Capítulo 3
Ela andou e eu fiquei ali
Ou será que fui eu que dali mudei
Como os passos mudos de uma reticência
Ela me olhou, bem!
Quem sabe com ela
Eu teria achado
O que sempre me faltava
Couros, colagens, sons, emoção
Ali - Skank
Quando Leonardo saiu para o intervalo, sua barriga estava roncando. Apesar de não ter trazido nenhum lanche de casa, sabia que poderia se alimentar por ali; A escola servia uma refeição para todos os alunos. E ele mal podia esperar para se satisfazer com as iguarias que seriam servidas ali, talvez um hambúrguer delicioso com um leite bem quente.
Foi quando ouviu dois garotos conversando ao seu lado:
一 Pronto para comer aquele mingau de barata? 一 Disse o primeiro rapaz, rindo.
一 Não, eu trouxe um lanche natural de casa. 一 O segundo balançou um pacote que tinha em mãos. 一 Imagine... me sujeitar àquela coisa horrenda!
一 Sorte a sua. 一 Brincou o primeiro. 一 Infelizmente eu não tive tamanha perspicácia. Espero que meu estômago esteja preparado!
E se acabaram em risadas, divertindo-se com a situação. Mas Leonardo freou; Seriam as refeições daquele lugar tão ruins assim? Seu estômago deu uma cambalhota. Agora, não ter guardado o sanduíche de queijo e presunto pareceu uma péssima ideia.
Ele observava, atento, algumas pessoas que saíam da cantina com uma tigela de mingau em mãos. Nenhuma delas parecia feliz; O cheiro da refeição, tampouco parecia animador. Mas, ainda assim, Leonardo tentou ser otimista. Talvez ele desse a sorte de obter a parte menos grotesca do mingau e, assim, seu horário de lanche não seria tão ruim assim. Bom, era o que ele esperava.
Quando a moça da cantina serviu a papa ensopada, o rapaz quis vomitar. Como alguém conseguia estragar um mingau? Era literalmente apenas farinha e leite. Mas, naquele ali, tinha brócolis, carne, tomate e mais algumas outras coisas que definitivamente não deveriam estar em um mingau. Tudo isso misturado em uma farinha láctea de péssima qualidade, talvez já estivesse até mesmo vencida.
一 O que é isso? 一 E apontou para a tigela. 一 Não é um mingau convencional.
A moça da cantina fez que não com a cabeça.
一 A cozinheira gosta de fazer experimentos. 一 E deu de ombros. 一 Eu sei, não é nada bonito. Mas, bem, eu sigo ordens. Não posso fazer nada.
一 Essas coisas não combinam! 一 Protestou Leonardo. 一 Carne, brócolis, tomate, leite, farinha... E, meu deus, isso aqui está vivo?
一 Se você não quer, então saia da fila. 一 Ela não estava com muita paciência naquele dia. 一 Tem gente querendo esse prato que você está desprezando.
Leonardo grunhiu e tomou a tigela em suas mãos. Apesar do aspecto pouco convidativo, ele precisava comer, e não havia outra opção.
Ele se sentou em uma mesa isolada, longe das outras pessoas, como sempre havia feito na vida. Encarou a mistura de mingau com ensopado algumas vezes, sentiu seu estômago protestar. No entanto, Leonardo precisava ser corajoso. Encheu uma colher com a refeição, tapou o nariz, levou até a boca...
E o estômago não aguentou. A comida mal havia descido por sua garganta e a vontade de regurgitar todo o café veio. Leonardo levou as mãos aos lábios, sentiu suas bochechas se encherem de vômito. Correu até o banheiro, o mais rápido que pôde, e assim que se encontrou com o vaso sanitário, pendurou-se nele e jogou tudo para fora.
Provavelmente as suas últimas três refeições estavam naquela mistura asquerosa de suco gástrico e bolo alimentar. Leonardo jamais havia esvaziado seu estômago com tamanha intensidade antes.
Após um longo martírio na boca da privada, finalmente a sua barriga lhe deu uma trégua. Sentindo o azedo do vômito na boca, o garoto se levantou e respirou com dificuldade. Encarou sua obra, envergonhado, e só então notou as risadas às suas costas.
