Capítulo 02: Chame Pelo Meu Nome!
Os cães estavam irrequietos, e Leôncio, o capataz, mal conseguia conter os enormes animais que pareciam farejar algo suspeito. O homem fitou Lucas e Mateus, que trocaram um olhar e, sem palavras, assentiram, permitindo que Leôncio soltasse os cães. Os animais não hesitaram: dispararam como flechas através dos cafezais. Lucas gritou em aviso ao capataz:
— Que teus cães não façam estrago nas plantas, Leôncio! Se algo acontecer a meu pai castigará a todos nós.
— Sinhô, uma coisa lhe digo... — murmurou o capataz, de pele marcada pelo sol do trabalho e endurecida pelo tempo. — Há um quê de estranho nesses cafezais... os cães não ladram assim sem razão.
De fato, os cães pareciam inusitadamente excitados naquela manhã. Leôncio despertara antes da aurora, o insistente ladrar alertando-o para algo inusitado. Correu à sua penteadeira, de onde retirou a pistola, temendo que algum escravo houvesse fugido. Conhecia bem o temperamento de Seu João, senhor austero e de pulso firme, famoso por castigar aqueles que lhe contrariavam a vontade.
Leôncio ainda se lembrava do dia em que o senhor ordenara chibatadas numa escrava por ter quebrado uma peça de louça, herança de família. Ele, um homem de coração gelado, chegou a ter pena ao ver a desmedida punição.
Mateus partiu à frente, deixando Lucas e Leôncio para trás. Ambicioso, queria ser o primeiro a capturar o escravo fujão, ansioso por ganhar o favor da bela dama Isabelle. Se o objeto que ela mencionara na noite anterior era realmente de valor, ele faria de tudo para recuperá-lo antes de seu irmão, que considerava tolo.
Os latidos aumentaram de intensidade; os cães estavam perto, mas pareciam receosos de avançar. Leôncio foi o primeiro a cruzar o denso cafezal, seguido por Lucas, que se mostrava animado com a perseguição.
Com a pistola já em punho, o capataz aproximou-se, pronto para qualquer ameaça. No entanto, o que encontrou fez com que seu estômago revirasse. Jazia diante dele o cadáver de um jovem escravo negro, o corpo estraçalhado por mordidas e mutilado. Partes de sua barriga faltavam, e os pés estavam completamente mastigados. Corvos haviam encontrado o corpo primeiro, roubando-lhe o olho esquerdo, mas fugiram ao ouvir os cães.
— Então, achaste o traste? — Mateus perguntou ao aproximar-se, encontrando Leôncio a fazer o sinal da cruz.
— Achei, mas temo que algo o encontrou antes de nós, sinhô... — Leôncio guardou a pistola.
— Que fazes, homem! — Mateus deu-lhe um tapa na nuca. — E se a fera que o devorou ainda ronda estas terras?
— Creio que os cães não se agitaram à toa... parece coisa de onça, sinhô... — disse Leôncio, tentando convencer Mateus a deixarem o local.
Aquele lugar estava lhe dando calafrios, não queria ficar mais tempo em um canto onde não tinha uma visão privilegiada do bicho que caçou o pobre rapaz. Mateus contragosto, aceitou voltar com o irmão e o capataz, mas voltara frustrado, não foi daquela vez que surpreenderia Isabelle.
Naquela noite, uma brisa fria inesperada desceu sobre a vila de São Paulo, fazendo com que os habitantes se agasalhassem mais do que o habitual. No centro, a pequena igreja aguardava seus fiéis para a missa. João fazia questão de que os filhos, Lucas e Mateus, crescessem como filhos de Deus, como prometera à esposa em seu leito de morte.
Ao chegarem, perceberam que a igreja estava especialmente cheia. Dentre a multidão, uma figura familiar aproximou-se: Célia, uma mulher de aparência distinta, com cabelos negros presos por uma presilha adornada.
— Como estão formosos! — disse a mulher, olhando-os com um sorriso afável e selando um beijo em seus rostos. — Vejam, minhas amigas, meus sobrinhos crescem fortes e bonitos!
Lucas e Mateus coraram, tentando se afastar discretamente, incomodados pela atenção indesejada.
— Como tinha dito, minhas amigas... meus sobrinhos estão se tornando belíssimos homens! — gabava-se para as estranhas que mediam os gêmeos, mas pareciam desgostosas com toda a cena que a amiga fazia. Já Lucas e Mateus mais queriam, era encontrar um buraco para se atirarem o mais rápido possível.
— Não sabia que viera à cidade, Célia — comentou João.
— Ah, irmão, cheguei recentemente e mal pude conter a vontade de visitar nossa querida paróquia e ver meus belos sobrinhos. — Célia lançou um olhar de orgulho para Mateus, que se remexeu, visivelmente desconfortável.
Mateus nunca gostara da tia; julgava-a uma oportunista, sempre à espreita, como um abutre aguardando o momento de reivindicar a herança.
Logo depois, os fiéis ocuparam seus lugares, e o padre iniciou a missa, saudando os presentes:
— Normalmente, irmãos, aqui nos reuniríamos apenas para agradecer a nosso Pai Eterno. Mas hoje... precisamos orar pelos que se foram, vítimas de tão cruel desgraça...
