6 - Colisão
O interior do trem do Serviço de Inteligência Octupus era como Aram havia imaginado. Minimalista, monocromático e funcional.
O chão de aço inoxidável refletia as luzes frias do teto, e destacava o símbolo da Global Octupus e da estrela de oito pontos da SIO gravados em todos os vagões. Os bancos pouco confortáveis enfileiravam-se dos dois lados, próximos às janelas, separados por um largo corredor central.
Por mais que o espaço correspondesse à sua imaginação, tudo ainda era uma espécie de novidade para ele, já que não existiam trens no distrito independente. O máximo que tivera havia sido vislumbres do trem-bala que lambia perigosamente as fronteiras da divisa da floresta.
Os agentes e recrutas se moviam com um andar militar e silencioso.
Será uma viagem tediosa.
Aram prosseguiu, mantendo o olhar impassível, para o fundo do último vagão, à procura de um assento sem ninguém ao lado. Não estava a fim de conversa fiada. Assim que encontrou um lugar, se jogou no banco e deixou a mochila aos pés.
Do lado de fora, o tempo estava esfumaçado e cinzento, indiferente à claridade do dia. A estação estava lotada, e ele não via a hora de dar o fora dali para, enfim, iniciar o passo a passo complexo da missão. Seu pai se arrependeria por não tê-lo escolhido como primeira opção.
Puxou a adaga de cristal amarrada ao cinto. Era a única arma que levava consigo. Apesar de preferir as pistolas lasers e de quase nunca usá-la, havia algo naquela adaga que o fazia portá-la para todos os lugares; um motivo desconhecido, mais forte que sua vontade. Ele a encontrara anos atrás, na correnteza frêmita de um canal, presa entre as pedras. A luz do sol incidira sobre a lâmina, como um chamado para os olhos, como um incitador inexplicável para o sangue. E, desde aquele dia, estava sempre com ela.
— Bem-vindos, agentes e recrutas — uma voz metálica soou dos alto-falantes suspensos. — A previsão de chegada à Capital é ao anoitecer. A Global Octupus deseja a todos uma ótima viagem.
Aram queria mandar a Global Octupus para um lugar bem específico, mas guardou a adaga e ficou em silêncio.
Um ruído cadenciado indicou que as portas do trem tinham sido fechadas. O banco tremeu com o primeiro movimento sobre os trilhos.
Havia chegado a hora.
****************
Lira seguia Mabel em silêncio pelos corredores do trem. Tudo era novo, estranho, fascinante, e ela evitava encarar alguém por muito tempo. Não queria problemas nem para si, nem para a agente.
— Ei, Mabel — a voz de um agente ecoou até elas. — Que surpresa não te ver cambaleando por aí.
Sentiu a mão dela apertar seu braço com mais força e, com o canto dos olhos, notou como o lábio inferior de Mabel tremia, por mais que ela tentasse disfarçar e parecer indiferente ao comentário.
— Vamos procurar um assento nos últimos vagões — sussurrou. —Será melhor para você, Lira.
Lira sabia que aquele não era o motivo inteiramente verdadeiro, mas consentiu, deixando que um pedacinho do seu coração se compadecesse por Mabel.
Os alto-falantes chiaram acima de suas cabeças.
— Bem-vindos, agentes e recrutas. A previsão de chegada à Capital é ao anoitecer. A Global Octupus deseja a todos uma ótima viagem.
O trem começou a acelerar aos poucos, alcançando uma velocidade que fazia o cenário externo parecer um borrão cinzento.
— É o impulso magnético — Mabel explicou. — Ele faz o trem se mover em alta velocidade e levitar sobre o trilho.
Ao alcançarem o último vagão, Lira fez uma rápida análise do espaço. Quase todos os assentos estavam vazios, com exceção de dois; um ocupado por uma moça de fones de ouvido e capuz, e outro por um rapaz loiro, que dormia de braços cruzados, com a testa apoiada na janela.
Ela o olhou demoradamente, sentindo algo estranho correr pela pele, feito um espinho ardente e invisível.
