Capítulo 6
I have screamed until my veins collapsed
I waited as my time's elapsed
Now all I do is live with so much fate
I've wished for this, I've bitched at that
I've left behind this little fact
"You cannot kill what you did not create"
I've gotta say what I've gotta say
And then I swear I'll go away
But I can't promise you'll enjoy the noise
Duality - Slipknot
Leonardo estava sentado no banco da praça, tão quieto quanto uma rocha, aguardando sua única amiga dar o ar da graça.
Pela primeira vez em Labramar, ocorreria a feira dos quadrinhos; Um evento extremamente interessante onde donos de HQs antigas punham seus quadrinhos à venda por preço de sebo ou trocavam por revistas novas, o que deixava Leonardo extremamente animado. Clara sempre dizia que ele possuía quadrinhos demais, mas o garoto não se importava; Antes ter muitos quadrinhos do que muitos fracassos.
Infelizmente, ele colecionava ambos.
Como Clara não estava mais ali, foi necessário apenas dizer para Leonor que sairia com uma amiga. A avó não conhecia essa amiga, mas já havia ouvido falar de Helena algumas vezes. Todos os dias, após o horário do almoço, Leonor perguntava para o garoto como havia sido seu dia. E ele normalmente não tinha muito mais a dizer além de suas conversas intermináveis com Helena.
Leonor apenas ria e dizia que aprovava essa amizade; Relatava estar feliz que Leonardo estava fazendo amigos. Quando disse à avó que iria sair com sua nova amiga, ela o incentivou; Achava que Leonardo ficava muito tempo em casa, lendo e assistindo a filmes de super-heróis.
Convencer Helena a ir com ele não foi difícil. Ela lhe devia um passeio nos seus moldes depois do que havia ocorrido com Júlia, Douglas e Ângela. E, por incrível que pareça, ela soou animada; Parecia ansiar muito por conhecer melhor os interesses de Leonardo.
一 Espero que seja tudo tão divertido quanto você diz. 一 E piscou, voltando a ouvir seus álbuns preferidos de Heavy Metal.
A dificuldade, no entanto, era fazer a garota comparecer pontualmente ao local marcado. Já eram oito e meia, e a feira fecharia dez horas. Leonardo trazia um pacote de HQs velhas (porém em excelente estado!) debaixo do braço, ansioso para trocá-las por novas edições, mas a garota não aparecia. Como ele iria interagir com outras pessoas sozinho?
Questionou o que havia acontecido com Helena para que ela tivesse se atrasado. Será que havia se esquecido? Ou havia se perdido no meio de Labramar? Talvez ela houvesse... Leonardo se culpou por esse pensamento, mas e se ela tivesse morrido nesse meio-tempo?
Enquanto ele se atormentava com pensamentos perturbadores, um ônibus parou ao seu lado. Algumas pessoas deixaram o veículo, e todas pareciam cansadas; Era uma quarta-feira exaustiva. No meio delas, contudo, estava Helena.
Leonardo sorriu ao ver a amiga; Ela não havia se esquecido, nem se perdido, muito menos morrido. Ah, essa mente brincalhona que lhe pregava peças absurdas...
一 Helena! 一 Ele disse, abraçando-a em seguida. Helena devolveu o abraço.
一 Desculpe a demora. Eu perdi o ônibus. 一 A garota estava ofegante. 一 O patrão segurou a gente até 19:15 hoje. Foi um saco. Aposto que não irei receber a mais por isso.
E revirou os olhos, indignada. Leonardo, todavia, estava feliz que ela havia comparecido.
一 Cheguei a achar que você não viria. 一 Confessou ele.
一 Você precisa pensar menos coisas erradas de mim. 一 Brincou. 一 Eu sou perigosa e nem um pouco confiável. Mas não sou uma furona.
E logo suas atenções foram desviadas para as revistas que Leonardo tinha em mãos.
一 Você veio preparado, uh? 一 Reparou. 一 O que é tudo isso?
一 Ah... São HQs. 一 E mostrou os volumes para Helena. 一 Tem da Marvel e da DC. Do Batman, do Homem de Ferro, do Hulk, dos X-Men, do Superman...
