O Pianista
-Sim, claro, posso ir. Está bem, ok, eu não me esqueço das partituras. Sim, mas se eles forem chatos, vai ser a primeira e última vez, percebeste? Óbvio, se os coristas profissionais já são barulhentos quando não estão a cantar, imagina os amadores. Nem quero imaginar. Sim, ok, vemo-nos lá. Tchau.
Robert desligou a chamada. Ninguém lhe tinha dito que ia ter de tocar com um coro barulhento e chato e, pior, composto apenas por crianças grandes do sexo feminino.
Lembrava-se de outras ocasiões como aquela. Sempre a fazer perguntas estúpidas e a rir-se de tudo e de nada, sempre todas histéricas, a dar risinhos e comentários umas para as outras.
Ele até se arrepiava ao lembrar-se disso. «Criaturas irritantes!», pensava ele.
No dia seguinte, o músico chegou ao auditório onde seria o ensaio. À porta, estavam várias raparigas com sacos ou pequenas mochilas e a rir-se em conjunto. Robert já estava à espera disso.
Passou por elas sem olhar, como se elas não existissem, sabia, por experiência própria, como as coristas podem ser chatas quando se olha, nem que seja por uns momentos para elas.
Ele pousou o que trouxera ao pé do piano, já no centro do palco, sentou-se no banco e esperou.
Passados alguns minutos, o coro entrou. Na sua frente vinha uma linda rapariga de cabelos ruivos e olhos verdes e, no fim, uma morena de cabelos encaracolados e bonitos olhos castanhos.
Robert começou por tocar um solo de piano e depois entrou o coro. Como era bonito ouvir todas aquelas vozes diferentes divididas em duas partes e entrelaçando-se para criar uma melodia. O pianista sentia-se contente. A música era muito bonita e, ao contrário do que ele pensava, o coro amador era muito melhor do que outros profissionais que ele já ouvira.
A meio da música, uma das vozes elevou-se, cantando uma linha diferente das outras, um solo. Robert não resistiu a olhar e ver quem tinha uma voz tão bonita. Era a morena que ia no final da fila quando elas entraram.
Ele não pôde olhar mais para ela, pois precisou de ver as partituras para poder continuar a tocar. Evelyn olhou também para ele, quando o pianista baixou a cabeça. E, tal como Robert, não deixou de sentir algo.
Porém, voltou a concentrar-se na música e, por momentos, esqueceu-se dele.
Na verdade, nem um nem o outro se tinha apaixonado. Como é possível alguém apaixonar-se por uma pessoa que acabou de ver?
Robert e Evelyn tinham apenas admirado o talento um do outro e sentido uma imperiosa vontade de se conhecerem.
Quando o ensaio acabou, todos se foram embora e o pianista quis ficar mais um pouco, para treinar. Tocava de novo as suas partituras quando a corista morena de olhos castanhos apareceu.
Ele parou de tocar e observou-a. Tinha a pele escura e o cabelo ainda mais escuro, negro, rentinho à cabeça. os seus olhos castanhos eram, tal como o cabelo, muito escuros.
Robert, por outro lado, tinha um tom de pele claro, a barba e os cabelos cor de avelã e os olhos castanhos, assim como os de Evelyn, muito escuros.
Evelyn apoiou-se no piano de cauda e, quando o músico a ouviu, parou de tocar.
-Qual é a tua música preferida?
-Clássica ou moderna? - inquiriu Robert.
-Pode ser clássica primeiro.
-O Canon de Pachelbel, acho eu.
-Então toca - disse, quase com um tom de provocação, Evelyn.
As mãos de Robert começaram a deslizar pelo piano de forma suave mas forte. Enquanto ele tocava, ela murmurava sobre a música criando uma harmonia indiscritível.
Quando acabaram, sorriram um para o outro. Ambos concordavam que a sobreposição ficara maravilhosa.
-Uau! Tocaste muito bem, Robert. E tu, minha pequena borboleta com voz de ouro, já te disse que cantas muito bem?
-Já, já disseste, Martin.
Martin era o organizador do espetáculo, amigo de longa data de Robert e de Evelyn. Era um tipo divertido, um pouco ciumento, e percebia tanto de música como um marciano, porém era a organizar concertos que ele ganhava a vida.
-Evelyn, este é o Robert. Robert, este é a Evelyn.
Os dois cumprimentaram-se com um aperto de mão, ambos embaraçados não sabiam bem porquê.