Era Helena. Ela parecia se divertir imensamente com sua desgraça.
一 Meu deus... 一 E levava as mãos à barriga, intercalando suas palavras com risadas estridentes. 一 Isso foi muito engraçado.
一 EI! 一 Leonardo queria sumir. Não era o melhor de seus momentos. 一 O que você está fazendo aqui? Esse é o banheiro masculino!
一 Eu preciso admitir... Você é hilário. 一 Ela não se importava nem um pouco com o banheiro no qual estava. 一 Quando eu te vi correndo para o banheiro, todo desengonçado, eu soube que isso seria divertido.
一 Ainda não se cansou de rir de mim? 一 Leonardo estava levemente irritado. 一 Eu não sou um palhaço, Helena.
一 Meu deus, como você é chato. 一 E, novamente, ela revirou os olhos. 一 Já tentou ser menos amargurado? Te garanto que a vida fica mais fácil.
一 Eu NÃO sou amargurado! 一 Gritou ele. 一 Você veio aqui somente para me ver vomitando. Como espera que eu reaja? Com flores?
Diferentemente do que ele imaginava, Helena abriu um sorrisinho brincalhão.
一 Na verdade... 一 Disse ela. 一 Eu vim aqui para dizer que você não precisa comer essa gororoba se não quiser.
Leonardo ergueu uma sobrancelha.
一 Servem outra coisa aqui?
Helena fez que não com a cabeça. Isso só o deixou ainda mais confuso.
一 Vem comigo. 一 Ela fez um sinal para que ele a acompanhasse. 一 Não é para todo mundo que eu mostro meu segredinho. Sinta-se privilegiado.
E, sem dar a ele a chance de se manifestar, Helena partiu. O garoto a encarou por alguns segundos, estarrecido, perguntando a si mesmo se realmente aquela jornada valeria a pena. Após algumas reflexões rápidas, concluiu que não.
Mas, bem, talvez ele gostasse de tomar más decisões. Principalmente se essas decisões fossem impulsionadas por garotas misteriosas e indecifráveis.
Correndo atrás de Helena, o rapaz sentia-se vivendo uma deliciosa aventura. A que ela poderia levá-lo? Ele não tinha ideia, mas seria divertido. A moça parecia não ter freio, percorrendo o pátio num ritmo acelerado e abrindo espaço em meio às pessoas, fazendo com que Leonardo trombasse com várias delas enquanto a acompanhava.
Quando Helena finalmente alcançou um corredor sujo e escuro, Leonardo cogitou abandonar a missão. Era um espaço de depósito de lixo nos fundos da escola, que não esboçava nenhum mínimo sinal de vida além de uns ratos gordos e umas baratas tontas. A rinite atacou, ele começou a espirrar; Aquela aventura não se parecia mais com uma boa ideia.
一 Você está bem? 一 Questionou Helena, ao ver o nariz de Leonardo escorrer.
一 Estou. 一 Era apenas parcialmente verdade. 一 O que você pretende fazer aqui? Não tem muita coisa além de lixo de animais grotescos.
一 Tem uma escada no final do corredor. 一 Ela apontou para um ponto longínquo ao longe. 一 Vamos subir por ela e sair pelo telhado. Há um empilhamento de caixas nos fundos, não se preocupe, conseguimos descer em segurança.
Leonardo piscou por alguns segundos. Ela só poderia estar brincando. Apesar de ser um dos seus super-heróis favoritos, bancar o homem-aranha era a última coisa que estava em seus planos.
No entanto, ela estava falando sério.
一 Não é mais fácil a gente só... 一 Parecia óbvio para ele. 一 Sair pela porta?
Helena revirou os olhos.
一 Se você conseguir enganar o guardinha da saída, pode tentar. 一 E, naquele exato momento, ele se sentiu um pouco estúpido. 一 Se não conseguir, então vamos fazer as coisas do meu jeito, está bem?
Sem muita opção, o garoto fez que sim. Ela retornou então em sua missão suicida; Abriu caminho entre os entulhos e fez Leonardo engolir em seco quando uma barata passou pelo seu pé. Seguir Helena estava começando a ficar nojento e perigoso.