一 Bastante coisa. 一 Um sorriso aparecia em seu rosto ao passo em que ela conferia as revistas de Leonardo. 一 Tem da Mônica?
E foi inevitável que o garoto exprimisse uma leve decepção.
一 Não. 一 Respondeu. 一 Só tem de super-heróis.
一 Que pena. 一 Helena o puxou pelo braço. 一 Vamos. Alguém deve ter revistinhas da Mônica em algum lugar por aqui.
***
No auge de seu funcionamento, a feira estava a todo vapor. Pessoas conversavam aqui e ali sobre as HQs que tinham em sua posse, alguns faziam cosplays de personagens, e Leonardo estava certo de que aquele lugar era o paraíso.
Helena, ao seu lado, parecia tão animada quanto ele. Um rapaz muito bonito vestido de Thor o cumprimentara e eles trocaram telefones; Aquilo deixou Leonardo levemente incomodado, mas não o bastante para interromper sua experiência.
一 O que está achando? 一 Conforme caía a noite, algumas pessoas vendiam petiscos na praça. Era um bom passeio.
一 Eu gostei do pessoal. 一 Do moço vestido de Thor, ele supunha. 一 Só não gostei da música.
E Leonardo gastou um tempo para ater-se ao som. De fato, não era de seus preferidos. Um funk carioca que ele desconhecia, uma letra pegajosa que serviria muito bem no carnaval, e uma batida repetitiva que encorpava a música. Apesar de não ser o maior fã do estilo, Leonardo não tinha absolutamente nada contra ele.
一 Não gosta de funk? 一 Em verdade, não era Leonardo um grande fã de música.
Helena fez que não.
一 Gosto de outro tipo de música. 一 Ela respondeu. 一 Prefiro as que têm letras bonitas e com significados profundos.
Embora não quisesse julgar, o olhar de Leonardo repousou diretamente sobre suas vestes: Uma camiseta do Cannibal Corpse.
E Helena, notando a hipocrisia, se pôs a rir.
一 Tudo bem, vai. 一 Respondeu, sem que Leonardo tomasse a ousadia de pronunciar uma palavra. 一 Eu só gosto de música esquisita. Por isso eu não gosto de funk.
一 E de gente esquisita. 一 Completou ele. 一 Por isso você está comigo.
一 Basicamente. 一 Sorriu.
Leonardo trocou as suas primeiras HQs com uma moça muito bonita vestida de Viúva Negra. Foram duas do Batman e uma do Hulk; As novas versões que tomou em mãos eram versões que ele jamais havia lido, e estavam em excelente estado. Fora uma boa troca.
一 Consegui novas HQs. 一 E mostrou suas quatro novas revistas para Helena. 一 Estes volumes parecem ótimos. Mal posso esperar para lê-los.
一 Parecem bons. 一 Helena observou as revistas com os olhos miúdos. 一 E o telefone da moça, você conseguiu?
Leonardo franziu a testa. Aquilo sequer passou pela sua cabeça.
一 Eu...
Imediatamente, Helena se pôs a rir.
一 Eu estou brincando. 一 Respondeu, serena. 一 Mas ela é muito bonita. Se fosse comigo...
E deixou no ar. Leonardo sabia o que estava implícito nestas entrelinhas; E, desta forma, riu junto da garota.
一 Por que não pede você? 一 Sugeriu. 一 Tenho certeza que ela consideraria com carinho.
一 Ah, deixa para lá. 一 Helena balançou a cabeça para os lados. 一 Ela tem cara de hétero.
一 Você também tem cara de hétero. 一 Leonardo provocou.
Helena espremeu os olhos.
一 Eu nunca fui tão ofendida em toda a minha vida.
E ambos caíram juntos numa deliciosa gargalhada.
— Você quer alguma coisa? — Leonardo mostrou os gibis para Helena. — Se você quiser, eu te dou um deles.
— Pra mim? — Helena levou o indicador ao peito. — Mas eles são suas preciosidades, Leonardo. Você tem um amor inestimável por estas revistas.