— Vamos sentar ali. — Mabel indicou dois bancos na fileira oposta ao do moço e da garota de fones de ouvido.
Lira se sentou ao lado da agente, entrelaçando os dedos. O coração acelerara em compasso com o trem, as batidas misturando-se à respiração densa que saía pela boca.
— Então, Lira... — Mabel cruzou e descruzou as pernas. — Algum motivo para ir à Capital com tanta urgência?
Pensou rápido; nada poderia entregar sua verdadeira identidade.
— Vou visitar uma amiga que está muito doente.
— É grave?
— Sim. Mabel... — E se esforçou para perguntar sair em um tom casual: — Você sabe como se faz para conseguir um colar octógono limpo? Tenho um conhecido que também quer visitar essa amiga, mas não pode atravessar a barreira porque não tem um colar.
— Só o pessoal que trabalha para a Global Octupus e os agentes da SIO têm autorização para adquirir e distribuir os colares. E o processo é chato e bem burocrático. Como você conseguiu o seu?
Seus ossos trincaram por um momento.
— Hã... Meu pai trabalhava para a Global Octupus, mas faleceu. Ele sempre quis que eu estudasse na Capital.
— Entendi. Aproveite a oportunidade. Há ótimas universidades lá. Você tem outros parentes vivos?
"Você precisa me prometer, Lira", a voz de sua mãe bradou em sua cabeça. "Prometa para mim. Prometa que se esquecerá de tudo e que recomeçará".
— Não — disse baixo, e torceu para a agente não captar nenhuma falha em sua voz.
Para sua sorte, Mabel não fez mais perguntas. Havia um cansaço visível no semblante dela. Não conversaram mais. Lira olhou para o moço loiro. Continuava dormindo. Virou o rosto para a janela e fechou os olhos. Não pretendia dormir, mas a viagem longa, a tensão constante, a sombra estranha que havia visto nas costas de Mabel e os pensamentos na mãe e na irmã a fizeram mergulhar em um sono profundo.
Acordou com alguém sacudindo o seu ombro. O coração disparou e os olhos se abriram; Lira saltou no banco e puxou a faca em reflexo, assustada por ver que não estava no velho cômodo da baía dos escravos.
— Calma. — O olhar de Mabel se estreitara, atravessado por um arco surpreso. — Você está no trem. Perdeu a noção do espaço?
— Acho que sim. — Guardou a faca, lançando um olhar rápido para a janela. Já havia anoitecido. — Desculpa.
— Você tem um reflexo bom, uma boa guarda. Só parece estar sempre na defensiva, até quando dorme, como se alguém fosse te atacar ou te bater. Enfim... Vou até o vagão-restaurante, hã, beber alguma coisa. Não saia daqui. Quer que eu traga algo para você?
Negou. Mabel girou, cruzando as portas automáticas do vagão que se abriram à sua presença. Novamente, a impressão de uma sombra esquisita junto à agente se lançou em um flash fugaz sobre os olhos de Lira.
Num pulo, ela se levantou, seguindo Mabel apenas até a passagem entre um vagão e outro. Mas, mais uma vez, aquilo havia sumido. Será que estava alucinando por causa do estresse? As portas automáticas se fecharam, apagando a imagem de Mabel. Deveria ter pedido alguma coisa para comer.
Ao se virar para retornar ao banco, notou que o rapaz havia acordado e estava em pé, ajeitando a jaqueta de couro sobre os ombros largos. Ele era alto, com os músculos dos braços bem demarcados embaixo das mangas escuras; e, sob as luzes frias e fluorescentes, os fios claros dos cabelos espessos pareciam contornados por um sutil brilho azulado. Não olhou em nenhum momento para ela, concentrado em algo dentro da mochila.
Lira desviou momentaneamente a visão, focando-se nas janelinhas. Um breu maciço engolia o exterior, assomado a uma névoa fria, que contrastava com a quentura que subia em seu sangue.