Ao chegar no destino final, Leonardo quis protestar. A tal escada a que Helena se referia era provavelmente ferro velho, descartada há tempos; Estava mais enferrujada do que qualquer outra coisa que ele havia visto na vida.
一 Você não pretende subir aí, pretende? 一 Talvez houvesse ainda um pingo de sanidade na garota. 一 Não quero me arranhar aí e pegar tétano.
Como sempre, ela apenas o encarou como se ele fosse um idiota.
一 É só você não se arranhar. 一 E, ignorando completamente o receio de Leonardo, ela subiu pela escada que já deveria ter sido descartada há tempos.
Leonardo bufou. Já havia se cansado de perguntar para a sua própria razão se aquilo valia a pena, e a resposta era sempre "não". Ignorando as súplicas mais profundas de sua alma, ele subiu com a maior cautela do mundo na carinhosamente apelidada por ele de "escada do inferno", torcendo para não contrair duzentos tipos de doenças diferentes no processo.
Quando ele terminou a escalada, ela já esperava por ele no telhado.
一 Viu? 一 O tom debochado com que ela sempre se dirigia a ele era no mínimo irritante. 一 Não foi muito difícil, foi?
Ele não queria responder. Estava todo suado, sua camiseta grudada no corpo. Como se a escada enferrujada não bastasse, o telhado não era muito confiável; Aquelas telhas aparentavam ser bastante escorregadias, com um lodo acumulado de muito tempo.
一 A pilha de caixas deve estar por lá. 一 Helena apontou para o lado. 一 A gente pode descer por ali.
一 O que acontece se eu escorregar? 一 O rapaz estava receoso de dar o primeiro passo. Uma pisada em falso, e ele cairia feito uma jaca em direção ao chão.
一 Você morre. 一 Respondeu Helena, sorrindo.
Leonardo sentiu seu coração disparar. Não ter desistido antes era o seu maior arrependimento.
一 Isso é sério? 一 Com o sangue subindo à cabeça, ele estava prestes a explodir.
一 Claro que não, imbecil. 一 Ela lhe deu um tapa na nuca. 一 Já aconteceu comigo algumas vezes. Talvez você quebre uma perna, no máximo. Não é agradável, mas você supera.
一 Eu... 一 Quebrar uma perna era menos pior do que morrer, mas ainda assim não entrava no seu conceito de "seguro". 一 Não quero quebrar uma perna.
Helena deu de ombros.
一 Então tente não cair. 一 E, com maestria, seguiu seu caminho entre as telhas, fazendo tudo parecer muito fácil.
Leonardo tentou dar o primeiro passo. Escorregou de primeira, caindo nas telhas e batendo a boca no revestimento. Xingou-se mentalmente; Ele não iria conseguir. Era melhor que retornasse pela escada e desistisse de toda aquela aventura esquisita.
Foi quando Helena percebeu que ele realmente precisava de ajuda.
一 Vem, Maria-mole. 一 E ofereceu seu corpo de apoio. 一 Eu vou te ajudar. Se você se machucar, eu me machuco junto com você, está bem?
Não eram dizeres lá tão animadores, mas ao menos era uma ajuda. Não tendo muito para onde correr, Leonardo se levantou e apoiou seu corpo no da garota; Ela lhe dava mais estabilidade e o rapaz se sentia mais seguro.
一 Por que Maria-mole? 一 Ele tentou desviar a atenção, na tentativa de se sentir menos patético.
一 Não sei. Achei que combinou. 一 Ela estava sempre com um sorriso no rosto. 一 Você gostou?
一 Definitivamente não. 一 Negou, com veemência.
一 Certo. Então vou te chamar de Maria-mole daqui para frente. 一 Claro. Tolo foi ele de achar que sua opinião valeria de alguma coisa. 一 Nós já estamos chegando, Maria-mole. As caixas ficam por ali.
Felizmente, ela estava certa. Havia um empilhado de caixas ali por perto, na calçada que dava acesso à rua. Eram caixas de madeira, extremamente resistentes, mas Leonardo titubeou novamente; Será que ele não poderia cair de mal jeito e estourar todos os seus órgãos?