— Eu sei. Mas eu quero que você tome uma. — Insistiu. — Eu gosto de você. E você é minha única amiga. É justo, não é?
Helena esboçou um sorriso de canto de boca. Tomou o amontoado de revistas da mão de Leonardo e analisou uma por uma. Por fim, as devolveu para ele, sem pegar uma única sequer.
— Eu não entendo muito de super-heróis. — Disse.
— Ah, Helena... — Leonardo estava praticamente implorando. — Por favor... Você não vai se arrepender...
No fundo, ele queria que Helena levasse um pedaço dele com ela. Que ela se lembrasse dele quando estivesse longe. Contudo, Leonardo não diria isso à garota; O rapaz se sentia uma piada.
— Acho que elas serão mais úteis na sua mão. — E Helena, por sua vez, não se sentia digna. — São suas, Leonardo.
— Não, eu... — E, de repente, teve um clique. — Você gosta da Mônica, não gosta?
— Sim. — Concordou Helena. — Mas por que você...
— Espere um segundo.
E, disparando como um raio até a barraca seguinte, Leonardo saiu sem sequer olhar para trás.
Havia um moço trocando alguns gibis da Turma da Mônica por outras revistas em bom estado. Leonardo teve de escolher qual de suas revistas antigas ele gostava menos — O que era difícil, pois ele tinha um apreço por todas. — E, por fim, trocou uma do Batman por um gibi do Cebolinha. Talvez uma troca que não valesse à pena, mas ele não se importava. Era seu presente para a sua melhor amiga.
— EI, HELENA! — Leonardo balançou as revistas acima da cabeça. — EU TROUXE UM GIBI PARA VO...
Antes que ele pudesse voltar para a garota, foi encurralado por dois rapazes mal encarados.
Os dois estavam encapuzados, traziam uma faca em mãos e pareciam muito irritados. Eles fuzilavam Leonardo com o olhar e não queriam diálogo; O forçaram a caminhar até a parede, longe do movimento. Mas... Que movimento? O rapaz olhou ao redor e percebeu que as ruas estavam completamente vazias; O relógio já marcava mais de nove e meia.
— A enteada do Ferreira. — Eles rugiram. — Onde ela está?
— Q-quem são vocês? — Ele tremia. Suas mãos suavam. — O-o que estão fazendo aqui?
— Francisco Ferreira. — Um deles prensou o garoto contra a parede. — O maior filho da puta da região. Onde está a sua enteada?
— E-eu não sei de quem você está falando. — O rapaz jamais havia ouvido aquele nome em toda a sua vida. — Por favor, me deixe ir...
— VOCÊ ESTAVA COM A ENTEADA DELE! — O segundo grandalhão berrou. — DIGA ONDE ELA ESTÁ.
— V-você... — Ele quase urinou nas calças. — Você está falando de Helena?
Ele sabia onde encontrá-la. Estava ali há menos de um minuto; Olhou por trás dos encapuzados e, para sua surpresa, Helena não estava mais lá. Ela o havia deixado sozinho com os bandidos.
Aquela garota era a pior amiga do mundo.
— ONDE ELA ESTÁ? — O encapuzado número 2 apertou a faca contra sua garganta. — DIGA SE NÃO QUISER PERDER A VIDA.
— Eu não sei. — Agora, ele sentia mais ódio do que medo. Iria morrer, e a culpa era de Helena. — Ela sumiu e me deixou sozinho com você. Vou morrer, mas você não vai encontrar quem procura.
— EU NÃO ACREDITO NO SEU TEATRINHO. — Que teatrinho? Era nada mais do que a verdade. — NÓS CONHECEMOS O SEU TIPO.
Leonardo apertou os olhos. Sabia que ia morrer; Lambeu os próprios lábios, sentiu suas pernas balançarem e as revistas caírem sobre seus pés. Era a hora de se despedir desse mundo cruel, o mundo que o havia feito confiar em Helena, a pior amiga de toda a história da humanidade.
