
Capítulo 03
Sem precisar firmar as vistas porque já sabia muito bem quem estava ali, ela cruzou os braços.
-Martín.
O recém chegado se aproximou, andando bastante à vontade, com as mãos enfiadas nos bolsos da calça que usava.
-Venta bastante aqui em cima, não é?
Ela o olhava, sem descruzar os braços.
Martín era um conhecido da família.
Seu pai havia sido um antigo gerente na vinícola há alguns anos e a mãe... bem, nunca chegaram a conhecê-la.
Devido aos constantes jantares e eventos sociais que o pai participava na companhia dos Montenegro e nos quais Martín sempre o acompanhava, acabou adquirindo certa proximidade com as gêmeas. Ou pelo menos, ele achava que tinha.
Ana Lúcia até se dava bem com ele, mas geralmente acabava sempre por ir brincar de boneca com as meninas. Já Anabella... esta nunca lhe dava bola.
-Por que você está aqui?- Anabella indagou, dando ênfase ao "aqui" porque estava intrigada com o fato dele ter ido justamente ao mirante.
-Bom, eu... basicamente segui você até aqui- ele respondeu, sincero.
-Você me seguiu por quê?- Os dentes brancos dela praticamente rangeram, como os de um cão bravo.
-Porque queria falar com você-Martín deu de ombros.
-Não tenho assuntos a tratar com você. Então, dê meia volta, suma e não apareça mais aqui.- Ela disse, sem querer saber de nada.
Martín nem de longe pareceu se abalar com a grosseria dela.
-Eu já disse que quero falar com você.
-E eu já disse pra você sumir.
-Não, até eu te falar o que quero falar. Custa você me ouvir um minuto? Prometo ser bem direto e sem rodeios.
Anabella respirou fundo e, querendo se livrar de mais aquele embuste em seu conturbado sábado, disse:
-Já que você surgiu sabe lá Deus de quais profundezas e interrompeu meu momento sagrado de paz, deve ter algum bom motivo, eu espero. Então, vamos lá. Um minuto. Estou te ouvindo.
Martín ajeitou com a mão o cabelo preto, extremamente liso e começou:
-Bom, você sabe que andei sumido por uns tempos. Eu saí daqui de São Bento assim que completei dezoito anos e fui morar e estudar no Rio Grande do Sul. Fiz especialização em Gestão Empresarial e também...- Ele fez um ar de mistério.- Comecei a estudar a enologia. Sim, sim. Eu agora conheço um bocado de coisas sobre vinhos. Minha meta é me tornar um enólogo profissional. Ainda estou terminando meus estudos nessa área, mas acho que chegou a hora de colocar o que tenho aprendido em prática. E, como voltei aqui pra São Bento pensei... Por que não pedir um emprego barra estágio na vinícola da minha grande amiga Anabella? Tenho certeza de que eu seria muito útil por lá.
Ele respirou fundo.
-É isso.
-Pelo que eu entendi, você está me pedindo um emprego, certo?
Ele abriu um sorriso.
-Isso!
Anabella descruzou os braços.
-Pois deixa eu te dizer algumas coisas. Em primeiro lugar, eu não queria saber o que você fez da sua vida nesses anos em que esteve fora, pois não me interessa. Em segundo lugar, não sou eu que contrato ninguém para trabalhar na vinícola. Portanto, se você quer um emprego, faça um currículo e deixe na empresa ou fale diretamente com o meu pai. E em terceiro, porém não menos importante, você gastou mais do que um minuto. Sendo assim, com licença que você já tomou muito do meu tempo.
Martín observou-a caminhar reta e de nariz empinado até o carro, embasbacado com a resposta seca dela.
-Espera, Anabella!- Correu e se pôs à frente dela.
-Mais alguma coisa, Martín?
-Sim! Eu disse que poderia ser útil. E estou falando sério.
-Eu também poderia ser útil e nem por isso estou lá.- Ela disse impassível entrando no carro e fechando a porta na cara dele.
Martín bateu no vidro, chamando a atenção dela.
Suspirando, Anabella abaixou os vidros, a contragosto.
-O que foi agora?
-Promete que vai pelo menos falar com o seu pai?
Revirando os olhos, ela deu a partida e saiu, num rastro de poeira.
Martín ali ficou, vendo o carro partir.
Incrivelmente, ele sorria.
Ela é marrenta, mas vai falar. Eu sei que vai." Pensou, enquanto ia de encontro a sua moto, estacionada ali por perto.
🍷
O ar na casa dos Montenegro estava alegre e animado na manhã de domingo, em expectativa à chegada, ou melhor dizendo na volta, de Ana Lúcia.