一 Isso vai dar certo? 一 Era a pergunta que ele se fazia desde que Helena o havia arrastado para essa aventura maluca.
一 Sempre deu. 一 Respondeu ela, simplesmente. 一 Venha. Faça o que eu fizer.
E, pulando de caixa em caixa, Helena caiu com maestria em cada uma delas. As caixas pareceram nem sequer balançar; Era quase como se a garota fosse tão leve quanto uma folha de papel. Não teve dificuldade em tocar o chão, chamando o menino para que fizesse o mesmo.
一 Vem, Maria-mole. 一 Ela o atormentaria com aquele apelido até o fim de sua vida. 一 Não é tão difícil. Você consegue!
Bem, aquele era um ponto sem volta. Leonardo já havia percorrido mais da metade do percurso e voltar seria um tanto quanto trabalhoso. Suspirou; Fechou os olhos, saltou e aguardou que Deus o agraciasse em sua queda.
Seu pouso não foi tão suave quanto o da companheira; Apesar de se esforçar para não pensar muito, ele percebeu uma torção no tornozelo. Ao aterrissar no chão, Leonardo sentiu uma dor que irrompia de seu pé e corria até o meio da perna, latejante e lancinante. O garoto imediatamente desabou no chão e agarrou seu pé que mais parecia pegar fogo, berrando como um bebê.
Helena revirou os olhos.
一 Qual é a de agora? 一 Ela não parecia levar muito a sério as súplicas do garoto.
一 Meu pé está doendo! 一 Lágrimas ousadas insistiam em se formar em seus olhos. 一 Não vou poder continuar, e...
Helena tomou o pé de Leonardo nas mãos, fez um movimento em que se ouviu um estalo e, após sentir a dor mais violenta de sua vida 一 Ele cogitou a morte por um milissegundo. 一 o pé parecia normal novamente. Era como um milagre; A garota havia desaparecido completamente com seu sofrimento.
一 Resolveu? 一 Perguntou ela.
Leonardo rodopiou o pé em volta de si mesmo por uma vez. Duas. Levantou-se, deu alguns pulinhos. Parecia bem, apenas uma dorzinha singela o incomodava.
一 Acho que sim. 一 Respondeu. Ela exibiu um sorrisinho de canto de boca.
一 Ótimo. 一 Enfim, ela parecia satisfeita. 一 O que você quer comer?
Todo aquele trajeto havia sido bastante extenuante. Tão extenuante que o menino esquecera-se até mesmo de qual era o propósito dele.
一 Não faço ideia. 一 E deu de ombros. 一 Por mim pode ser qualquer coisa, desde que não seja camarão. Eu tenho alergia.
一 Como se eu fosse o tipo de pessoa que lancha camarão. Tenho cara de rica para você? 一 Debochou. Ele se sentiu levemente estúpido. 一 Bem, eu sugiro então um podrão da Vila Canário. Os lanches de lá são ótimos, e...
一 Ah, não! 一 Leonardo fez uma careta. 一 Eu não como nada com muita gordura. Faz mal para o meu estômago.
Helena comprimiu os lábios, exprimindo insatisfação.
一 Então não é exatamente "qualquer coisa", não é? 一 Disse. 一 Um açaí, então?
一 Eu odeio açaí. Tem gosto de terra. 一 E fez um sinal de vômito com a língua. A garota, irritadiça, revirou os olhos.
一 Está bem. Nada de açaí. 一 Helena balançou a cabeça de um lado para o outro. 一 Um salgado, então? Conheço uma lugar que tem uma coxinha divina.
一 Fritura? 一 Leonardo estava indignado. 一 Você quer me ver passando mal no banheiro de novo?
一 O que você come, afinal? Você vive de ar? Faz fotossíntese? 一 Debochou ela. 一 Me diga, Leonardo, do que você gosta?
O rapaz pensou durante alguns segundos. Ele gostava da comida de sua mãe, na verdade, mas essa não era exatamente uma opção acessível. Principalmente agora que ela estava morta.
