Capítulo 46
Jader sabia muito bem que a partir daquele momento tudo o que ele julgava sobre si mesmo estivera errado, até então.
Quem era Jader Foster, afinal? Apenas mais um babaca infeliz habitando a face da terra? Tudo o que acreditava havia sido derrubado por si mesmo, num momento de loucura total e incompreensível.
Havia repugnado a atitude de Vicente, mas agora, ali estava agindo da mesma forma.
Hipócrita.
Foi a palavra que lhe veio em mente.
Ambos interromperam o beijo ao mesmo tempo, como se se dessem conta simultaneamente de que aquilo era uma loucura extremamente errada e incabível em suas realidades.
Jader se afastou, fitando Anabella, esperando que ela vissem em seu olhar o pedido de perdão e sua aflição. No entanto, ela não viu. Permaneceu com seus olhos fechados, enquanto se mantinha colada à parede, imóvel, como se temesse que a qualquer mínimo movimento seu corpo pudesse se chocar ao dele, novamente. Ela tremia, involuntariamente.
Jader ia abrir a boca para tentar formular uma frase no mínimo coerente, quando Eleanor apareceu, à procura de Anabella.
-Filha, parabéns!- Exclamou, se apressando para abraçá-la.- Você foi incrível! Estava linda! Ohh, meu amor, não faça essa carinha. Você foi muito bem.
Anabella aproveitou o abraço da mãe para esconder o rosto.
-Jader está aqui e não me deixa mentir, não é, Jader? A Bella não foi perfeita, na passarela?
Jader sentiu um nó na garganta ao perceber que Anabella se recusava a olhar para ele.
Apenas assentiu e, pedindo licença, se retirou dali.
🍷
Mais tarde, naquela noite, se reuniram novamente no restaurante do hotel, para o jantar.
O assunto em volta da mesa era o sucesso do desfile, embora a preocupação com o estado de saúde de Ana Lúcia pairasse constantemente no ar.
Ela dormia profundamente no quarto e por isso, o doutor Alessandro havia decidido se reunir com a família Montenegro e a assessora para o jantar.
-Se não estivesse estampado em seu rosto o quanto ficou desconfortável com essa situação, eu diria que você tem grandes chances de começar a modelar, Anabella.- Comentou Denise, contente por seu evento ter dado certo.
-Obrigada, mas é a última coisa que eu pensaria em fazer.- Ela respondeu em um tom de voz neutro.
-Ela não foi ruim, mas garanto que eu teria sido um pouco melhor, talvez.- Disse Virgínia, sentada ao lado de Jader.- Te falta uma certa graça natural, Anabella.
Virgínia apressou-se em se explicar, ao notar os olhares direcionados à ela:
-Isso é só a minha opinião. Não é nada pessoal!
-Eu acho que ela foi bem legal.- Vicente optou por defender a filha.
Anabella abaixou seus olhos para o prato à sua frente. Tudo o que mais desejava era que aquela noite acabasse logo e o dia seguinte chegasse. Então, estaria de volta para casa, estaria longe daquela cidade maldita onde só lhe acontecia coisas ruins.
Jader evitava olhá-la, assim como ela o evitava. Se sentia desconfortável e não conseguia mais olhar ninguém diretamente nos olhos. A culpa lhe corroía.
Virgínia segurou a mão dele por cima da mesa.
-Ei...- Ela disse, num tom suave.- Está tudo bem com você?
Jader olhou para ela. Virgínia sorria para ele e seus olhos o incitavam a contar para ela o que estava sentindo.
-Está.- Foi tudo o que conseguiu dizer.
"Está tudo errado, tudo mal." Completou, em pensamento.
-Eu estou aqui se você precisar conversar, tudo bem?- Virgínia apertou a mão dele, de forma suave, mas Jader puxou a mão de volta, colocando-a sobre o queixo, enquanto fitava a mesa, acabrunhado.