Dona Eleanor havia pedido à Cassandra, a cozinheira, que caprichasse no café da manhã e colocasse tudo o que a filha mais gostava.
Portanto, a mesa estava posta, com fartura.
Quando o táxi parou à porta e Ana Lúcia desceu, foi logo abraçada pela mãe, que mal se aguentava de saudades, embora o trabalho de modelo daquela vez tenha durado apenas quatro dias.
Vicente despachou logo o táxi e pegou as duas malas da filha, levando-as para dentro.
Anabella descia as escadas bocejando e revirando os olhos, irritada pela mãe tê-la feito levantar tão cedo, só por que a irmã estava chegando do Rio de Janeiro.
"E daí? É só mais uma das muitas viagens que Ana Lúcia faz." Pensou, enquanto descia.
-Oh meu Deus, é impressão minha ou você está com um brilho diferente no olhar, filha?- disse Eleanor, analisando o rosto da filha recém chegada.
Ana Lúcia riu, caminhando para a sala de jantar, onde a mesa posta com o café da manhã estava.
-Quê isso, mãe...- Desconversou.
Foram se sentar à mesa.
Anabella entrou também na sala, e se sentou, ao lado do pai.
-Bom dia, Bella- ele disse, sorrindo para ela e dando-lhe um beijo na testa.
Anabella só o olhou e tratou de pegar um pãozinho.
Ana Lúcia também sorriu para a irmã, mas Anabella estava com zero vontade de ser simpática logo pela manhã tão cedo, o que de certa forma não era tão incomum.
-Não, não.- Voltou a dizer Eleanor.- A intuição de uma mãe nunca falha. É um super poder. E minha intuição me diz que algo aconteceu com você, porque está com um aspecto um tanto quanto...
-Reluzente.- Completou o pai.
Ana Lúcia suspirou.
-Tudo bem. Eu não poderia e também não quero esconder nada de vocês.- Ela disse.
Todos estavam com os olhos fixos nela, interessados no que ela poderia ter a dizer, exceto Anabella, que se servia já da segunda xícara de café.
-Eu conheci um rapaz, durante o evento. O nome dele é Jader, ele é publicitário e estava trabalhando na campanha para a divulgação do desfile. Mas o mais importante é que...- Ela suspirou de novo.- Ele é gentil, educado, incrivelmente prestativo e é muito bonito também.
-Eu sabia!- A mãe sorriu, apertando o braço da filha, levemente, já que estavam sentadas lado a lado.
-Você parece ter gostado bastante desse rapaz, meu bem- disse o pai.
-Sim! E... o melhor é que acho que ele também gostou de mim.
-Filha, que bacana...
A mãe olhou para Anabella.
-O que acha, querida?- Perguntou.
Anabella ergueu as vistas.
-Cadê ele?- Perguntou, indiferente.
-O Jader? Bom...
O sorriso de Ana Lúcia se desvaneceu um pouco.
-Eu não sei bem. A gente conversou bastante e eu descobri que ele também é aqui de São Bento. Provavelmente mora não muito longe daqui. Ele disse que só pegaria o avião para Vitória hoje, mas ontem, quando o procurei para me despedir...
-O quê, minha filha?- Quis saber a mãe.
-Ele não estava mais no hotel. Ele sumiu, sei lá...
Ela estava visivelmente mais abatida à esta altura.
O pai e a mãe se entreolharam.
-Você obviamente caiu na lábia desse homem- disse Anabella.
-Não, mas ele pareceu tão sincero.- Ana Lúcia retrucou.
-Todos eles se fazem de sinceros. Esse tal de Jader provavelmente é um desses cafajestes. Deve ter dado em cima de você, você caiu como uma patinha e então ele deu o fora. Literalmente.- Anabella frisou, sem dó.
-Você fala como se fosse uma grande conhecedora da mente masculina.- O pai a encarou.
-Não, eu só sou realista e objetiva. Está mais do que claro que Ana Lúcia, boba como é, caiu no bom papo do tal de Jader.
-Eu não caí em papo nenhum! E nem sou boba.- Os bonitos olhos castanhos de Ana Lúcia já estavam marejados.- O Jader é um homem especial. Eu pude notar isso. É sério, mãe...
A mãe passou o braço pelo ombro da filha.
-Eu sei, meu amor. Eu sei...
-Acorda pra vida e deixa de ser ingênua, Ana Lúcia! Você caiu em um golpe.
-Que golpe?- A outra gêmea gritou, inconformada, se levantando.- Ele não me roubou dinheiro, nem nada!
Anabella revirou os olhos, também castanhos.