一 Eu gosto de café. 一 Respondeu ele. 一 Nós podemos procurar um café...
Helena o encarou com seus dois olhos castanhos arregalados, tentando decifrar se aquilo realmente era real.
一 Você só pode estar brincando.
一 Uh... 一 Leonardo coçou a nuca. 一 Má ideia?
Ela não o respondeu. Revirou os olhos e fingiu que ele nunca havia dito nada.
一 Minha última cartada é o sorvete. 一 Helena parecia rendida. 一 Se você não aceitar, eu sinceramente...
一 Pode ser. 一 Leonardo não consumia coisas com muito açúcar, mas não queria contrariá-la. 一 Eu gosto de sorvete.
A moça finalmente sorriu.
一 Finalmente entramos em um acordo. 一 E, virando-se de costas, seguiu caminho pela calçada. 一 Vem, eu conheço uma sorveteria ótima.
***
No final das contas, a escolha de Helena não era tão ruim. Apesar de relativamente simples, a chamada Sorveteria do Zé era um lugar amigável. As pessoas pareciam simpáticas e o sorvete era gostoso. Lembrou Leonardo de sua infância, as doces manhãs de verão em que Clara o levava para passeios na praça aos domingos, onde ele degustava saborosos picolés dos carrinhos que transitavam por aqui e por ali.
O sabor preferido dele era menta, mas o de Clara era napolitano. Leonardo pediu uma bola de sorvete napolitano, apenas para que pudesse se manter mais perto de sua falecida mãe. Conforme ele saboreava a iguaria, as lembranças doces passeavam por sua mente: Desde a risada singela de Clara, até a maneira como ela se irritava quando ele rabiscava a parede da sala.
Bons tempos. Tempos que não voltariam mais. Absorto em seus pensamentos, Leonardo consumia cada vez mais lentamente o sorvete napolitano...
Quando ouviu um estalar de dedos à sua frente e enfim foi obrigado a retornar para o mundo real; Helena estava à sua frente, com uma casquinha de baunilha e uma lata de coca-cola, e parecia estar chamando-o há algum tempo.
一 Terra chamando Leonardo. Terra chamando Leonardo. Beep Beep. 一 Apesar de tudo, suas feições eram brincalhonas. 一 Você está bem? Falei com você umas três vezes. Acho que o sorvete te hipnotizou.
一 Desculpa. Eu estava pensando em algumas coisas. 一 Entrar em detalhes com ela seria um tanto quanto complicado. 一 O que você falou?
一 Perguntei se você já veio aqui. 一 E levou uma porção de sorvete à boca.
Leonardo fez que não com a cabeça.
一 Não conheço essa parte da cidade. 一 Os subúrbios de Labramar eram, para ele, um mistério. Leonardo estava acostumado com a área nobre da cidade. 一 É como se eu tivesse vivido dezessete anos em uma bolha.
一 Você mudou recentemente, então?
Ele assentiu, mas não entrou muito no assunto. Ao invés disso, preferiu mudar completamente os rumos da conversa:
一 Você traz todos os novatos para cá? 一 Havia um tom gozador em sua voz, mas a dúvida era genuína.
Helena riu com o canto da boca.
一 Não é sempre que eu tento ser legal. Os novatos costumam não gostar muito de mim. 一 Ela disse, abrindo o refrigerante. 一 E eu acho a grande maioria entediante.
一 Uau. Eu sou interessante, então? 一 Leonardo sorriu. 一 Isso fez muito bem para a minha auto-estima, se quer saber.
一 Na verdade, você é chato. Bem chato. 一 E tomou um gole de coca-cola. 一 Mas é chato de um jeito diferente. Eu te acho engraçado.
一 Uh... 一 Não era a melhor das respostas. Ele gostaria de ter se sentido ofendido, mas algo o impedia de ter esse sentimento. 一 Então eu sou um palhaço para você?
一 Quase isso. 一 E piscou.
E, contrariamente ao que ele gostaria de ter feito, Leonardo começou a rir. Era como se nenhum dos dois se levasse a sério.