— Muito bem... — tossiu João, graças a friagem da noite. — trate de se apressar, a missa já vai começar...
O coro respondeu com um amém uníssono, e a igreja mergulhou em silêncio. Mateus e Lucas trocavam olhares furtivos, cada um atento aos movimentos de Isabelle, que acabara de entrar na paróquia com um vistoso vestido vermelho. Ela sorriu para Mateus, que murmurou provocando o irmão:
— Que presente nos mandou o Senhor, hein?
Lucas, tentando conter a inveja, lançou ao irmão um olhar fulminante. Célia, notando o interesse de Isabelle por seus sobrinhos, cochichou com suas amigas:
— Que ousadia! Olhem como essa donzela se veste... uma desgraça para nossa sociedade!
— Senhora! — João repreendeu, visivelmente incomodado. — Não estamos aqui para julgar, mas para louvar a Deus!
A missa prosseguiu. Após longas horas de preces e cânticos, os fiéis se dispersaram. Mateus acompanhava Isabelle até a saída, seguido de perto por Lucas, que observava o irmão com ciúme.
Na escadaria da igreja, Célia lançou um olhar de desaprovação à jovem, enquanto João sorriu amavelmente, com a familiaridade de quem a conhecia há muito.
O padre logo surgiu, um homem de meia-idade, assim como João, esguio e revestido em trajes negros, um pequeno crucifixo dourado pendendo-lhe do pescoço. Mal avistaram sua presença, todos os presentes na igreja ergueram-se e acompanharam o sacerdote ao púlpito da Paróquia. Assim que ele subiu ao tablado e se voltou para a congregação, acompanhado de seus coroinhas, o homem se pronunciou, pedindo-lhes que tomassem seus assentos.
— Em dias ordinários... — iniciou, pausando enquanto seus olhos passeavam por muitos rostos familiares. Aqueles fiéis haviam frequentado aquela mesma igreja desde tenra idade. —... nossa reunião serviria apenas para celebrarmos mais um dia concedido por nosso Deus-Pai Todo-Poderoso... — calou-se, buscando entre os presentes aqueles que haviam perdido entes queridos, oferecendo-lhes um olhar compadecido, carregado de empatia. — Todavia, face às notícias que circulam, roguemos hoje, mais do que nunca, pela alma daqueles que já não mais caminham entre nós...
Ao seu fim, um "amém" profundo ecoou pela igreja, e seguiu-se um respeitoso silêncio. Muitos fecharam os olhos em oração, mas Mateus e Lucas, de tempos em tempos, espiavam o ambiente ao redor para assegurar-se de que ninguém os veria admirando Isabelle. Lucas, de fato, não conseguia desviar os olhos de seu irmão e da moça, que pareciam estar em notável harmonia. Mateus sorria enquanto conversava com a recém-chegada, deixando Lucas pesaroso ao constatar que, mais uma vez, seu irmão conquistava a atenção da bela jovem. O rapaz sentia-se impotente e o desejo de bradar para que Isabelle lhe prestasse atenção o consumia.
Dirigiu a Mateus um olhar furioso, como se lhe lançasse pequenas agulhas ao pescoço. Mateus passou a mão na nuca, incomodado, e Isabelle lançou um breve olhar para Lucas, que lutava para disfarçar seu fervor. A moça sorriu-lhe, o que acalmou o rapaz, que desviou a atenção de volta ao padre.
Após duas longas e cansativas horas, a missa chegou ao fim, e os fiéis começaram a dispersar-se. Mateus e Isabelle seguiam juntos em direção à saída, enquanto Lucas os observava, roído de ciúmes. Do lado de fora, Célia e suas amigas surgiam acompanhadas de João, que alcançaram o trio à saída da Paróquia. A tia dos rapazes observou a jovem com um olhar analítico e, com pouco disfarce, torceu o nariz. Já João, descendo os degraus, abriu um sorriso largo ao avistar Isabelle, exibindo dentes amarelados pelo charuto.
— Ah, eis vós que sois a dama responsável por tantos olhares e murmúrios... fizestes um rebuliço! — exclamou João, seus olhos capturados pelos brilhantes olhos verdes de Isabelle. — Queira Deus que meus rapazes tenham-lhe demonstrado tratamento melhor que este vilarejo calorento! — completou, rindo enquanto batia levemente nas costas de Mateus e Lucas.
— Vejo que vossos filhos foram bem instruídos... não é de se estranhar que são... verdadeiros cavalheiros. — respondeu Isabelle, com um tom elegante, seus olhos oscilando entre os irmãos.
— Podeis me chamar de Célia. Sou tia destes meninos, e talvez a única que de fato se encanta em conhecê-la. — disse Célia, um tanto petulante, lançando à jovem um olhar calculado. João, espantado pelos elogios da irmã, ia falar algo, mas foi interrompido pela expressão dela, que indicava seu desinteresse por qualquer que fosse o assunto.