-O golpe do coração, Ana Lúcia! O pior dos golpes! Olha como você está, toda triste por causa de um homem que mal conhece e que viu apenas uma vez na vida! Eu apenas estou tentando te fazer enxergar a verdade.
-Eu odeio a sua verdade! Você está enganada, está enganada...
O tom de voz dela gradativamente se abaixou, à medida que ela se sentava de volta na cadeira, com as mãos na cabeça.
Dona Eleanor a fitou, preocupada.
-O que foi, Ana?
-Dor de cabeça...- Murmurou.
-Essa discussão não a fez bem. Ela mal tocou no café da manhã.- Notou o pai.
-Também deve estar cansada da viagem. Anda, vem.- Dona Eleanor pegou na mão de Ana Lúcia, levantando-se com ela.- Vamos para o quarto, você precisa descansar um pouco. Depois eu peço à Cassandra para levar alguma coisa para você comer...
Anabella observou a mãe e a irmã se retirarem, indignada. Poxa, só tinha falado a verdade!
O pai só balançou a cabeça, sem querer dizer nada.
Anabella se levantou e foi para a cozinha.
Cassandra, a cozinheira, lavava alguns copos que já estavam na imensa pia de mármore travertino da cozinha e virou a cabeça, quando a viu entrar.
-Mas você, hein? Não consegue mesmo fechar a matraca!
Anabella suspirou.
-Você ouviu tudo? Acha que eu falei de mais, Cassi?
-Você devia ter dó da pobrezinha. Chegou de viagem toda animada contando lá sobre o moço e você fala umas coisas daquelas!
Anabella se sentou na bancada.
Sentia um carinho e respeito enorme por Cassandra que, apesar de ainda estar na casa dos seus trinta e poucos anos, cozinhava para eles e cuidava de alguns outros afazeres da casa já a algum tempo.
Ela sempre era mais condescendente com Cassandra do que com os próprios pais ou a irmã.
-Não falei nada demais, só a verdade. Ana Lúcia que é uma pobre iludida e caiu na lábia do homem. Ela é uma boba.
-Sua irmã não é boba. Ela só é muito sensível e acredita na bondade das pessoas. Diferente de você, que só vê maldade em tudo.
-Não. Eu só sou bem realista, é diferente.
-Tem algumas realidades que machucam demais, Bella, sabia?- Cassandra beliscou de leve o queixo de Anabella.
-Pois eu prefiro que me machuquem com a realidade, do quê que me iludam com mentiras.
-Você também não pode sair assim falando que o tal moço é um canalha. Você pode se surpreender com ele.
Farta daquele assunto, Anabella apenas sacudiu os ombros.
Cassandra se virou para continuar lavando a louça e foi então que Anabella reparou em algo.
As pernas dela, as duas, estavam cheias de arranhões. Alguns já com as casquinhas roxas e outros mais recentes, ainda com resquícios de sangue.
-Cassi... O que são esses arranhões na sua perna?
A mulher gelou e ficou parada um segundo, antes de se virar.
-Ahn... o quê?
Anabella se levantou.
-Suas pernas. Estão as duas arranhadas, machucadas, sei lá.
Cassandra engoliu em seco.
-Não foi nada, eu só... devo ter tropeçado e caído em algum lugar.
Anabella cruzou os braços e a fitou.
-É mesmo? Isso está me cheirando à outra coisa.- Ela chegou bem perto da cozinheira e falou mais baixo.- Violência doméstica.
-O quê??- Os olhos de Cassi se arregalaram.- Não é isso, não. Que bobagem, Bella.
-Bobagem? Eu não sou boba, dona Cassandra. Se o miserável do seu marido estiver te machucando, você pode ir me contando agora mesmo.
-Tá louca, menina??- Ela se enervou um pouco.- Eu já disse que caí, não disse? Não confia na minha palavra? Que coisa!
Anabella se afastou um pouco, mas ainda a olhando, desconfiada.
-Espero que seja isso mesmo- disse, logo depois.
Cassandra assentiu.
-Ah, quando você terminar isso aí- Anabella indicou a louça na pia.- Pode ir para casa. Deixa que eu e minha mãe preparamos o almoço de hoje. É domingo, aproveita pra descansar bastante.
Ela sorriu de leve para Cassandra, que retribuiu o sorriso, ainda meio assustada pelo interrogatório da moça.
Anabella saiu da cozinha, tomando rumo para outro cômodo da casa e Cassandra então, ao se certificar de que estava sozinha na cozinha, desatou a chorar.
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Não se esqueçam de comentar pra eu saber o que estão achando.
Essa história está só no comecinho. Ainda vem muita coisa por aí.
Obrigada!❤
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