2
Não sabia quanto tempo eu teria que permanecer de pé esperando pelo magistrado, só sabia que de mérito ele tinha pela demora dele. Fala sério!
Uma semana havia se passado e quase todos os dias o advogado, Antônio Carlos, conseguiu ir me ver, apesar de estar na solitária. Isso gerou um murmurinho entre as outras mulheres e no dia em que eu pude voltar para a minha cela, elas me agrediram violentamente. Só não morri por causa da guarda Alexandra Silva e sua parceira, Débora Fogaça, que faziam a troca de turno.
Elas me levaram para a enfermaria e ordenaram prender todas as envolvidas na solitária também. Para a minha sorte, aquela noite era a última e eu poderia dormir em paz, sabendo que meus inimigos estavam bem longe de mim.
Quando chegou a hora de ir para o meu julgamento, as mesmas guardas, que me salvaram daquele episódio, me acompanharam pelos corredores da prisão e conversavam entre si:
— Tchê, você é bem durona — Débora comenta primeiro para a sua parceira sobre mim, que apenas as observava no decorrer do caminho. Passamos por várias celas e as prisioneiras não trocam olhares amigáveis comigo. Eu estava no sul do país, mas ainda não entendia como sobreviveria aquelas gírias nas quais eu não estava familiarizada, sendo eu uma paulista adotada.
— Pois é! Mas você sabe quem era aquela guria? A nossa pior detenta, ela não aceita muito bem quando alguém rouba o trono dela na prisão — Alexandra responde bem mais animada do que a primeira. — Lembra daquela vez que ela conseguiu arrancar o olho de sua companheira de cela com um garfo? Foi assustador!
— Bah, ainda bem que está indo embora — ambas fofocavam como se eu estivesse interessada no assunto. — Aquela lá não gosta de submeter a ordens de outros.
— Conheço bem esse tipo de gente — resmungo. Já estávamos próximas da chegada, quando eu decido questionar uma coisa com elas. — Vocês conhecem Drew Schmidt?
Débora troca olhares com sua amiga e voltam a olhar para mim. Elas certamente sabiam de algo. Cruzo os braços esperando pelas respostas.
— Eu não o conheço pessoalmente, mas a Lê fez todo o curso para policial com ele, para a minha tristeza, que somente um ano depois fui fazer. Ele é um homem que você não esquece facilmente. A presença dele é bem marcante. Quando você vê-lo, saberá quem é — Débora se inclina para mim, como se aquilo fosse um segredo e precisasse ser guardado a sete chaves.
— Bah, larga a mão dessa ideia! O guri nem presta. Me diga que você não está trovando esse tipo de gente... — repreende Alexandra, fazendo uma careta de que não gostou nada ao ouvir sua amiga paquerando o outro guarda.
Débora faz uma expressão de quem foi pega em flagrante e isso provoca um revirar de olhos em sua companheira.
— Que barbaridade! Deixe de ser boca aberta. — Então ela se vira para mim, acrescentando: — Você sabe aquele personagem de livro, em que o mocinho é frio e misterioso por fora, mas por dentro, um chocolate derretido? Esqueça isso a respeito dele. Drew foi promovido a tenente alguns meses atrás, porém age como se fosse o próprio coronel. Pelos lugares em que andou, conheceu muita gente importante, e hoje se tornou um dos braços direitos do capitão. Desde a promoção, ele quem tem liderado as equipes, tanto de assaltos, contrabandos, tráfico de drogas... Eu li sobre o seu caso, Drew quem comandava, ele não ficou muito feliz por só ter conseguido você. Bah tchê, estou até surpresa por ele não ter passado para outro companheiro o seu caso! — exclama ela no final com um sorriso amigável.
Eu teria conseguido mais informações, contudo, já havia chegado na recepção para a minha transferência. O guarda jovem, que me levava para as visitas de meu advogado, estava na porta, esperando por mim.
Finalmente, vossa excelência nos concede a sua presença e eu enterro as minhas lembranças em um lugar bem fundo de minha memória, para focar no que estava prestes a acontecer: minha liberdade. Mas na verdade, quem saiu pela porta foi um outro rapaz, um guarda.
