Que lugarzinho mais vagabundo...- Disse, crispando os lábios, enquanto saía do carro.
Vicente Montenegro sabia que deveria ser o tipo de homem que mandava fazer e não o que fazia.
Ele, contudo, não conseguia agir assim. Precisava estar muito ocupado para não fazer ele mesmo justiça com as próprias mãos. E ele adorava. Adorava ver o medo ou o pavor no rosto das pessoas. Dava à ele uma sensação deliciosa de poder e controle, que certamente não sentiria se mandasse os seus homens fazerem tudo por ele. À eles, dava apenas a missão de se livrarem do problema, depois que este já não fosse mais um problema vivo.
Já diante da casa, bateu com força na porta de madeira e percebeu que não teria problema caso tivesse que arrombá-la para ver o velho filho da puta bêbado que era o pai de Mariana.
Ia estender a mão pela segunda vez para bater com mais força, quando ouviu:
-Não tem ninguém aí. Eles saíram.
Vicente se virou.
Quem falara com ele era uma garota. Uma adolescente, por assim dizer. Pele negra, cabelos encaracolados e um tanto quanto curtos. Ela olhava para ele com curiosidade óbvia. Talvez pelo carrão parado logo ali, ou as roupas chiques que o homem usava.
A última vez que vira alguém assim ali havia sido há muitos meses atrás. Era uma moça igualmente chique e tão determinada quanto aquele homem parecia estar.
-Qual é o seu nome?- Vicente perguntou para a garota.
-Lara- Ela respondeu, com simplicidade.
-Você mora por aqui?- Ele quis saber, olhando ao redor.
-Moro, sim. Logo ali. Moro com a minha mãe.
-E quantos anos você tem, Lara?
-Quatorze.
"Um pouco nova demais."
Mas era bonitinha, mesmo assim.
Então Mariana, além de não ter aparecido para encontrá-lo no apartamento, ainda havia dado um jeito de tirar o pai daquela casa caindo aos pedaços.
Para onde teria o levado?
Bem, isso não importava mais. Não quando tinha uma menina chamada Lara o fitando com aqueles olhos grandes e curiosos.
-Então, Lara- Ele disse, se afastando da porta- É uma pena que o morador desta casa não esteja aqui. Parece que hoje é seu dia de sorte.
-Meu dia de sorte...?- A garota não entendeu.
Um brilho estranho refulgiu nos olhos de Vicente. Sentia-se impelido pelos pensamentos sórdidos que lhe ocorriam.
Mas fazer o quê? Se Mariana não quisera, alguém haveria de querer.
Aproximou-se mais da menina e perguntou:
-Gostaria de ganhar um apartamento, Lara?
🍷
Na casa dos Foster, dona Cristina foi abrir a porta, após ouvir a campanhia. Já havia escurecido totalmente e, contra o brilho das luzes dos postes da rua, ela viu a moça de olhos gentis e uma espécie de brinco no nariz, querendo confirmar se era ali que Doralice morava.
-É aqui, sim.
-Que bom que acertei. Muito prazer- Ela estendeu a mão- Me chamo Rafaela e sou... uma amiga da Doralice, se é que posso me considerar assim.
Dona Cristina sorriu, achando-a bastante simpática.
-Ela me falou sobre você, Rafaela. Pode entrar. A Doralice está no quarto.- A mãe fez uma expressão um tanto quanto consternada.- Ela não tem saído muito de lá desde...
Rafaela assentiu, sem precisar ouvir o restante da frase.
-Eu sei. Será que eu posso vê-la um pouco? Não pretendo demorar.
-Imagina, pode sim. Acho que fará muito bem à ela, ver alguém. Fique à vontade, por favor.
Rafaela sorriu mais uma vez.
-Obrigada.
Dona Cristina indicou a direção do quarto da filha e observou a moça se afastar.
Três batidinhas na porta e Rafaela ouviu um "entre" baixo e fraco.
Doralice estava deitada na cama, enquanto lia.
Surpreendeu-se com a visita porque não esperava que Rafaela fosse de fato visitá-la. Mas ali estava ela.
-Como você está se sentindo?- Rafaela se sentou na cama, próximo à ela.
-Tem um buraco no meu peito.
Doralice sabia que podia estar soando dramática demais, mas a verdade era que depois da morte de Ana Lúcia era exatamente daquela forma que se sentia: como se estivesse faltando alguma coisa, alguma coisa essencial e importante.
Tudo havia começado com a descoberta da doença. Antes do tumor, elas viviam boa parte do tempo juntas, na ONG, fazendo compras ou simplesmente desfrutando da companhia uma da outra. Mas a partir do momento que o tumor foi descoberto, ela começou a perdê-la aos poucos.