-Então, essa vossa música estava muito gira, não querem interpretá-la no concerto? Só têm de arranjar letra. Pode ser?
Os dois acenaram com a cabeça e Robert saiu como tinha entrado, com um enorme sorriso na cara. Logo a seguir, Evelyn propôs:
-O que achas de irmos tomar um café amanhã? Podemos ir ao Botânico. É perto de minha casa e é bastante agradável, não tem muita gente e é bastante espaçoso.
-Pode ser. Por volta das 11, não?
-Sim, claro. Então até amanhã.
-Adeus.
Saíram um por cada lado e, quando chegaram a casa, cada um se pôs a pensar sobre que é que podia ser a letra da canção. A verdade é que cada um queria dar a ideia que seria usada.
***
-Olá, Robert - disse Evelyn quando entrou no café e viu o músico já sentado numa mesa, à sua espera. Pousando a pasta de couro que trazia na mão em cima da mesa, disse - Desculpa o atraso, o despertador não tocou.
-Não faz mal. Mas... O que é que trazes nessa mala?
-Alguns papéis com ideias para a letra e as partituras para o ensaio que vou ter agora.
-Ah, ok. Então senta-te e mostra lá as tuas ideias.
Evelyn puxou uma cadeira e sentou-se, puxando a mala para si e abrindo-a para procurar pelos papéis.
-Cá estão.
A corista espalhou-os por cima da mesa e Robert pegou no primeiro que lhe chegou.
-É bonito, mas não será um pouco triste? Eu acho que uma coisa mais feliz seria mais apropriado. Embora esta esteja muito bonita, acho que talvez uma espécie de hino ao amor funcionasse melhor.
-Talvez tenhas razão. Mas, já que não gostas das minhas ideias, que são todas assim neste género, porque é que não escreves tu um poema?
-Eu não sei escrever poesia, já tentei, mas funciona mesmo mal.
-E eu não sei tocar piano. - disse Evelyn com um ar maroto. - Tu podias ensinar-me isso e eu ensinava-te a escrever. O que achas?
-Evelyn, eu sei escrever.
-Sim, a escrever poesia, tanto faz. Aceitas ou não?
-Sim, porque não? - respondeu Robert, encolhendo os ombros.
-Então, vemo-nos amanhã em tua casa? Para me ensinares a tocar piano, pode ser?
-Sim, já te tinha dito que sim. Agora tenho de ir andando, adeus.
-Tchau - disse Evelyn. Ficou mais algum tempo lá, para pedir um café, e depois saiu também.
***
A casa de Robert era, na verdade, um pequeno apartamento com um quarto, uma sala/cozinha, uma casa de banho e um escritório.
Porém, era luminoso e as divisões eram relativamente grandes. Ele arrumou e limpou tudo até ficar o chão ficar a brilhar e não houvesse um papel fora das gavetas. Tirou o pó a tudo e comprou uns biscoitos para receber a nova amiga.
Quando ela entrou, espantou-se completamente, nunca pensou ver uma casa tão arrumada, limpa e bonita, porque a casa era muito simples, mas também muito gira.
Robert ensinou as partes básicas do piano a Evelyn, mas ela já sabia isso mais ou menos, porque todas as pessoas que trabalham com música (menos o Martin) sabem mais ou menos onde são as notas num piano e algumas coisas desse género.
A seguir, ela deu algumas dicas ao pianista de como escrever um poema e, na sua opinião, os exercícios que tinham feito «não estavam nada mal».
Foi uma manhã divertida, cheia de risos, música e poesia.
No final, combinaram que Evelyn ia treinar piano e Robert ia escrever uma letra para a música.
E essa semana passou a correr sem que os dois se vissem.
E na semana seguinte, Evelyn chegou a tocar as escalas e as pequenas peças que Robert lhe dera na perfeição. E Robert lá estava com uma folha de papel na mão e um poema muito bonito escrito lá.
Como da outra vez, ele ensinou-lhe mais um pouco a tocar piano e ela leu o poema e deu-lhe algumas dicas para que melhorasse.
Mais uma manhã de risos, poesia e música. E houve várias assim.
À medida que se iam conhecendo, os dois amigos cada vez sentiam mais necessidade de estar um com o outro até que aquele bichinho do amor apareceu nos seus corações.
Um dia, Robert convidara Evelyn para ir com ele a um parque muito grande, bonito e moderno, um sítio onde a maioria dos caminhos são iluminados por uma luminosidade filtrada pelas copas das árvores.