Meus olhos o vigiam enquanto ele caminhava com um ar superior, mostrando poder e autoridade. Achava-se ser o dono daquele lugar e algo me dizia que não se tratava somente em uma sala de tribunal. O homem vestia roupas de policial, reparo que sua mão repousava no coldre, não compreendi se era por pura arrogância em mostrar que ele era "a lei" ou por sentir alguma ameaça externa.
O rapaz era jovem, deveria estar na casa dos trinta e pouco. Alto e corpo atlético, por onde passava as moças solteiras soltavam um leve suspiro. Sua feição dura com um sorriso maroto no rosto me eram familiares, muito familiares! Cabelo com um corte militar chegava a ser tão castanho que poderia ser preto. Olhos escuros também. Eu só, então, o reconheço quando seus olhos flagram os meus, pois eu não me esqueceriam daquela frieza.
Ele era o guarda que havia me espancado naquela luta, em minha fuga. O que veio descontrolado querendo vingança por eu tê-lo agredido. O meu coração acelera e eu sinto o frio percorrer pela minha espinha. Como aquilo era possível?
Desprendendo nossos olhos, o moço caminha até a banca de júri, comenta algo, que faz todos concordarem. Depois disso faz cumprimentos a alguns outros guardas e pessoas importantes, até voltar a sua direção para nós. O guarda vem até onde eu e o advogado estamos e estica a mão para o cara ao meu lado.
— Antônio — eles apertam as mãos e o meu coração dá cambalhotas em meu peito, sentia que tinha algo de errado.
— Como está? Deixa-me apresentar, essa é a Shazad, a garota do seu caso.
A minha boca vai ao chão e eu instintivamente vou para trás. Ele não estica a mão para mim, mas em seus olhos prometiam a sedenta vingança em forma de saudações. Engulo em seco.
— Parece-me que está em minhas mãos — meu coração desconhece o significado de diminuir a velocidade, pois dentro de meu peito, ele acelera errando os compassos. Ouço-o as batidas em meus ouvidos e a garganta se fecha, não conseguindo falar.
— Esse é o tenente Drew Schmidt.
A tensão no ambiente é tangível entre nós, dava-se para perceber que ele também inflou as narinas por estar frente a frente comigo e não poder tocar em mim, como na última vez. Todavia, não acho que ele se seguraria se estivesse sozinho.
Eu me sentia claustrofóbica sobre os seus olhos castanhos escuros, presa novamente em uma sala sombria e completamente sem luz. Sem portas ou janelas. Trancada e sem chaves para escapar.
Perco o ar e novamente sinto o frio em minha espinha, o suor se acumular em minhas mãos e axilas. Ele... Quem é ele?
Ninguém fala mais nada, pois a porta pela qual o guarda Drew veio se abre e de lá o meritíssimo juiz surge. O guarda caminha lentamente para ficar longe de nós.
— Todos de pé para receber o Excelentíssimo senhor doutor juiz...
Paro de escutar o que o juiz anunciava, porquanto percebo um movimento simples, quase imperceptível, de Drew para o juiz, que o responde com um piscar de olhar. Estranho, penso.
Volto a minha atenção para o juiz, que no mesmo instante diz:
—... podem se assentar, pois daremos início ao julgamento.
~~~
Ao entardecer do dia seguinte, eu já estava a caminho de um centro de reabilitação chamada Renascer.
Não sei bem como eles conseguiram a minha liberação, mas com muito esforço, o meu advogado protocolou uma petição alegando que, de acordo com as novas leis de Bagé, uma cidade do interior, localização no Rio Grande do Sul, jovens criminosos com crimes do primeiro réu ou pequenos delitos podem evitar a cadeia, caso aceitem tratamentos psicológicos em um centro de reabilitação. Contudo, deverão estar sob custódia tanto do guarda do caso quanto do responsável do local, tendo que responder semanalmente questionários para saber se, de fato, se comprometem em não violar mais as leis ou se abrirão mão dessa chance e irão responder por seus crimes na cadeia.