🍷
Ana Lúcia acabou acordando alguma horas depois. Sentia-se um pouco febril e dolorida, mas estava ansiosa para saber como havia sido o desfile.
-Já que Anabella não consegue contar, não sei porquê, eu vou te mostrar tudo, que é melhor!- Virgínia se sentou ao lado da prima, na cama, com o celular em mãos.
Anabella estava em uma cadeira e mordia constantemente os lábios, enquanto observava a irmã assistir o desfile em primeira mão pelo smartphone de Virgínia.
A culpa também arrasava seu coração e destruía sua mente.
Não se reconhecia. Onde estava aquela Anabella implacável que não se deixava levar nem cedia à desejos fúteis?
-Bella... Estou tão orgulhosa de você.- Ouviu Ana Lúcia dizer.- Você desfilou, mesmo sem nunca ter pisado em uma passarela antes. Você provavelmente estava se sentindo desconfortável, mas mesmo assim fez isso por mim. Vem cá.
Anabella se aproximou e se inclinou para receber o abraço da irmã.
Ana Lúcia a abraçou, com carinho, afagando-lhe as costas.
-Você esteve demais. Estava linda, linda! Você é a melhor irmã do mundo. Muito obrigada.
Anabella apoiou sua cabeça no ombro da irmã e ao olhar para Virgínia, percebeu que ela ria, em silêncio, observando-a com um ar zombeteiro.
Anabella escolheu ignorar aquilo, em nome da sua sanidade mental.
Minutos mais tarde, após se despedir da irmã para deixá-la descansar, estava prestes a entrar em seu quarto, quando Virgínia apareceu no corredor.
-Espera aí, Bella. Precisamos bater um papinho.
-O que foi agora, Virgínia?
-Você é mesmo uma cínica, não é?- A prima se aproximou.- Uma tremenda de uma falsa e cínica.
Anabella cerrou os punhos.
-Você me chamou do quê, sua...
-Mas uma pessoa que beija o noivo da irmã é o quê, agora? A pessoa vira santa e eu não estou sabendo??
Anabella estacou.
-Como você sabe disso?
-Eu não só sei, como filmei o beijo de vocês.- Virgínia ergueu o telefone à altura dos olhos de ambas, apertou o play e Anabella desejou ardorosamente que um buraco se abrisse no chão.
Ela sequer conseguiu olhar para a tela do celular.
-E então, Anabella? Me diz o que você acha disso aqui? Você acha bonito, ou louvável o que você fez? Você não merece a irmã que tem.
Virgínia parecia se esquecer da participação de Jader naquele acontecimento e seus julgamentos eram unicamente direcionados à prima.
-Apaga isso.
-Nunca!- Virgínia exclamou e soltou uma risada.- Esse vídeo será o meu trunfo. Vou usar ele, futuramente, você pode ter certeza.
-E você acha que vai ganhar o quê com isso?
-O Jader, querida!
Anabella a fitou, incrédula.
-Você é doente.
Virgínia sorriu.
-Se sou, não sei. Mas vou usar esse vídeo a meu favor. E quanto à você...- Virgínia a olhou de baixo para cima- Espero que você se ferre muito ainda nesta vida.
Anabella observou-a sair andando calmamente pelo corredor, sentindo um nó se formar em sua garganta.
🍷
O relógio de Martín marcava vinte minutos para as duas horas da manhã, quando Mariana acordou, num sobressalto. Tateou com a mão à procura da filha, mas ao se dar conta de que o que tocava era o peitoral nu de Martín, lembrou-se de que era na casa dele que estava.
Haviam dormido juntos!
Devido ao movimento brusco que fizera, acabou por despertá-lo também.
Martín se virou para ela, coçando os olhos, na semi escuridão do quarto.
-A gente dormiu...- Murmurou, com a voz arranhada.
-Pois é, eu perdi a hora! Já era pra eu estar na ONG.- Mariana pôs a mão na testa.