Ele fechou o zíper da mochila, retomando a atenção dela, e o movimento fez com que o tecido da jaqueta erguesse um pouco, revelando para ela uma adaga presa ao cinto dele. Era diferente, brilhante, como se fosse feita de um vidro cristalino.
Um formigamento subiu por suas mãos; uma necessidade quase esmagadora de tomar para si aquela adaga. Lira reprimiu a vontade. Não iria roubá-la de um recruta, dentro do trem da SIO, mesmo tendo uma habilidade admirável com furtos. Não queria problemas. Não queria ser notada.
Mas a adaga parecia puxá-la como se fosse um ímã e, ela, o metal.
O rapaz se virou, e Lira notou que ele vinha em sua direção — na direção das portas, talvez para ir ao vagão-restaurante.
Ignorando o instinto de autopreservação e confiando na destreza, andou na direção do rapaz enquanto fingia analisar as próprias unhas.
O ombro dela se chocou ao dele, simulando uma colisão acidental; sua mão se moveu rápida e ligeira para roubar a adaga, e antes que pudesse apanhá-la, a mão dele agarrou o seu pulso, puxando-o para cima enquanto forçava o choque dos seus olhares.
— O que pensa que está fazendo?
Os dedos dele geravam um aperto quente em torno do seu pulso.
— Nada. Me solte.
— Acho que você ia me roubar — ele sibilou sem soltá-la, as íris verdes faiscando. — Não ia?
A negação de Lira foi engolida por um barulho colossal quando algo pareceu atingir a lateral esquerda do trem, do lado de fora.
O vagão vibrou.
Ela aproveitou a distração do rapaz para libertar o pulso.
Com as sobrancelhas franzidas, ignorando o ocorrido, ele volveu a encará-la, querendo retomar a discussão.
Outro impacto, ainda mais forte, foi desferido contra a lateral externa do trem. O trem flutuante oscilou. Lira e o rapaz quase caíram.
Mais um impacto veio. Mais forte.
A garota dos fones de ouvido baixou o capuz, olhando assustada para os lados.
O trem continuava correndo. As pancadas não cessaram.
— Que merda é essa?! — ele ralhou.
— Será que é um ataque dos rebeldes?! — a outra garota gritou.
Lira arquejou quando uma camada de gelo, feito uma teia de aranha, se espalhou por todas as janelas. A temperatura caiu. Ela conseguia ouvir os gritos apavorados vindo dos outros vagões.
Tentou se equilibrar, buscando sustentação nas barras de aço; contudo, o impacto seguinte foi muito mais intenso, e reverberou por todo o comprimento do trem.
As luzes se apagaram de uma só vez.
O rapaz abriu a boca para xingar, praguejar; não conseguiu falar. O vagão virou. Ele e Lira foram arremessados em um banco. A testa dela bateu no ombro dele, seus joelhos colidiram, e eles rolaram para o chão quando o vagão virou outra vez.
A garota dos fones gritou.
O trem estava capotando.
A sensação do mundo girando confundiu a percepção de Lira. A escuridão taciturna retorcia sua visão. Sentiu as mãos do rapaz segurarem seus braços. Os berros nos demais vagões eram grunhidos abafados. O atrito do metal com o solo e os trilhos ecoava feito um som torturado e arranhado.
Em algum momento, o vagão parou de capotar e tudo se calou.
Ela gemeu baixo; o corpo inteiro latejava.
— Vocês estão bem? — a outra garota perguntou, e Lira captava os movimentos arrastados dela pelo chão, para se aproximar deles.
Comprimiu os olhos quando uma luz azulada encheu o vagão.
Assim que se acostumou à claridade, suas pálpebras se abriram. O rapaz, ao seu lado, segurava um pequeno círculo brilhante nas mãos. Podia sentir o ritmo acelerado do coração dele, ou seria o dela próprio? Entreolharam-se. A estranha iluminação projetada pelo dispositivo brilhava contra os traços fortes do rosto dele, e era possível ver um tênue reflexo no verde claro de seus olhos. Com os lábios entreabertos, ele a fitava como se também estivesse espreitando cada um dos seus traços.