Mateus percebia a hostilidade de sua tia, e Isabelle, exibindo um sorriso discreto, olhou para o céu antes de afirmar:
— É tarde, convenhamos, para que eu me encontre aqui sozinha... — disse ela, com um tom quase lânguido, lançando olhares a Lucas e, depois, a Mateus. — Ainda mais considerando os atos violentos que, ao que parece, se espalham nesta cidade...
O ar entre Isabelle e Célia pareceu aliviar-se com o comentário. Célia olhou para os sobrinhos e depois para João, afirmando:
— Tens razão, minha cara... reconheço ser imprudente permanecermos aqui, ainda mais com esta onda de infortúnios que assola nossa bela cidade... — e, acenando a João, que não tirava os olhos de Isabelle, apressou-o. — Vem, meu irmão. Não devemos arriscar tua saúde... — disse, puxando-o pelo braço e guiando-o em direção à carruagem que os aguardava.
Os rapazes seguiram Isabelle com a obediência de dois cães fiéis até a saída. Ela, ao despedir-se, pediu-lhes que retornassem com segurança a seus lares. Contrariados, eles assentiram e foram ao encontro da carruagem onde pai e tia os esperavam. Enquanto desapareciam na noite, os homens que haviam acompanhado Isabelle na noite anterior aguardavam-na ao longe, até sumirem na escuridão.
No caminho de volta à fazenda, Célia retomou o assunto, referindo-se a Isabelle como uma provocadora e murmurando adjetivos pejorativos que instigaram uma reação inesperada.
— Minha tia! Como dama de prestígio que és, poderias, ao menos, mostrar respeito pela moça que não está presente para defender sua honra de tais palavras tão vis! — Lucas explodiu, sua voz um brado que deixou até mesmo Mateus boquiaberto, pois jamais esperara tal cena do irmão tão contido.
João olhou para o filho com reprovação:
— Vigiai vossas maneiras, rapaz! Não é assim que se dirige à sua tia!
Foi o bastante para iniciar uma acalorada discussão entre Lucas e seu pai sobre a conduta de Célia. Mateus, observando a cena, esboçou um sorriso malicioso diante da mudança de seu irmão, sempre tão obediente e agora em confronto aberto. Ganhara a noite, não só pela longa conversa que tivera com Isabelle, mas também por ver Lucas descontrolado. Ele desviou os olhos para os cafezais, recordando-se do corpo do escravo fugido e da frustração por não encontrar a joia de Isabelle.
A discussão se prolongou até a chegada. Lucas saiu às pressas, transtornado com o comportamento da família. Subiu para seu quarto e, ao abrir a porta, notou uma corrente de ar gélido. Aproximou-se da janela, fechando-a, e, em seguida, trancou a porta, antes de pegar seu livro no criado-mudo e deitar-se. Tentou esquecer o que acontecera, imergindo na leitura até que o sono o vencesse. Contudo, as palavras de Célia ecoavam-lhe na mente, perturbando-o.
Não passas de uma meretriz!
Percebeste a maneira como se porta?!
Seu peito pesava com tamanha raiva, frustração e algumas lágrimas começaram a escorrer pelo rosto do rapaz, até ele finalmente adormecer. As palavras de sua tia perturbavam-no até mesmo em seus sonhos, via Célia parada nos pés de sua cama, ela o encarava tão enfurecida, não acreditando como seu sobrinho era capaz de defender uma mulher como aquela.
Aquela há de ser a mulher mais formosa que já vi!
A voz de seu irmão se uniu à da tia, preenchendo o quarto vazio. Desorientado, Lucas levantou-se e abriu a porta, espiando o corredor, vazio, exceto pelo sopro frio que lhe atravessava o quarto. Voltou à cama, mas, ao deitar-se, sentiu um toque gélido em seu ombro.
— Não! — vociferou em seu quarto. — Tem que escolher a mim! — gritando ao ponto de suas veias ficarem salientes em seu pescoço curto.
Lucas percebeu que o ar que respirava tornou-se visível, já que saía fumaça esbranquiçada pelo nariz. Fechou a janela e sentiu um calafrio, algo passou por ele, espiou atrás de si e não tinha nada ali. Decidiu voltar para cama, quando ouviu novamente vozes ecoando pelo quarto.
Não me lembro de tê-la deixado aberta...
De repente, sentiu um toque gélido em seu ombro, mãos estranhas alisavam seus braços, enquanto ele estava de frente para sua própria cama.
— Vosmecê desejas a mim, não é mesmo? — ouviu a voz aveludada soar doce em seu ouvido.
— Sim! Sim! Desejo-lhe mais que tudo! — respondeu, um frio suor escorrendo por sua fronte.
— Deves fazer algo antes disso...
— Qualquer coisa, minha amada! — disse carinhosamente, colocando sua mão sobre a da jovem, que repousava em seu ombro.
— Então chame pelo meu nome... — murmurou a voz aveludada
Um arrepio percorreu seu corpo. O rapaz, tomado por um impulso, virou-se para fitar sua amada, mas o que viu era um vulto inumano.
— Isabelle! — gritou, despertando num sobressalto. Do lado de fora, os cães uivavam em uníssono.
Lucas sentiu um mau presságio e não conseguiu dormir mais naquela noite.
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