O juiz me concedeu um mês para descobrir qual seria o meu novo comportamento, mas o que eu pensava mesmo era como eu fugiria dali para encontrar meu grupo. Após a minha prisão, eu me separei deles e desde então, sem notícias. Foi minha escolha salvar Levi e aos outros, porém, penso agora se não foi também estupidez minha não ter tentado ir atrás deles.
Mas agora não era hora para reclamações, tinha que descobrir onde eu ficaria em Bagé, para depois encontrar algum veículo de fuga e também furtar um celular para ter mais informações a respeito. De tudo aquilo que eu arquitetei, só havia um probleminha: não seguimos rumo cidade, viramos para uma rua que não parecia ter fim, com a natureza nos cercando e cada vez mais adentrando no coração da flora. Depois de algum tempo eu compreendo que estávamos rumo às fazendas.
Após longos minutos, o carro estaciona na frente de um portão de madeira com uma placa gigante escrito "Fazenda Renascer — centro de reabilitação". Estava tentando entender o que uma fazenda tinha haver com reabilitação, porém, não obtenho resposta. O guarda, Drew, desceu do carro para apertar o interfone.
Quando liberado por um homem, que parecia ser um trabalhador da casa, seguimos até a casa. Lá, em frente a porta, estava parado um senhor idoso com roupas bem engraçadas e não muito usuais para quem era da cidade.
Drew novamente desce do carro e nós — eu, o meu advogado e mais um homem, que lidava com essa parte burocrática, chamado Pedro Almeida — o seguimos.
— Buenas, tchê! — cumprimenta o senhor idoso voltando os seus olhos para mim, e eu não deixo de julgá-lo de cima a baixo. — Essa é a guria que tu me informaste?
— Essa mesma — o guarda e o homem apertam as mãos. — Trouxe comigo o doutor Almeida, para lhe explicar todo o processo, apesar do senhor já souber por não ser a primeira vez.
— Por favor, entrem e fiquem a vontade — o idoso abre a porta e nos deixa entrar.
Após uma longa explicação sobre os meus procedimentos ali na fazenda e tudo o que eu seria obrigada a fazer, o idoso cujo nome é Roberto Bauer assina o contrato me recebendo como seu novo caso. Era oficial: tinha a partir de hoje, 30 dias para pensar em como ir embora ou voltaria certamente a prisão. Eu não me condenaria aquela tortura de reabilitação.
Eles jogam um pouco de conversa fora, até Drew olhar atentamente para os arredores e questionar:
— E onde está Jason? — subo a minha atenção por um segundo para o guarda, porque eu não o vejo perdendo tempo com assuntos irrelevantes.
— Deu uma saída, foi fazer alguns favores para mim na cidade — explica sucintamente. Eu noto Drew anuir com calma e trocar um leve olhar para os companheiros, que vieram juntos.
Quem é esse aí?, questiono olhando para os homens. Não obtenho respostas pelas expressões deles. Seja quem for, poderia ser um grande problema para mim. Com isso, eu teria que trabalhar desde já em uma estratégia de como sairia daqui.
Minutos depois de conversarem e falarem sobre um festival no final de semana, todos se levantam fazendo menção de sair.
— Até mais, guarda Schmidt — eu saúdo, não resistindo a tentação de provoca-lo, sabendo que agora eu não estaria completamente sobre suas mãos. Estando na fazenda e seguindo às regras, eu não teria problemas com esse cara.
Mas Drew não deixa quieto a provocação e agarra o meu braço, puxando-me para si e impõe:
— Me chame mais uma vez de guarda, que eu mesmo me certificarei em levá-la ainda hoje para a prisão sem essa sua língua imunda — eu o fuzilo na mesma intensidade que ele fazia.
Com isso, Drew me solta e eu esfrego a minha mão no vermelho de meu braço, eu não emiti som algum, mas havia doído. Acompanho o olhar dele até a porta, quando todos passam por ela, no entanto, o guarda diz, sabendo que eu já o havia reconhecido.
— Não ande pelas sombras, pois são lá que os monstros dormem.