E agora, definitivamente, não havia mais Ana Lúcia, nem seu sorriso perfeito, ou seu jeito doce e delicado de ser que a fazia querer ficar por horas apenas observando-a.
-Ela me faz tanta falta...- Inevitavelmente, sentiu que soluçava.
-Ei, calma.- Rafaela a puxou para um abraço, no intuito de consolá-la.
-Eu nunca pensei que poderia gostar tanto assim de uma pessoa- A voz de Doralice saiu abafada pelo tecido da blusa azul que Rafaela usava.
-Muito menos achei que ela iria...- Doralice sacudiu a cabeça- Eu realmente acreditava que ela iria se curar.
-Eu sei, eu vi nos seus olhos aquele dia que você tinha esperança de que a Ana Lúcia ficasse bem.
Rafaela jamais pensou que sentiria tamanha empatia por alguém que, em outra situação, poderia ser considerada como uma possível rival. Mas desde o primeiro momento em que a vira na galeria, fitando os quadros, com aquela expressão distante e melancólica, soube que não poderia ficar indiferente.
Agora, ao vê-la chorar, gostaria de poder sugar para si toda aquela tristeza.
-Sabe- disse, enquanto enxugava-lhe algumas poucas lágrimas que haviam caído- Eu também perdi uma pessoa especial para mim. O meu pai morreu há três anos, depois de complicações no coração. Eu o amava muito e por um momento pensei que não fosse suportar viver sem ele.
-Eu sinto muito- Doralice murmurou.
-O que quero dizer é que não podemos mudar ou interferir neste tipo de coisa. Não cabe à nós. Sofremos, é claro. Ei- Ela ergueu o queixo de Doralice com uma de suas mãos- A saudade é eterna, mas a dor passa. Vai passar.
Doralice se permitiu ser abraçada mais uma vez.
Depois de conseguir fazer com que a amiga cessasse o choro, Rafaela se levantou e pôs-se a observar alguns dos quadros, espalhados pelo quarto.
-Meu chefe não mentiu. Você realmente manda super bem na pintura- Ela virou-se para olhar para Doralice- Poderia facilmente viver disso. Só precisa da assessoria certa.
-Você realmente acha isso?- Doralice sorriu, com os olhos vermelhos, em razão do choro.
-Ah, eu acho sim- Rafaela voltou, sentando-se novamente ao lado dela- Já posso até ver seus quadros sendo anunciados em algum jornal ou revista, assim: "Doralice Foster, o mais novo talento do meio artístico."
Doralice revirou os olhos e a empurrou, de leve.
-Para com isso!
-Mas é a verdade. Você vai ser um sucesso. Não é por nada, mas eu vou ter o maior orgulho de poder falar: "Estão vendo essa moça bonita aí que pinta quadros e é super famosa? Então, ela é minha amiga."
Doralice se levantou, ficando em pé em frente à ela.
-Bonita! Até parece.
-Por quê? Não se acha bonita?
-Você acha?
Ainda sentada na cama, Rafaela a olhou de cima a baixo, fazendo a mesma constatação que fizera ao vê-la na galeria.
-Acho. É como dizem por aí, você é mó gata.
Doralice não pôde evitar uma boa gargalhada.
-Meu Deus! Você elogiando parece aqueles caras quando estão a fim de conquistar uma garota.
Rafaela riu e desviou o olhar, momentaneamente sem graça.
🍷
Mariana despertou naturalmente, antes que o despertador tocasse.
Observou Martín, ao seu lado, que ainda dormia, alheio aos movimentos dela.
Levantou-se, esfregando os olhos e observou que ainda faltava uma hora para o horário habitual em que levantavam para se aprontarem para o trabalho.
Entretanto, não conseguia mais dormir.
Conferiu as crianças; também dormiam.
Nem mesmo seu Benício, que costumava acordar antes deles, estava de pé.
Foi para a cozinha, arrastando os chinelos. Adiantaria o café da manhã para todos.
Na verdade, sua inquietação não era desproposital.
Lembrava-se da conversa tensa e complicada que tivera com Martín, assim que Jader a deixara em casa.
Na noite anterior, ao vê-la sair e dizer que tinha um assunto para resolver, ele não havia questionado. Adorava Analu e cuidar dela não era nenhum problema. O problema era que, ele dissera, esperava sinceramente que ela estivesse falando a verdade. De certa forma, estava.
Havia saído de casa com uma roupa comum. Na bolsa que levava consigo era que estava o mini vestido vermelho. Sentindo-se como uma verdadeira criminosa, havia trocado de roupa em um banheiro público.