Enquanto ele refletia sobre todas as maldições que havia passado enquanto vivo, ouviu um dos bandidos soltar um grito, e um ruído metálico atingiu seus tímpanos. Quando abriu os olhos, Leonardo reparou que a autora daquela obra era ninguém menos que Helena; Ela havia feito o bandido número um torcer o pescoço, e lutava contra o segundo bandido com a faca que o primeiro havia derrubado.
Quando ela esfaqueou o encapuzado nos testículos, lançou um olhar desesperado para Leonardo e ele soube que era hora de correr. Helena o acompanhou, louca para despistar os bandidos. Enquanto o primeiro tentava se recuperar do torcicolo e o segundo agonizava com dor nas partes baixas, os garotos buscavam um canto para se esconder. Por fim, adentraram uma viela escura onde apenas alguns gatos pretos miavam e uns ratos gordos caminhavam; Finalmente, a saída daquela perseguição agonizante.
Ofegantes, os dois se refugiaram em seu ponto de segurança. Leonardo ouvia o sangue bombeando dentro de sua cabeça; Era a pior sensação que ele havia experimentado em toda a sua vida.
一 Ainda bem que o Douglas me ensinou um pouco de artes marciais. 一 A garota era muito versátil. Ela fazia de tudo. 一 Se não fosse isso...
一 O que aconteceu? 一 A cabeça de Leonardo girava. 一 Quem eram aquelas pessoas?
一 Me desculpe... 一 Sussurrou Helena. 一 Eu não sabia que aqui era território dos rivais do meu padrasto. Jamais teria te posto em risco.
一 Como assim? 一 Algo não estava certo. 一 Do que você está falando?
Helena balançou a cabeça, não querendo entrar naquele assunto.
一 Esqueça. Eu tomei a péssima decisão de te acompanhar num lugar onde não sou bem vinda. 一 Era a informação que ela estava disposta a dar. 一 Eu sou incrivelmente burra.
一 Obrigado por ter voltado. 一 Apesar da situação estar parcialmente nebulosa, ele sentiu que teria de agradecer. 一 Eu não teria sobrevivido sem você.
Helena sorriu, gentilmente.
一 Acho que eu vou ter que chamar um uber para voltar para casa. 一 Murmurou. 一 Não posso me dar ao luxo de gastar tanto assim, mas também não posso esperar naquele ponto de ônibus.
一 Eu pago para você.
Helena voltou-se a Leonardo. Ele tinha cinquenta reais no bolso, que Leonor o havia dado para que comprasse revistas novas. Embora seus exemplares estivessem, agora, perdidos no meio da rua, ainda havia lhe restado o dinheiro.
一 Eu gostaria de recusar, Maria-mole. 一 Helena ergueu uma sobrancelha. 一 Mas eu sou extremamente sem-educação. Além disso, realmente estou precisando economizar...
一 Eu te devo essa. 一 Respondeu. E imaginar que ele chegou a duvidar de sua amizade! 一 Qual o seu endereço?
***
Após um dia cansativo, Helena estava de volta ao tormento que era o seu lar. Muitas coisas se passavam pela sua cabeça e nada lhe fazia brilhar mais os olhos do que a possibilidade de sair da casa de seu padrasto, Francisco. No entanto, como iria se manter com seu mísero salário de 800 reais por mês?
Tirou a chave do bolso, destrancou a porta, andou na ponta dos pés na esperança de não ser percebida. Todo dia ela realizava aquele ritual; Às vezes funcionava, porque Francisco estava mais concentrado nas partidas de futebol e em sua cerveja do que em qualquer outra coisa, mas às vezes...
一 Já chegou, Helena? 一 Disse ele, com a voz rouca, esparramado no sofá. Helena suspirou.
Francisco era um homem de meia idade, cujos cabelos e barba grisalhos desgrenhados faziam-no parecer um homem das cavernas. Os banhos lhe eram raros; Uma vez a cada mês, mais ou menos. Tinha um nariz pontudo e uma pança saliente, Helena o achava extremamente nojento. Gastava seu tempo indo a prostíbulos 一 Onde ele sempre escolhia uma adolescente para levar a sua casa, garotas na faixa dos 16 e 17 anos. 一 e bebendo as cervejas mais caras do mercado. Toda a sua fonte de renda era originária de um esquema de drogas ilícitas que Francisco vendia, certamente o traficante mais preguiçoso da região.