-Calma- Martín a puxou, para que se deitasse sobre seu braço.- Está tudo bem, daqui a pouco eu te levo. Deixa só a minha alma voltar para o corpo...
Mariana não pôde evitar de dar uma risada, mesmo que contida.
Pôs-se a refletir, com os olhos pregados no teto, que aos poucos se tornava mais visível, à medida que seus olhos se acostumavam à pouca claridade do quarto.
Dali a poucos minutos, disse:
-Eu quebrei uma promessa que tinha feito para mim mesma.
-Qual?- Martín se mostrou interessado.
-Depois de ter engravidado de um cara que eu mal conhecia, eu prometi para mim mesma que jamais voltaria a me deitar com alguém, se não estivesse em um relacionamento sério.
Houve uma pausa e um suspiro.
-E olha eu aqui quebrando a minha própria promessa...
Martín também fitava o teto. Sabia que o que diria a seguir poderia ter um peso e um significado muito grandes para Mariana e para si mesmo.
-A gente só não vai estar em um relacionamento sério a partir de agora se você não quiser.
Mariana se virou para olhá-lo, por mais que o máximo que conseguisse enxergar fossem alguns contornos de seu rosto.
-Está falando sério, Martín?
Ele encontrou a mão dela e a entrelaçou à dele.
-Se você aceitar, sim.
Mariana sorriu e o beijou, subindo em seu colo.
-Eu aceito!
Martín agarrou seus quadris, enquanto também a beijava, sentindo sua excitação voltar ao tê-la em seu colo.
-Eu sei que você vai me fazer muito feliz...- Murmurou, convicto.
-Pode ter certeza que sim.
Entregaram-se um ao outro ainda uma última vez, antes de Mariana finalmente ir embora.
🍷
Assim que pisou na entrada, ouviu o som do choro de Analu, que a cuidadora Lílian tentava a todo custo acalmar.
Mariana correu até a cozinha da ONG, para onde a mulher havia descido no intuito de evitar que o choro da pequena acordasse as demais crianças.
-Graças a Deus, até que enfim! Ela acordou e mesmo depois da mamadeira não parou de chorar!- Lílian a entregou a menina.
-Shhh, meu amor... Está tudo bem, mamãe está aqui.- Mariana acalentou a filha, deitando-a sobre seu ombro.
-Mariana, você disse que chegaria no máximo às onze! Nunca te ensinaram sobre responsabilidade?
-Me desculpa mesmo, Lílian. Não foi minha intenção me atrasar, eu só...
-Você só achou uma trouxa aqui, que no caso sou eu, para ficar cuidando da sua filha, enquanto você se diverte por aí, despreocupada, não é mesmo?
-N-não, Lílian. Eu jamais...
A mulher a interrompia sem parar.
-O meu trabalho voluntário nessa ONG consiste somente em cuidar das crianças que foram acolhidas aqui, pela generosidade da Ana Lúcia, e não ficar acordada em plena madrugada tentando fazer um bebê que nem é meu, parar de chorar!
-Eu sinto muito.
-Eu quero que fique claro que a minha obrigação aqui é cuidar das outras crianças, mas a sua filha é responsabilidade sua e unicamente sua! Você entendeu??
Mariana assentiu, engolindo em seco.
-Sim, entendi. Me desculpa, Lílian.
-Ótimo! Agora com licença, eu vou dormir porque estou exausta.
Mariana observou a mulher se retirar e abraçou Analu, que já estava quietinha.
-Me desculpa também, filha... A mamãe promete que não vai mais deixar isso acontecer.- Sua voz estava embargada.- Eu te amo.
E aquela sim era uma promessa que jamais pretendia quebrar.
🍷
A família Montenegro desembarcou no aeroporto de Vitória às oito e vinte e sete da manhã, depois de um vôo complicado, devido à novas convulsões e febre alta que Ana Lúcia havia voltado a sentir.