Sua mente lhe acusava. Martín não merecia aquilo, dona Eleanor não merecia aquilo. Mas então... deixaria o pai nas mãos de Vicente Montenegro? Ele parecia falar sério ao dizer que poderia fazer mal ao seu pai.
Por uma sorte tremenda e absurda, pudera contar com a ajuda de Jader que, mesmo parecendo completamente tomado pelos seus próprios problemas, não hesitou em ajudá-la.
Seu pai estava são, salvo e seguro na ONG. Pretendia trazê-lo pelo menos temporariamente para ficar com eles, mas o que de fato havia afligido-a fora o olhar questionador de Martín.
Mariana pesou os prós e os contras.
Se contasse para ele que estava sendo assediada pelo chefe, não sabia o que ele iria fazer. Realmente não sabia, porque se existia algum lado extremamente protetor ou possessivo em Martín, ela ainda não conhecia. Até então ele era apenas um namorado gentil, romântico e atencioso, o que para ela era um verdadeiro sonho.
No entanto, que homem ficaria impassível ao descobrir que sua namorada está sendo ameaçada de certa forma?
Por outro lado, os dois precisavam daquele emprego. Não podiam dar-se ao luxo de saírem da Vinícola- caso aquela situação se tornasse insustentável- e ficarem ambos desempregados, com duas crianças para cuidarem, além das despesas da casa.
Além disso, haveriam os gastos com a formatura de Martín, que em breve se tornaria um enólogo graduado.
Não, não podiam simplesmente sair do emprego.
Foi pensando dessa forma que Mariana o abraçou, o mais forte que pôde, disse que estava tudo bem e pediu que ele apenas confiasse nela.
Martín sabia que já a amava mais do que já havia amado qualquer pessoa em toda a sua vida. Mariana e as crianças agora eram a razão pela qual ele tinha orgulho de dizer que estava formando uma família.
Se você ama tanto alguém e este alguém lhe pede que apenas confie, o que você faz?
Martín retribuiu o abraço de Mariana, afagando-a com carinho, tentando fazê-la parar de tremer. Queria que ela soubesse que ele era o tipo de homem com o qual ela poderia contar.
Martín decidiu confiar.
🍷
Respirando fundo e preparando-se para a torrente de xingamentos que achava que escutaria, Mariana abriu a porta sem nem mesmo bater (para não perder a coragem) e, deixando o bom dia de lado, disse:
-Sei que não fui ao seu encontro ontem à noite e você deve estar furioso. Mas caí em mim antes de fazer isso e pensei melhor. Eu mesma irei me demitir se continuar a ser assediada.
Colocou o embrulho com o vestido dentro em cima da mesa, esperando que ele não notasse o quanto suas mãos tremiam.
"Droga de tremor!"
Mariana esperava que soasse decidida, porque a última coisa que queria era sair do trabalho, quando mal começara.
Vicente olhou dela para o embrulho vermelho e sacudiu a cabeça, surpreendendo-a com sua resposta:
-Está tudo bem, Mari. Não importa que você não tenha ido ao apartamento ontem, não mais- Ele sorriu- A minha noite foi boa, de qualquer jeito. Eu me diverti bastante.
Mariana não era a pessoa mais intuitiva do mundo, mas uma coisa em seu íntimo lhe dizia que havia algo muito, muito errado.
🍷
O dia parecia se alongar de propósito, para que ela estivesse ali. O crepúsculo chegava aos poucos, como quem não tem pressa e era exatamente assim que Anabella caminhava por entre os túmulos e lápides, com o buquê de flores em suas mãos.
Depois de tantos dias, ela finalmente criara coragem para ir até o túmulo da irmã.
Havia estudado e trabalhado o dia todo; mas nenhum cansaço- físico ou mental- seria capaz de impedir que fosse até lá. Queria, precisava.
A três metros de distância, percebeu que alguém já estava lá.
Ela o observou. Pelo modo como estava, apenas fitando o lugar, com o olhar distante, deduziu que ele talvez já estivesse ali há horas.
Jader viu Anabella ajoelhar-se ao seu lado, colocando as flores timidamente sobre o granito do túmulo.
Permaneceram calados por longos momentos à fio. Cada um com seus pensamentos e sentimentos, mas que, no final das contas, resumiam-se à uma pessoa: Ana Lúcia.
Anabella engoliu em seco ao ver o nome ali, entalhado.
"Ana Lúcia Montenegro, 1994-2015."
Era tão estranho pensar que Ana Lúcia estava ali, alguns palmos à baixo, sem vida. Seus batimentos se aceleravam de forma que chegavam à sufocá-la. Doía muito. E então lá estava ela, chorando mais uma vez.
