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Capítulo 03: O Nevoeiro

O sol já raiava quando Lucas desceu até a cozinha, seus olhos carregando o peso de uma noite mal dormida. O jovem, atormentado pelos eventos que o mantiveram acordado, exibia profundas olheiras. Em contraste, Mateus, seu irmão, aparentava estar revigorado e em plena disposição.

Ao passar por Lucas, Mateus mal lhe dirigiu o olhar. Sentaram-se ambos à mesa, onde já se encontravam João, o pai, e Célia, a tia, a saborear o desjejum. Lucas, sem proferir palavra, serviu-se de pães do cesto e despejou suco de laranja num pequeno copo, observando o líquido vibrante refletir a luz da manhã. Célia, que até então se mantivera em silêncio, fixou o olhar no sobrinho antes de decidir quebrar a tensão que pairava sobre a mesa.

— Lucas, meu caro, pareces um trapo velho... O que te aflige? — indagou Célia com um tom que pretendia transparecer compaixão.

O rapaz, no entanto, não se deixava enganar pela súbita preocupação da tia. Ele bem sabia que, quando ressentida, Célia era das mais irredutíveis, e o sobrinho havia dado-lhe motivo para tanto na noite anterior. Ela arqueou uma sobrancelha ao notar que o rapaz estava prestes a responder.

— Não foi nada, minha tia... Apenas um sonho ruim — respondeu ele, a voz embebida em cansaço.

— Não penses que isso te isentará de tuas obrigações, rapaz! — irrompeu João, em tom ríspido. Mateus lançou um olhar confuso ao pai, estranhando seu azedume. Lucas, ao contrário, conhecendo bem o temperamento do patriarca, optou por permanecer em silêncio. O mais velho dos irmãos raramente se envolvia em discussões.

— Talvez ele pudesse descansar ao menos por hoje — sugeriu Mateus, numa inesperada defesa.

— Pois que assim seja... — consentiu João, não sem certa frieza. — Mas que faças o trabalho do teu irmão, Mateus, para compensar.

Sem mais, o fazendeiro, já devidamente arrumado para o dia de trabalho, levantou-se e saiu em direção aos cafezais. Célia trocou um breve olhar com os rapazes antes de segui-lo.

— Por que o fizestes? — indagou Lucas, ainda perplexo com o raro gesto de bondade do irmão.

— Senti-me generoso, apenas isso — replicou Mateus, com seu usual cinismo.

Lucas sabia que algo estava por trás daquela atitude, mas estava cansado demais para desenterrar o que quer que fosse.

— Não te acostumes, entendes? — Mateus replicou, levantando-se da mesa.

Lucas ficou em silêncio, observando Mateus afastar-se até desaparecer pelas portas do grande casarão. Sua mente, entretanto, voltou-se para o sonho inquietante da noite anterior. Estaria perdendo o juízo? Aquela voz ainda ecoava em sua cabeça, perturbando-lhe a paz.

Ficou imóvel por algum tempo, perdido em pensamentos, até que balançou a cabeça para afastar as inquietações. Seguindo o conselho de seu irmão, decidiu descansar. Levantou-se e dirigiu-se ao quarto, onde, ao chegar, certificou-se de que a janela estava bem fechada. Trancou a porta atrás de si e lançou um último olhar ao livro sobre sua mesa de cabeceira, mas, sentindo-se esgotado, ignorou-o.

Deitou-se, deixando o sono tomar-lhe, e logo mergulhou nas profundezas do negrume, onde os sons do mundo aos poucos se dissipavam e o cansaço, enfim, se desfazia. Assim, adormeceu.

***

— Certamente é uma meretriz! Há donzelas muito mais adequadas nesta cidade do que aquela... — A voz de Célia soava distante em seus sonhos, suas palavras ecoando pelos corredores de sua mente, trazendo à tona a noite anterior, quando retornavam da missa ao lado de sua tia. — Viste o modo como ela se portava? — Célia insinuava com desdém, enquanto Lucas a olhava incrédulo, perturbado pelos ataques cruéis e infundados que sua tia lançava contra a honra da pobre dama.

