I - Aviso Prévio
— Você não pode simplesmente fazer uma lista e ir a seguindo. — Elena argumenta pela centésima vez.
— E o que espera que eu faça? Eu só tenho 7 dias.
— Por isso mesmo! Se ficar presa a uma lista, não vai ter a liberdade que procura.
Desde que chegamos do hospital, Elena não saiu do meu lado. Ela pediu para os seus pais para dormir aqui e agora estamos pensando sobre o que eu quero fazer com os meus últimos sete dias. Faz um tempinho que ela parou de chorar, pedi que ela fosse grata pelo tempo que tivemos juntas e aproveitar o que ainda temos ao invés de lamentar o que não teremos, sei que ela entende bem a minha gratidão a Deus pela vida, pois também é cristã. Assim como sei que questiona a Ele sobre a minha partida. Eu já parei de questionar. Parei de tentar entender e decidi que quero viver os dias que me faltam da melhor forma possível e sempre louvando ao nome do Senhor, afinal, Ele é o meu dono e sei que sempre fará o melhor para mim. Se Deus acha que meu tempo aqui está para acabar, então que seja.
— Você vai gravar as musicas que compôs né? Você precisa gravar! — Elena toca no assunto pela terceira vez.
— Lena, você sabe como eu sou tímida pra isso. Só você já ouviu essas musicas. — Digo a mesma coisa que nas outras duas vezes. Ela insiste que eu grave vídeos cantando e tocando as musicas que compus, mas sou tímida demais, ela sabe disso.
Sei que é irônico pelo fato de eu querer ser uma cantora profissional, mas eu não cheguei a ser e sete dias é muito pouco para alcançar isso, então, vou dar um jeito de realizar outras coisas relacionadas à música..
— E se você colocar uma máscara? Ficar de costas? Ou sei lá! — Elena sugere, bem empolgada. — A gente podia criar um canal e postar seus vídeos anonimamente. Você disse que queria que vidas fossem alcançadas através das suas músicas, mas isso não vai acontecer se permanecerem esquecidas no seu caderno. — Elena joga sujo e acerta em cheio o seu objetivo.
Não é uma má ideia, na verdade. Eu realmente quero que almas sejam alcançadas e sei que enterrei meu talento por anos, mas estou quase deixando essa Terra, não me custa nada deixar um legado, mesmo que não seja com o meu nome. Não vou me importar se alguém ouvir as músicas na internet e quiser usar.
— Acho que você teve uma boa ideia, Lena.
Sorrio para a minha melhor — e única — amiga. Consigo visualizar o cenário em que poderia cantar livremente e não me preocupar em saber que alguém vai ouvir.
— Podemos fazer vídeos com a luz bem fraca, a ponto de não aparecer o meu rosto, que tal? — Sugiro, animada com a ideia.
— Eu acho que deveria se expor, mas como não quer, acho perfeito que seja assim. — Ela dá de ombros. — Podemos começar a gravar amanhã mesmo. Aliás, já vou criar um canal aqui, vai pensando em um nome.
Elena corre para a escrivaninha e pega meu notebook. Ela volta e o coloca sobre a cama, já abrindo o YouTube e o Gmail para criar uma conta.
— Já pensou em alguma coisa? — Ela pergunta com o endereço de e-mail já pronto.
— Talvez algo como "viva o hoje", o que acha?
— Original, apesar de achar Malu Santanna muito melhor. — Provoca.
— Ou fazemos com o anonimato ou não fazemos. — Digo de forma séria e cruzo os braços. Elena revira os olhos.
— Tudo bem, vou colocar o "viva o hoje", mas ainda acho que podemos pensar em outros nomes.
— Acho melhor irmos dormir, já está tarde. Talvez amanhã saibamos. Você ainda tem que ir para a faculdade.
— Eu não vou amanhã. Não vou em nenhum dia dessa semana. — Volto a ver a tristeza no olhar da minha amiga.
— Elena, você não pode parar sua vida por minha causa.
— Sete dias não vão afetar nada na minha vida, o resultado deles é que vai. E eu não quero discutir, já decidi e pronto! — Elena fecha o notebook e o coloca de novo na escrivaninha.
Eu larguei a faculdade de medicina, não fazia sentido continuar de qualquer forma. Não senti nada sobre isso, não era o meu sonho mesmo, mas Elena cursa Licenciatura em História, seu grande sonho. Sinto-me culpada por estar a privando desses dias de aula, ela sempre vai com muito gosto para a faculdade, mas não posso julgar sua decisão, sei que eu faria a mesma coisa se fosse ela no meu lugar, mesmo se eu cursasse algo relacionado à música.
Eu sempre fui a garota tímida, meio nerd e certinha. Filha do pastor local, as pessoas sempre esperavam nada menos que perfeição de mim em tudo que eu fazia. Nunca fui muito de sair ou ter amigos, as únicas pessoas que eu falava era com o pessoal da igreja. Eu até que sou benquista por todos e tenho uma boa relação com os jovens, mas sentia muita falta de ter amigos verdadeiros para fazer festas do pijama, contar segredos e compartilhar momentos únicos. O grande problema é que ninguém queria ser tão íntimo da filha do pastor e eu nem tinha momentos para compartilhar, de qualquer forma.