Mais uma vez naquele dia, todo o meu corpo se arrepia e meu coração quase pula para fora de meu peito. O calafrio desce pela minha espinha e eu não tenho reação, não consigo respondê-lo. Porque aquela frase me pegou desprevenida, quase ninguém sabia de onde vim e meus medos, contudo, se os guardas da prisão colocaram em meu relatório o medo de encarceramento, todos teriam acesso a uma de minhas fraquezas.
Dita aquela frase macabra, o tempo se fecha, mudando radicalmente trazendo nuvens pesadas para a fazenda e do outro lado das paredes o mundo cai. Iniciou uma tempestade violenta que perdura até a chegada da noite.
— A senhorita está bem? — ele pergunta quando vê a minha expressão assustada por causa da chuva e, possivelmente, desconfia ter ligação com a frase de Drew.
— Estou ótima.
— Imagino que esteja cansada pela viagem e aquele ar de prisão... Talvez queira descansar um pouco — o senhor Bauer sugere esperançoso, com uma expectativa de quebrar o clima estranho entre nós.
— Não falei que estava cansada — retruco, apesar de meu corpo clamar por uma cama confortável e poder dormir por dias. Ele puxa um sorriso triste, concordando com a minha resposta.
— Eu gostaria de desejar as boas-vindas aqui na fazenda... — o sujeito continua falando amigável, porém, eu o corto.
— O que o senhor quer de mim? Eu não pedi para me resgatar de minha vida.
— E também não negou a ajuda, quando te ofereceram — cruzo os braços.
— Você não tem mais nada para fazer?
O senhor Bauer percebendo que não teria conversa comigo naquele momento se retira para os seus aposentos, porém, antes de ir, explicou onde ficava cada coisa na casa caso eu tivesse fome, onde seria o meu quarto e detalhes que naquele momento não me serviriam para nada. Por não estar prestando muita atenção, ele mencionou algo a respeito de seu neto, mas não me lembro bem o que ele disse. Sendo assim, eu vou também para cama.
— Desisto, não consigo dormir! — resmungo saindo da cama e caminhando para a cozinha, a fim de comer algo.
Devia ser por volta da uma da manhã e não parava de chover. Os trovões a cada instante chegavam mais perto e o medo era enlouquecedor. Forço o controle de minha respiração, apesar de me sentir a mar aberto, com uma tontura sem igual.
— Calma, eu não estou mais lá.
Contudo, um relâmpago explode nos céus brilhando a sua luz por todo manto escuro e eu instintivamente me escondo embaixo da mesa, agarrando o meu corpo. Tremia por pavor, com lágrimas escorrendo meu rosto e o suor acumular em minhas células, exalando o meu medo materializado.
— Eu não estou mais lá, eu não estou... — me relembro com um sussurro baixo. Limpo minhas lágrimas e saio debaixo da mesa com dificuldade, abraçando minha cintura, tentando de alguma forma me proteger dos meus temores.
Assim que eu me acalmo e preparo o meu lanche, abro a boca para dar a primeira mordida e toda a energia da casa cai e um vento frio congela o ambiente. Eu arrumo coragem para investigar de onde vinha aquela corrente, sentindo o frio me atravessar.
Quando eu entro na sala, eu vejo a porta aberta e nela havia um homem parado. Meu coração para de bater em meu peito e eu travo no mesmo lugar. Os raios no fundo do cenário amedrontador trazem uma luz caótica mostrando fragmentos de seu rosto, as sombras formadas o deixam terrivelmente assustador.
Era aquele policial?
Penso em fugir e me esconder, não estava em condições para lutar, não quando me sentia presa aquela casa, na escuridão com a chuva arrebentando o mundo no lado de fora.
Quando o homem avança mais um passo para adentrar na casa, a luz volta com força iluminando e expulsando todas as trevas na sala. Meus olhos sobem para os seus, que me encaravam friamente. Aqueles olhos refletiam a minha morte.
As lembranças de um mês atrás volta com força, e eu me assusto ainda mais ao reconhecê-lo. Ele foi cara que ajudou a atrapalhar a minha fuga, o homem bêbado que me bateu.
Bạn đang đọc truyện trên: Truyen247.Pro