一 Não. Eu sou um holograma. 一 Ríspida, ela não estava disposta a muita conversa. 一 Me deixe em paz.
Para a infelicidade da garota, o padrasto raramente atendia aos seus apelos.
一 Atrasou hoje. 一 O velho grunhiu. 一 São quase dez horas.
Sua melhor resposta era simplesmente não responder.
一 Quando você recebe? 一 Seus interesses sempre visavam o dinheiro. 一 Está faltando comida aqui em casa.
一 Não interessa. 一 Rosnou ela. 一 Se você gastasse menos com cerveja e com prostituição, garantiria o pão de cada dia.
一 Mais respeito comigo, garota. 一 Francisco ergueu o dedo indicador.
一 Por que eu te respeitaria? 一 Debochada, ela deu de ombros. 一 Você não é meu pai.
一 E quem é seu pai, garota?
Imediatamente, Helena se calou. Aquele era um assunto sensível para ela.
Quando Sabrina, sua mãe, engravidou a primeira vez, sua idade era de apenas dezoito anos. O homem que a havia feito gerar uma nova vida lhe disse que não poderia assumir esta responsabilidade e sumiu. Fingiu que jamais a havia conhecido. Dessa forma, Sabrina teve Helena sozinha em um barracão, acompanhada somente de uma senhora compadecida, já que sua família a havia abandonado por ter mantido relações sem estar casada. Jovem demais para criar uma filha sozinha, dois anos depois ela se casou com Francisco 一 Um homem 20 anos mais velho. 一, a oportunidade que apareceu no prostíbulo onde ela permaneceu por quase um ano. Talvez, pensou ela, ao se casar teria mais estabilidade e poderia dar uma vida melhor para sua filha.
Ledo engano. Francisco nada mais era que um explorador, que fazia com que Sabrina se esgotasse na lanchonete que trabalhava apenas para que ele pudesse tomar mais cervejas. Quando o homem resolveu engordar sua renda com venda de drogas, Sabrina não se opôs; Estava cansada demais para discutir, e realmente precisava de dinheiro. Ainda que ele usasse sua filha, de apenas seis anos, como peão, ao menos conseguia trazer comida para a mesa.
Quando João Lucas veio, as coisas se tornaram mais difíceis. Com mais uma boca para sustentar, pareceu inviável uma sobrevivência sem o tráfico de drogas. Helena, que tinha apenas sete anos, se pôs a trabalhar como empregada doméstica para uma família de clientes de Francisco, onde sofreu diversos abusos físicos e psicológicos. Hoje, aos dezoito anos, tudo o que ela queria era vê-los pagando por isso; Como eram ricos, porém, ela sabe que isso dificilmente acontecerá.
Quando a moça tinha apenas catorze anos, Sabrina foi vítima de um câncer cerebral incurável. Foram meses de agonia orando para que ela sobrevivesse a essa desgraça 一 Com a qual Francisco parecia não se importar. 一 mas, infelizmente, o pior aconteceu. Helena fora deixada aos braços de Francisco mal havia completado quinze anos de idade.
E aquele homem era o seu pior pesadelo. Apesar de jamais ter tentado algo contra Helena, sua predileção por adolescentes a apavorava. Todo dia ela dormia com a porta trancada, com medo de que o padrasto pudesse atacá-la de alguma forma, e a única coisa que ainda reacendia suas esperanças na vida era João Lucas.
Helena vivia para ele e por ele. Usado de mula pelo pai, ele não fazia ideia das coisas que haviam acontecido dentro daquela casa. E, na inocência de seus onze anos de idade, ela preferia que ele não soubesse.
一 Não é da sua conta. 一 Disse ela, abrindo a geladeira e descongelando um prato de comida que havia preparado de manhã. 一 Por que você se casou com a minha mãe, afinal?