一 Me disseram para te manter longe. 一 E ele estava contando o segundos para o momento em que se arrependeria de não ter feito isso. 一 Estou me perguntando se estavam corretos.
Helena não disse nada, apenas ergueu uma sobrancelha.
一 Ângela te disse isso?
E, subitamente, o sorriso de Leonardo desapareceu.
一 Como você sabe? 一 Ele não conseguia esconder absolutamente nada de Helena. Nada.
一 Eu sei de tudo, meu querido. 一 Respondeu. 一 E, além de mim e Bruno, ela foi a única pessoa com quem você interagiu o dia inteiro.
一 Você... 一 Agora, parecia óbvio demais. Leonardo se culpou mentalmente. 一 Você não vai fazer nada com ela, vai?
Helena soltou uma gargalhada.
一 Ai, garoto, você é hilário. 一 Ele era um verdadeiro palhaço. 一 Mas, me diz... Você gosta da Ângela?
Leonardo enrubesceu. Que tipo de pergunta era aquela?
一 Eu... 一 Pigarreou. 一 A conheço há menos de três horas.
一 Tudo bem, já entendi. Vou reformular a pergunta. 一 Disse Helena, terminando seu sorvete. 一 Você quer pegar a Ângela?
E, naquele momento, a vontade de Leonardo era de se enfiar em um buraco e não voltar mais.
一 Por que você quer saber? 一 Aquela conversa não estava mais tão interessante.
一 Ok, ideia ruim e pergunta ruim. Me desculpe. 一 Helena jogou a casquinha de sorvete no lixo e ergueu sua mão livre para o alto, em sinal de rendição. 一 Você é tímido. Mas eu acho que ela ficou afim de você.
一 Você está enganada. 一 Murmurou Leonardo, emburrado.
一 Ah, Maria-mole... 一 Helena abriu um sorriso. 一 Se tem uma coisa que eu não estou, é enganada.
O rapaz não gostou da conversa. Jogou a casquinha do sorvete no lixo e cruzou os braços, feito uma criança mimada. Estava irritado demais para qualquer tipo de interação com Helena; Ela havia se revelado uma pessoa extremamente inconveniente.
一 Ei. 一 Ela o cutucou. O menino se manteve imóvel. 一 Você está aborrecido?
Ele não respondeu. Se ela era tão inteligente, então conseguiria deduzir sozinha.
一 Me desculpa por isso. 一 Nos seus olhos, ele via um arrependimento genuíno. 一 Eu não sabia que você ficaria chateado. Não queria te aborrecer.
Leonardo franziu o cenho. Quase que no mesmo segundo, deu-se conta do quão criança ele estava sendo; Fazendo uma pirraça boba apenas porque não gostara dos rumos da conversa.
E, afinal, ele também aborrecera Helena mais cedo; Ela estava ali, pedindo desculpas, tentando reparar o erro que havia cometido, mas Leonardo deixara seu erro a ser resolvido. Talvez ele fosse realmente um pouco palhaço.
Então, sentiu que deveria fazê-lo.
— Claro. Claro. — Murmurou ele, cabisbaixo, sentindo-se um pouco envergonhado. 一 E... Me desculpe também.
Helena ergueu uma sobrancelha. Aparentemente, a conexão entre as duas coisas não era tão óbvia.
— Pelo que, garoto?
— Pelo lance sobre os seus pais, hoje mais cedo. — Ele acariciou os próprios ombros. Ela pareceu, então, se recordar. — Eu fui insensível. De qualquer forma, não é da minha conta...
Helena tornou um gole de refrigerante na garganta. Não estava brava; Pareceu aceitar as desculpas do menino.
— Tudo bem. Também não te dei a melhor das respostas. — Disse. — Eu perdi a minha mãe há quatro anos. Ela teve câncer.
— Oh. — De todas as coisas que ele esperava de Helena, uma revelação profunda sobre sua vida pessoal era a última delas. — Eu sinto muito... Quero dizer, eu também perdi a minha mãe. Faz alguns meses.