Tenho 19 anos e nunca tive um namorado. Não que a idade seja um fator decisivo, mas os garotos da minha igreja tinham medo até de flertar comigo e ter que enfrentar meu pai depois. Na escola eu sempre fui a quietinha ou qualquer coisa desse tipo, e na faculdade eu era apenas uma aluna modelo que servia como um troféu ambulante. As melhores notas de uma garota negra e religiosa. Um prato cheio para a faculdade se autopromover com a inclusão social e no alto nível acadêmico.
As coisas começaram a mudar para mim quando os DeLuca começaram a frequentar a igreja. Eles moram na mesma rua que eu há muitos anos, mas nunca tivemos muito contato. Eu tinha uma paixonite secreta pelo Tony, mas isso foi no começo da minha adolescência e agora eu o vejo apenas como o irmão mais velho da minha melhor amiga. Aliás, ele nunca me olhou com olhos diferentes de qualquer forma, acho que sempre fui a garota certinha que começou a andar com a sua irmã caçula. Elena e eu tivemos o primeiro contato de verdade na igreja. Irônico que eu achava que ela era uma burguesinha que nunca daria bola para a filha do pastor, ela, por sua vez, achava que eu era uma beata que a julgaria por não seguir a fé da mesma forma que eu. Acabou que descobrimos que nossos julgamentos estavam completamente equivocados e somos melhores amigas há mais de 3 anos. Priscila, a mais velha dos irmãos, é realmente uma mulher de nariz em pé que acha que estou fazendo a cabeça da sua irmã caçula, ela acredita que eu forcei a sua irmãzinha a seguir seus sonhos só porque Elena não fez Direito como todos da família e preferiu ser professora ao invés de seguir o legado.
Elena tem 19 anos, assim como eu, ela não se importa com o dinheiro da família ou com a firma de advocacia que eles têm, ela ama História e ama dar aula, apenas seguiu o sonho do que queria fazer. Seus pais até aceitaram bem, mas a Priscila não e até hoje diz que a culpa é minha. Ela tem 26 anos, é formada e já trabalha na firma da família. Parece ser uma excelente advogada, mas não sei se posso dizer o mesmo como pessoa.
Tony está com 23 anos e está se formando em Direito, como era de se esperar. Ao contrário da Elena, ele realmente parece gostar, então, só desejo muito sucesso para ele. Temos pouco contato, ele não é muito de fazer amigos e quase não vai aos cultos, Lena soube em algum momento dos meus sentimentos antigos por ele e até hoje fala que podíamos ser um casal incrível. Não sei onde ela vê isso já que ele quase não olha para mim e duvido que tenha muito assunto para conversar comigo. A única coisa que eu acho que temos em comum é que eu sei que ele também gosta de música, não sei o quanto, mas sei que gosta. Já vi uma guitarra, dois violões e um teclado em seu quarto, mas nunca me atrevi a perguntar nada, muito menos a dizer que entrei no seu quarto sem querer uma vez achando que era o da Elena, fiquei mais tempo do que necessário, mas só porque fiquei admirando os instrumentos. É claro que eu corri com o primeiro barulho que ouvi e nunca toquei nesse assunto. Nem mesmo com a Elena.
— Malu? — Lena me chama. Já estamos deitadas para dormir. — Está acordada?
— Estou.
— Estou com medo. — Lena diz com a voz embargada. Automaticamente eu me viro para ela de modo que ficamos como os rostos um de frente para o outro. Eu tenho uma cama de casal e sempre dormimos juntas quando ela vem para cá.
— Com medo de quê?
— De não aguentar quando você se for. — O que ela diz é quase um sussurro.
Dentre as pessoas que sabem da minha condição real, Elena é a que mais segura a barra comigo. Meus pais não sabem que eu sei que eles choram o tempo inteiro e que apenas fingem que não o fazem. Elena optou por passar todo o tempo possível comigo, até o final.
— Não fique, Nena. — Tento ser mais carinhosa com seu apelido de infância que eu descobri por acaso em umas das vezes em que estive em sua casa. — Deus sabe de todas as coisas, não é mesmo? Ele sempre sabe o que faz. Se minha hora vai chegar, então que chegue. Não vamos desperdiçar tempo nos lamentando, tudo bem? Ele foi muito generoso em ainda me dar um aviso prévio. — Tento brincar com a situação, percebo um pequeno sorriso nos lábios da minha amiga, mas as lágrimas silenciosas ainda estão ali e o sorriso não subiu para os olhos.
— Eu te amo, Malu. Você é o melhor presente que Deus poderia ter me dado, não haveria amiga melhor.
— Eu também te amo, Nena. Tenho certeza de que você foi o refrigério que faltava na minha vida.
Abraçamo-nos de um jeito meio desengonçado e acabamos rindo dessa tentativa trágica de uma troca de carinho. Dissemos boa noite uma para a outra e voltamos a virar para os lados que costumamos dormir.
Eu tento acalmar minha amiga, meus pais e meus pensamentos turbulentos. Só que eu sei que não é nada fácil passar por uma situação dessas. Eles me amam, tenho certeza disso. E saber que alguém que você ama está com os dias contados deve ser uma das piores sensações que um ser humano pode sentir. Realmente, eu não faço a menor ideia de como tornar tudo isso melhor. Inclusive para mim.
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