Sem sequer se aperceberem, caminhavam de mão de mão dada, quando Robert subitamente lhe largou a mão e olhou para ela. Os seus olhos transbordavam de emoção e nem parecia o mesmo. A sua boca estava semi-aberta, como quem vai dizer alguma coisa mas perde toda a coragem assim que abre a boca.
Lentamente, abriu a boca e disse:
-Evelyn, desde que te vi que acho que és a rapariga mais gira, simpática e inteligente que eu já conheci e ter passado algum tempo contigo fez-me perceber o quanto te amo. Por isso, gostava de te perguntar: queres namorar comigo?
A corista tinha os olhos marejados de lágrimas de felicidade e, deixando-se cair no peito de Robert, respondeu:
-Sim, quero sim.
Robert acariciou-lhe a face e suavemente pô-la ao nível da sua, juntando depois os seus lábios num beijo simples mas apaixonado.
Naquele momento, eles sentiram que não havia guerra, fome ou morte e que o mundo era perfeito e apenas despertaram daquele bonito momento quando lentamente Robert se começou a descolar. Sorriram um para o outro e, voltando a dar as mãos continuaram o caminho, felizes.
***
Faltavam apenas 2 semanas para o concerto. Ia ser lindo!
Várias interpretações diferentes, coro, piano, orquestra e, para terminar em beleza, Robert e Evelyn a tocar e a cantar a música que eles próprios tinham feito.
E foi nessa altura que Robert descobriu que estava com cancro, já numa fase muito avançada. Teve de ser internado imediatamente. Todos os dias, a corista ia lá visitá-lo.
Pediu que levassem um piano para lá, e ao lado da cama dele ficou um teclado para que ela pudesse tocar quando o ia visitar.
No dia antes do concerto, Evelyn foi visitá-lo. Era já de noite e os médicos diziam que ele não ia passar dali. Ela chegou-se à frente e sentou-se ao piano. O seu namorado estava de olhos abertos e acordado e pediu-lhe, numa voz muitíssimo débil:
-Vai, vai ao concerto e toca a nossa música, para que o mundo saiba como nos amámos.
-Sim, meu amor - respondeu-lhe ela, com as lágrimas já a escorrer pelo rosto. Olhou para as suas mãos e reparou que elas já estavam no piano, prontas a tocar e assim deixou que elas repetissem e tocassem a música que já havia decorado. E, por cima, Evelyn cantou.
E cantou como nunca tinha cantado. Cantou com o coração, com as memórias, cantou com tudo o que tinha, pondo a alma na voz e, enquanto cantava e tocava, dos seus olhos escorriam lágrimas de sofrimento.
E, quando acabou, olhou para o seu namorado, deitado serenamente na cama de hospital de olhos fechados e um sorriso nos lábios.
Um médico aproximou-se e murmurou:
-Ele já morreu.
Evelyn não conseguiu acreditar sentou-se ao banco do piano e tocou para afogar as mágoas, tocou para ter tempo para pensar, tocou para que, aquele que ela amava nunca fosse esquecido.
E assim, no dia seguinte, ela entrou em palco e sentou-se ao piano. Falou ao público:
-A música que eu vou cantar tem base no Canon de Pachelbel e fui eu e Robert Silver que a compusemos.
O público ficou em suspenso por alguns momentos até que ela começou a cantar. Mas a letra era diferente. Era a letra composta por ela própria originalmente e que Robert achara demasiado triste, mas que se adequava perfeitamente ao momento que ela vivia.
Here's to the ones that we got
Cheers to the wish you were here, but you're not
Evelyn pensou nos seus amigos, na sua família e desejou que Robert ali estivesse para lhes apertar a mão, para os cumprimentar e para poder conversar animadamente com eles, mas não estava. E achou que tanto o desejo de ter sempre ali a sua família e os seus companheiros tinha tanto valor como desejar que Robert voltasse.
'Cause the drinks bring back all the memories
Of everything we've been through
Veio-lhe à mente os passeios pelo parque, as aulas de piano, o café no Botânico, os ensaios ao piano, as bebidas no bar e tudo o que tinha feito com e por Robert e o que ele fizera por ela.
Toast to the ones here today
Toast to the ones that we lost on the way
Que saudades de Robert, talvez estar com alguém que ainda estivesse no mundo dos vivos a pudesse ajudar.