Poucos minutos depois de pousarem, um carro os levou para São Bento do Amaral, onde o doutor Alessandro pretendia mantê-la internada, no hospital.
Dona Eleanor, incapaz de se separar da filha, seguiu com eles, assim como Vicente.
Os quatro jovens que ficaram no aeroporto pareciam não saberem o que fazer, momentaneamente.
-Coitada da Ana Lúcia...- Doralice tinha os olhos vermelhos e inchados.- Eu detesto vê-la daquele jeito. Por favor, meu Deus, que tudo ocorra bem...
-Calma, ela vai ficar bem, sim.- Jader a abraçou, sufocando o próprio choro. Ele estava vendo seu mundo desmoronar e não sabia o que fazer.
Lutar contra os próprios sentimentos é uma batalha perdida; tudo o que se pode fazer é controlar as ações. Jader gostaria de ter sido racional e ter se controlado. Mas agora, lhe parecia tarde. Tarde para ele e tarde para Anabella.
Ele a viu um pouco mais adiante, parecendo pensar no que fazer e resolveu tentar uma aproximação, enquanto Virgínia foi conversar com Doralice.
Jader sentiu um suor frio lhe escorrer pela testa e seus dedos tremeram.
-Me perdoa.- Sua voz saiu lenta e baixa.
Anabella abaixou a cabeça, evitando olhá-lo.
Ela não se achava digna de perdoar ninguém, muito menos de ser perdoada. Só sabia que todo seu ser ardia em vergonha e desgosto.
-Foi tão errado...- Ela sussurrou, mais para si mesma do que para ele.
-Eu sei. Minha cabeça diz que foi errado, mas meu coração...
-Não fala! Não fala!- Anabella o encarou.
Virgínia se aproximou, olhando de um para o outro com curiosidade e um certo divertimento.
-Tudo bem por aqui, pessoal?- Virgínia não esperou por respostas.- Temos que ir, né? Vamos todos de táxi.
-Claro...- Jader respondeu, vagamente.
-Vocês podem ir, juntos. Eu vou sozinha- Anabella disse e rapidamente, sem dá-los tempo para refutar, saiu andando.
🍷
Depois de longas horas de exames e internamento, doutor Alessandro chamou Eleanor em sua sala para conversar, a fim de dar um parecer.
-Doutor, antes de começar, só quero te pedir que me diga a absoluta verdade e não me esconda nada, por favor. A situação já é difícil demais e não quero lidar com isso com a mente rodeada de dúvidas. Qual é o real estado de saúde da minha filha?
O médico cruzou as mãos em cima de sua mesa.
-Infelizmente houve a recidiva. Detectamos células tumorais que haviam resistido à cirurgia e com o passar dos dias elas se multiplicaram. Por serem micro metástases, elas são invisíveis a olho nú e não são detectáveis pelos exames de imagem modernos. Por isso não soubemos antes.
Eleanor colocou as duas mãos na cabeça. Cada palavra do médico era como uma adaga afiada em seu coração.
-Dona Eleanor, sendo o mais verdadeiro possível como a senhora pediu, é muito raro um câncer cerebral atingir outros órgãos, pois geralmente acontece o contrário, mas no caso de Ana Lúcia em específico eu acredito que possa sim, acontecer.
Sentindo suas forcas se esgotarem, Eleanor perguntou o que haveriam então de fazer.
-Bom, recomeçaremos o tratamento, dessa vez com sessões de quimioterapia e radioterapia, na esperança de que possamos conseguir acabar com essas células cancerígenas. E fora isso, só nos resta esperar.
-Isso é tudo?
-Sim, senhora.
Eleanor abaixou a cabeça, fitando o chão da sala do médico.
Suas entranhas se reviravam de angústia e seus pensamentos eram atormentadores.
"Você vai perdê-la. Você sabe que vai."
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