一 Eu sinto muito por você. 一 Era um dos momentos mais verdadeiros de Helena. Ele sentiu, nos olhos da garota, que ela o compreendia. 一 Isso dói. Muito. Dói tanto que a gente se sente impotente. Mas vai passar, eu garanto. Tudo passa.
Fungando, ele fez que sim. A ferida ainda doía muito, e ele temia que jamais cicatrizasse. Pensar em um futuro sem sua mãe era como pensar em um céu sem estrelas; Vazio, triste, sem luz...
No entanto, ele ainda estava ali. E Clara fora embora. A vida continuava, apesar de seus reveses. E Helena estava ali, olhando no fundo dos seus olhos e mostrando que a dor de ver sua mãe partir não era apenas dele.
Leonardo superaria esse momento. Ele tinha certeza disso.
— Mudando de assunto... — Ele não gostava muito de ponderar o que sua vida poderia ter sido se Clara ainda estivesse por ali. — Eu não trouxe dinheiro algum. Você pode pagar para mim? Eu te reembolso mais tarde...
— Nós não vamos pagar, Leonardo.
O garoto arregalou os olhos.
— Não? — Aquilo só poderia ser uma piada de mal gosto. — Como assim?
Helena fez um sinal de silêncio para ele, o puxou pelas mãos e levou-o até o caixa. O senhor que cuidava das finanças era um moço raquítico com um uniforme maltrapilho, talvez tão jovem quanto o próprio Leonardo.
— Ei, moço... — Chamou Helena. — Nós já terminamos.
O rapaz assentiu com a cabeça e digitou algumas coisas em uma caixa registradora.
— São R$ 17,50. — Disse. — 7 cada sorvete, 3,50 do refrigerante. Certo?
Helena fingiu concordar. Enfiou a mão no bolso, procurando um dinheiro que não estava lá, e Leonardo se perguntava o que sua mente engenhosa estava arquitetando.
Ele não demorou muito para descobrir.
— Ei. — E apontou para trás do moço. — Aquele lá não é o Sílvio Santos?
O rapaz magricelo virou sua cabeça por alguns segundos. Foi a deixa; Helena agarrou o braço de Leonardo num só ato e saiu correndo em disparada para longe da sorveteria. O rapazinho do caixa percebeu que havia sido enganado, berrou algumas coisas furiosas e mostrou o dedo do meio para Helena. A garota apenas mostrou a língua e saiu correndo em direção ao horizonte.
— ATÉ MAIS, TROUXA! — Gritou ela, carregando Leonardo na sua corrida insana.
O garoto estava completamente perdido. Seguia Helena porque era o que sua mente lhe dizia para fazer, mas não estava certo se aquela era a melhor saída. Recebeu duas buzinadas de carro ao atravessar a rua num impulso e teve certeza de que iria ser atropelado hora ou outra. Enquanto ela estava animada em sua fuga incessante, Leonardo tinha certeza que iria cuspir seu coração para fora.
Ele jamais havia se sentido tão sedentário em toda a sua vida.
— HELENA... — Já ofegante e pingando suor, Leonardo chamou sua parceira. — O QUE VOCÊ ESTÁ FAZENDO?
— MAIS UM POUCO. — Ela berrou de volta. — EU CONHEÇO UM ESCONDERIJO.
Só então Leonardo olhou para trás e percebeu que havia um senhor bigodudo correndo atrás deles. Provavelmente o tal Zé, dono da sorveteria.
Helena continuou atravessando as ruas de maneira totalmente irresponsável, até adentrar numa vilela e se esconder em um beco escuro. Eram dez da manhã, o sol estava a pino, mas ainda assim aqueles cantos eram sombrios. Leonardo sentiu um frio na barriga; E se alguém o assaltasse? Ou, pior ainda... E se Helena o assaltasse?
Ela levou sua mão à boca do menino, calando-o. Sentou-se atrás dos sacos de lixo e observou os passos do dono do estabelecimento ficarem cada vez mais fortes. Quando ele passou pela vilela, a sua silhueta delimitou uma bela sombra, e Leonardo sentiu sua testa pingando de suor. No entanto, o velho passou reto, sem notar que seus meliantes estavam escondidos por ali. Finalmente, Leonardo suspirou em alívio.