一 Porque eu sou louco. 一 Desdenhou. 一 Agora, seja útil ao menos uma vez na vida e busque uma cerveja para mim.
Helena bufou, abriu a geladeira novamente e retirou dela uma lata gelada. Com desgosto, ela a entregou a Francisco. Apesar de desprezá-lo no fundo de seu âmago, não podia negar que tinha medo dele.
Sua mãe jamais imaginaria. Ela pensava que a garota era inocente demais para entender, mas Helena entendia. Ela percebia as agressões de Francisco, todas as vezes que Sabrina aparecia com um roxo nos braços ou nas pernas. Ela ouvia seus gritos, ouvia suas súplicas desesperadas. Francisco era um verdadeiro monstro, em todas as suas esferas. Dividir teto com este homem era como um campo minado; Ela tinha que se proteger de todas as formas possíveis, a fim de manter sua integridade.
Como se isso não fosse o bastante, Helena também tomara para si a responsabilidade de proteger o jovem João Lucas. Ele era o cristal mais puro da terra; Alheio a todo o horror do mundo, o menino gostava de gibis e de criar histórias. Como Francisco não era exatamente o melhor pai do mundo, quem lhe dava o suporte que ele precisava era Helena.
O menino estava sentado em um canto mofado da sala, divertindo-se com uma revista do Cebolinha. Ele adorava a Turma da Mônica; Helena sorriu de canto de boca ao perceber a inocência do garoto. Gostaria de trazer uma revistinha para o garoto de sua aventura tão trágica, mas sabia que apenas ter saído viva daquele tormento foi uma bênção.
一 João? 一 Ela chamou, tão logo Francisco pegou a lata de cerveja de suas mãos.
O menino ergueu os olhinhos, escuros como a noite. Tinha um cabelo volumoso e cacheado, lábios grossos e pele cor de mogno. Não se parecia em nada com Helena, mas ainda assim era o seu maior tesouro.
No momento em que focalizou a irmã, João correu em sua direção e a abraçou. Ele era precioso como uma jóia.
— Como você está, meu amor? — Perguntou ela, dedilhando seus cachos com os dedos. — Como foi na escola hoje?
João abriu a boca por cerca de meio segundo para contar à irmã todas as peripécias daquela quarta-feira cansativa, mas Francisco interrompeu:
— Vocês vão mesmo ficar em frente à minha TV?
Ele era mesmo um grande estraga-prazeres em tudo que se propunha. Sem dizer uma palavra, a garota levou o irmão para o quarto; Lá, eles teriam mais liberdade para viver o afeto que Francisco os negava.
Sem perder o fôlego, João sorriu e se pôs a contar todas as coisas que haviam se passado naquele dia, em riqueza de detalhes. Helena apenas sorria. Escutava a tudo atentamente e fazia pequenas intervenções ocasionais para que o garoto não se sentisse falando sozinho. Ele era um verdadeiro anjo, um presente do universo — Em Deus, ela não acreditava mais.
Até que seu celular vibrou em cima da cama. Era uma mensagem de Leonardo.
"Ei", diziam as letras. "Me desculpe por hoje. Achei que seria divertido"
"Está tudo bem :)" Ela teclou. Realmente estava. Os dois estavam vivos, e era o que importava. "Eu quem devo pedir desculpas", completou.
Mas ele não havia terminado ainda. Tentando dissipar o clima ruim da conversa, Leonardo continuou: "Eu vi um meme que me lembrou você". Seguido por diversos emojis de carinhas que riam.
Era um meme do Iron Maiden. Ele sabia que a moça gostava da banda, e isso era significativo para ela. Helena sorriu e digitou de volta: "Você é bobo demais, Maria Mole". E mais alguns emojis de risada.
Ela gostava de Leonardo. Era um amigo fiel e divertido, e a havia despertado sentimentos como poucos haviam. Seu coração era puro e sua inocência era verdadeira.
Ela temia, no entanto, que o garoto a abandonasse ao saber o que acontecia em seu íntimo. Suspirou fundo; Talvez Helena não estivesse pronta para se entregar.
Será que um dia estaria?
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