Lucas sentiu-se transportado para outro lugar. Já não estava mais no carro com o pai, a tia e o irmão. Agora, encontrava-se com Mateus, ambos sentados na varanda de casa, voltando ao instante em que conheceram Isabelle. 

— Ela há de ser a criatura mais formosa que meus olhos já avistaram — ouviu seu irmão comentar, quase com veneração.

No entanto, algo parecia ter mudado. Mateus agora trajava-se de modo diferente, ostentando certo garbo, elegante em um belíssimo terno negro, um lenço delicadamente dobrado no bolso. O irmão caminhava em direção a uma névoa que se erguia, misteriosa, ao longe no meio do cafezal.

— Mateus! — Lucas gritou, tentando chamar o irmão, mas em vão.

O gêmeo prosseguia, alheio ao chamado, como que enfeitiçado. Desesperado, Lucas levantou-se de sua cadeira e correu atrás dele, atravessando o cafezal na tentativa de alcançá-lo, embora Mateus parecesse agora muito mais rápido.

Perdido na densa neblina que envolvia as plantações, Lucas deparou-se com o feitor, que se mostrava horrorizado diante do corpo inerte do escravo fujão. O estado deplorável em que o rapaz fora encontrado fazia o estômago de Lucas revirar. O rosto do jovem estava completamente deformado, como se tivesse sido rasgado por garras; o pescoço, dilacerado, jorrava sangue pelo solo, manchando o terreno que era o bem mais precioso de seu pai.

Tentando afastar-se daquela imagem aterradora, Lucas continuou a caminhar pela plantação. Sentia uma presença, como se fosse observado. Um calafrio percorreu-lhe a espinha, e o nevoeiro ao seu redor tornava-se cada vez mais espesso.

— MATEUS! — gritou, sem receber qualquer resposta.

De repente, Lucas parou. A sensação de estar sendo vigiado se intensificava. Olhou ao redor e divisou, no meio da névoa, a silhueta de uma grande criatura quadrúpede. O animal movia-se lentamente, o pelo eriçado, e o rapaz teve a impressão de ver dois olhos flamejantes, orbitando como brasas no ar.

O som do cafezal movendo-se ao seu redor o fez suar frio, o corpo inteiro arrepiado. O coração martelava-lhe o peito, o sangue pulsando tão rapidamente que sentia que poderia perder o controle a qualquer momento. Respirou fundo, lutando para encher os pulmões de ar. O que está acontecendo? — pensou, aterrorizado. Preciso sair daqui!

Decidiu voltar para a segurança da casa. Não sabia o que aquela criatura era, mas sabia que precisava sobreviver. Olhou para trás, e viu Mateus, caminhando em direção ao coração daquele inferno branco. Chamou por ele mais uma vez, sem sucesso. Correu até onde estava o irmão, tentando tirá-lo daquele transe, mas as chamas nos olhos da criatura continuavam a encará-lo. Seu coração gelou de medo.

Desesperado, Lucas tentou agarrar o braço de Mateus, mas recebeu uma cotovelada em troca. O irmão prosseguiu, de braços abertos, como se fosse acolhido pela criatura do nevoeiro. Ao se aproximar, Lucas percebeu que a criatura era um enorme cão, de pelagem negra e dentes ameaçadores.

O animal escancarou a bocarra, dilacerando a carne de Mateus. Gritos de agonia ressoaram pelo cafezal, enquanto Lucas, apavorado, correu para casa, deixando o irmão para trás. O som dos ossos e da carne sendo rasgados fez com que ele quase vomitasse.

Quando chegou à varanda, o caminho de volta pareceu incrivelmente curto. O feitor ainda estava ali, em choque diante do corpo do escravo, alheio ao perigo iminente. Lucas gritou para alertá-lo, mas sua voz pareceu não surtir efeito. Em um salto, o lobo negro lançou-se sobre o homem, que em questão de segundos teve sua carne rasgada e devorada.

Lucas finalmente correu para casa, mas antes que pudesse alcançar a porta, deparou-se com o lobo, que não hesitou em atacá-lo. Ele acordou de seu pesadelo com um grito, suado e trêmulo.

— O que está acontecendo comigo? — indagou-se, soluçando, enquanto abraçava suas pernas, tentando encontrar algum consolo no meio do terror que o assolava.

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