— Finalmente. — E desabou feito uma gelatina no chão. — Achei que era dessa vez que eu perderia meu réu primário.
Helena riu baixinho. Ele permitiu-se, então, sentir raiva.
— Que ideia maluca foi essa? — Disse, avançando para cima da garota. — Você quase me matou.
— Mas não matei, matei? — Ela sorria. Parecia não estar levando nada disso a sério.
— Você deveria pagar. — Repreendeu. — É muito errado dar calote nos lugares desse jeito.
— Ah, Maria-mole, de todas as pessoas que poderiam me dar uma bronca, pode ter certeza de que você é o último que eu vou escutar. — E fez sinal de abre e fecha com as mãos, desdenhando do garoto. — Mas, se você estiver insatisfeito com os meus métodos, pode ir lá e pagar o seu Zé. Eu não me importo.
E, novamente, ele cruzou os braços, emburrado. Helena sorriu com o canto da boca.
— Você é tão engraçado quando está bravinho. — E isso somente o deixou ainda mais irritado. — Agora, me diz onde você mora. Espero que não seja muito longe, eu preciso te levar lá antes do meu trabalho.
Leonardo piscou.
— Você trabalha?
Ela assentiu com a cabeça.
— Com o que? — Tornou ele a perguntar.
— Em uma loja de roupas, Maria-mole. — Disse ela. — Eu preciso, para complementar a renda lá de casa. Mas vamos, me diga logo onde você mora. Essas ruas são perigosas e eu não vou te deixar ir sozinho até sua casa.
Leonardo perguntou a si mesmo se era uma boa ideia; Deixar uma garota maluca que ele conhecia há algumas horas saber onde ele residia. Era um tiro no escuro; Ela poderia fazer coisas horríveis com essa informação.
Mas, como ele por algum motivo obscuro confiava em Helena, deu-lhe o seu endereço.
***
— Aqui estamos, Maria-mole. — Disse ela, deixando-o em frente ao portão enferrujado de sua avó. — Meu trabalho por aqui está feito. Foi bom conhecer você.
E despediu-se do garoto com um abraço.
— Espero que tenha uma boa tarde. — Continuou ela. — E, se quer saber... Eu acho que você combina demais com a Ângela.
Leonardo fez uma careta, mas antes que ele pudesse protestar, Helena já havia sumido em direção ao horizonte. Bufou, ainda de cara fechada, e abriu o portão com a chave que tinha no bolso. Com a porta da sala, fez o mesmo, adentrando seu lar.
— Já chegou, Leo? — Perguntou Leonor, regando a samambaia da sala.
— Cheguei. — A casa toda estava cheirando frango. A avó havia preparado um almoço daqueles, mas Leonardo não estava com fome. — Não vou almoçar, vó.
— Você precisa comer, Leo! — Berrou ela, enquanto o menino se escondia em seu quarto, mas o garoto ignorou. Não era a primeira vez que ele pulava as refeições e não seria a última.
Deitou na cama, pegou sua HQ preferida do Batman e se pôs a ler, sem sucesso; Não conseguia prestar atenção na história, apenas em Helena. Ah, Helena... Essa garota tão misteriosa que lhe despertava sentimentos tão conflitantes. Ele disse que iria desvendá-la naquele ano custe o que custar, mas suas suspeitas agora eram de que ela o levaria à insanidade antes.
E, enquanto tentava lutar contra os seus pensamentos, sentiu seu celular vibrar. Era uma mensagem.
De Ângela.
"Leo, por que você foi embora?" dizia o texto. "Senti sua falta".
Ele sorriu com o canto da boca. Talvez Helena tivesse razão; Investir em Ângela poderia valer a pena.
Ele lhe respondeu com um simples "Tive dor de barriga :("
Era mentira, claro, mas ela não precisava saber que ele havia passado o restante da manhã com a pessoa mais instável da escola toda. Quando Ângela lhe respondeu, demonstrando preocupação, Leonardo viu nela uma pessoa atenciosa e carinhosa. E continuou lhe mandando mensagens.
E, naquele dia, eles conversaram pelo celular durante a tarde toda.
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