A Ana não. Não ela. Tão boa e sorridente. Tão sonhadora e gentil.
Outra vez, desejou estar no lugar da irmã.
"Pensei que eu era forte, Ana. Mas talvez, se tivesse sido eu a partir, você saberia melhor do que eu como seguir em frente. Já eu, eu... me sinto fraca demais. E sei que Jader se sente da mesma forma."
-Ela faz tanta falta...
Jader demorou a se dar conta de que era com ele que Anabella falava. Ela não lhe dirigia a palavra muito antes de... Bom, era compreensível.
Ele concordou.
-Não sei em qual coração a dor é mais intensa, no seu ou no meu. Você era irmã dela, conviveram juntas a vida toda e eu... mesmo tendo a amado muito, não sei se foi suficiente depois do que eu fiz.
-Depois do que nós fizemos.
Jader a olhou. Anabella não desviou os olhos, mantendo-os firmes, como se assim, pudesse também se manter firme ao assumir seu lugar de culpa.
Jader sentiu vontade de chorar, ao olhá-la. Anabella não parecia o tipo de pessoa que despertava pena nas pessoas e sim uma admiração carregada às vezes de certo temor.
Mas, naquele momento, Jader sentiu que ela carregava consigo o fardo de não conseguir ou não querer seguir em frente, simplesmente porque se considerava culpada demais para levar sua vida adiante.
Então a Anabella que não se deixava abater era, de repente, a Anabella que queria se manter quieta e escondida.
Mas não por muito tempo, embora nenhum dos dois soubessem disso naquele dia.
Minutos depois, enquanto saíam juntos do cemitério, Jader recebeu uma ligação de Sérgio.
Ao desligar, Anabella notou como ele parecia perturbado e envergonhado.
-Aconteceu alguma coisa?- Perguntou.
Jader pareceu ainda mais envergonhado, ao responder:
-Sérgio disse que mandou todas as minhas coisas em um táxi para a casa dos meus pais. Disse que eu não preciso mais voltar para o apartamento.
-Mas por quê? Vocês dois não pagam o aluguel, juntos?
-Por isso mesmo. Ele acha que não vou ter como arcar com a minha parte.
-E por que não?
-Eu fui despedido ontem.
-Ah- Anabella entendeu tudo, por fim- Eu sinto muito.
-Tudo bem.
Obviamente aquela era uma desculpa esfarrapada de Sérgio para chutá-lo para fora, pois Jader tinha como pagar aquele aluguel até sozinho se quisesse, com o dinheiro que receberia do seguro.
Mas, claro, não iria discutir, nem brigar. Pouparia seu dinheiro, ou o usaria para coisas mais importantes.
-Eu tenho que ir- disse- Preciso estar em casa, antes que meus pais estranhem todas as minhas coisas chegando lá de repente, em um táxi.
-É, eu também vou indo. Eu, ahn...- Anabela pôs uma mecha de cabelo atrás da orelha, sem saber o que dizer- Boa sorte pra você.
-Obrigado.
Jader a observou entrar em seu Maserati cinza e partir.
Demorou alguns segundos preso em seus pensamentos até finalmente entrar também em seu carro e sair dali.
🍷
Vicente estacionou seu carro na garagem e entrou em casa, afrouxando o nó da gravata.
Sabia que chegaria antes de Anabella pois, ao sair da Vinícola não a vira tomar o rumo de casa; provavelmente estava fazendo hora pelo pub.
Bom, ele só queria tomar um banho e descansar.
-Eleanor?- Chamou, enquanto subia a escada em direção ao quarto.
A esposa geralmente o esperava na sala, cheia de abraços e beijos, perguntando-lhe como havia sido o seu dia.
-Querida?- Ele parou na porta do quarto.
Eleanor estava sentada na cama, com o computador portátil à sua frente; o rosto e ombros caídos, enquanto, aparentemente, chorava baixinho.
"Sofrendo pela Ana Lúcia, como sempre" Vicente suspirou e entrou no quarto.
-Querida, chorando de novo?- Ele tentou acariciar sua cabeça, mas sua mão foi abruptamente afastada.
-Não encosta em mim!- A mulher levantou a cabeça e ele viu que, além de triste, ela estava furiosa.
-Por quê? O que eu fiz?
-Isso! Foi isso o que você fez!!!- Eleanor virou a tela do computador para ele, e Vicente começou a suar frio ao ver as fotos que ela lhe mostrava.
Ele e Susan, juntos. Explicitamente juntos.
〰〰〰〰〰
Desculpem pelo capítulo longo!
Beijos!😘
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