'Cause the drinks bring back all the memories
And the memories bring back, memories bring back you
As memórias eram tantas e tão confusas. E todas lhe lembravam uma pessoa: o pianista que conquistara o seu coração. Mesmo as mais antigas traziam aquele músico que fora o seu namorado durante tanto tempo.
There's a time that I remember
When I did not know no pain
Como se lembrava daqueles momentos perfeitos que passava encostada ao peito dele. Daqueles em que todas as coisas más pareciam não existir e o mundo parecia exaltar as suas melhores qualidades. Aqueles em que a dor parecia não existir.
When I believed in forever
And everything would stay the same
Recordava com ternura e saudade aqueles momentos em que o mundo ficava em suspenso e nada mudava. Tudo parecia eterno e tudo parecia querer ficar daquela forma para sempre.
Now my heart feel like December
When somebody say your name
Antes de entrar no palco, Martin dissera-lhe «Tu consegues, pelo Robert». Evelyn não prestara atenção ao que ele dissera, lembrava-se apenas de ter sentido o coração congelar-se e a visão ficar meio turva, talvez por se estarem a acumular cada vez mais lágrimas.
'Cause I can't reach out to call you
But I know I will one day, yeah
E aqueles dias em que tinha medo de ligar para ele, antes de se tornarem namorados, como se maldizia por não ter demonstrado os seus sentimentos mais cedo, como estava triste por ter demorado tanto tempo quando, na realidade, bastou encontrarem-se três ou quatro vezes para se apaixonarem. Agora, já não lhe podia ligar e só podia esperar por um dia ir ter com ele.
Everybody hurts sometimes
Everybody hurts someday, ay-ay
Sabia que toda a gente se magoa, mas nunca pensou que a dor pudesse ser algo tão desumano. E sabia que voltaria a sofrer todas as noites quando tivesse tempo para pensar.
But everything gon' be alright
Go and raise a glass and say, ay
Mas sabia que um dia ele se converteria em memórias e tudo voltaria a estar bem, embora muito lhe custasse deixar aqueles momentos apenas nas memórias.
Here's to the ones that we got
Cheers to the wish you were here, but you're not
'Cause the drinks bring back all the memories
Of everything we've been through
Toast to the ones here today
Toast to the ones that we lost on the way
'Cause the drinks bring back all the memories
And the memories bring back, memories bring back you
Cada vez as palavras da música se adequavam mais àquele momento que ela vivia sozinha, àquele peso que todos os dias carregava sobre os ombros.
Memories bring back, memories bring back you
Sabia que as memórias o trariam até à areia da sua praia e o levariam de volta, como a espuma do mar que acaba sempre por voltar. E sabia também que, se mergulhasse para trazer Robert, não mais voltaria a terra.
There's a time that I remember
When I never felt so lost
Já não se sentia tão perdida e sozinha como no dia anterior, quando lhe deram a notícia, mas sabia que nenhum daqueles sentimentos a deixaria alguma vez, embora pudessem aumentar ou diminuir.
When I felt all of the hatred
Was too powerful to stop (oh, yeah)
Lembrava-se de ter sentido que as coisas más, que a maldade, o ódio e tudo o resto, eram demasiados fortes para poder pará-los, mas foi um pensamento momentâneo, pois agora repreendia-se por ter achado tal coisa.
Now my heart feel like an ember
And it's lighting up the dark
Sentia o coração ardente, pronto para combater tudo e todos se pudesse ajudar na luta contra as coisas más e sabia que, no labirinto do seu ser, ele poderia iluminá-la como uma fagulha pode iluminar um quarto escuro.
I'll carry these torches for ya
That you know I'll never drop, yeah
E foi a meio da música que Evelyn decidiu voltar completamente para o mundo dos vivos e carregar as tochas que Robert lhe havia deixado para que pudesse iluminar não só o seu mas também o caminho dos outros.
Em pouco tempo a música acabou. Foi aplaudida de pé e não houve uma única pessoa em todo o auditório que ficasse indiferente àquela atuação.
Sabia que, quando Robert lhe pediu para ir ao concerto, lhe pedia também para seguir carreira e não se deixar prender por ele.
E Evelyn assim fez. Tornou-se famosa e seguiu o seu sonho. E nunca se esqueceu daquele que foi o seu primeiro e único amor.
2578 palavras
Publicado em setembro ou outubro de 2020
Conto vencedor do 1.º lugar no Concurso MusicTales - Categoria Pop
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