— Como vocês dois se chamam? — Nenhum dos dois respondeu a garota. — Vamos, gente, quase morremos. Como vocês se chamam?
— Lira — disse, esfregando o braço dolorido.
— E você?
— Aram. — E soltou o dispositivo no ar, que flutuou entre eles.
— Meu nome é Sara, sou uma recruta como vocês. — Ela respirava rápido, e graças à luz emitida pela bolinha flutuante, Lira podia enxergar o piercing na boca dela, os cabelos curtos e o filete de sangue que escorria do alto da testa. — O que aconteceu? Será que os rebeldes conseguiram atacar o trem? Eles sempre tentam retaliar a SIO.
Ela não conseguia pensar; a cabeça girava, como se ainda estivesse capotando no vagão. Viu Aram se levantar, um tanto cambaleante, e forçar a porta automática, que não se abriu.
— Estamos presos. O sistema deve ter sido comprometido.
— Pelos deuses! — Sara arfou, as mãos espalmadas no vidro congelado da janelinha.
Lira se arrastou até a outra janela. Esfregou a superfície embaçada. Do lado de fora, o escuro da noite sufocava o deserto. Forçou os olhos. Enxergava uma parte retorcida do trem. Pela posição bizarra, ele havia saído dos trilhos e entortado com os impactos; e os primeiros vagões estavam pendurados em um precipício, oscilando no vazio, prontos para despencarem e levarem todo o resto junto.
Movendo-se com cuidado, Aram tentou forçar a porta outra vez.
— Merda. — E esbravejou vários palavrões. — Está travada.
O vagão rangeu, sendo arrastado lentamente para frente, em direção ao precipício. Lira não fazia ideia de quanto tempo o trem aguentaria.
Os olhos de Sara aumentaram.
— Não dá para passar pelas janelinhas, mas temos que sair daqui! Vocês estão enxergando a lâmina laser de emergência em algum lugar?
Lira e Aram a encararam com uma curva de confusão nas faces.
— Protocolo 459-8 do manual da SIO, capítulo sobre segurança em situações de risco! — ela exclamou, estarrecida. — Vocês não estudaram não?! Como passaram nos exames admissionais?!
Nenhum dos dois respondeu.
Sem perder tempo, Sara tateou as paredes. Exclamou de satisfação ao encontrar o que procurava. Feixes vermelhos foram emitidos da ponta da lâmina quando Sara a encostou na parede de metal para cortá-la.
O vagão balançava sem parar. A pulsação de Lira atingia uma velocidade nunca alcançada antes. Aram apanhou sua mochila e foi até Sara.
Uma lufada de ar atingiu a nuca de Lira. Virou a cabeça. Algo se moveu muito rápido pelo chão, passando por debaixo da porta. Ela se arrastou, os joelhos reclamando do ato, tentando alcançar aquela coisa.
— O que foi? — Aram perguntou.
— Alguma coisa passou aqui. Tenho certeza.
Ele chiou algo que ela não entendeu.
A mão de Sara tremia. A parede cedia devagar ao corte do laser.
Um vermelho incandescente se espalhou pelo lado de fora do metal. O trio arregalou os olhos. A abertura surgiu diante deles.
— Venham! O trem vai cair! — Dois agentes da SIO gritaram e os ajudaram a sair um a um de dentro do vagão.
Lira despencou no chão; o ar saía dos seus pulmões em um assovio doloroso e sobressaltado. A neblina comungava com os ventos da noite.
Olhou em volta.
Havia muitos recrutas e agentes espalhados pelo descampado.
Escutou um ganido latente, como um uivo final do metal.
Assustados, todos recuaram o mais rápido que conseguiram.
E o trem despencou por completo, desaparecendo na imensidão do precipício, deixando apenas um rastro de fumaça e fogo para trás.
Reza a lenda que o Aram achou que a viagem seria tediosa kkkk
Não se esqueça de clicar na estrelinha ♥
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