Hdoa e Vougan
Sinto os olhos do salão inteiro sobre mim e não consigo lamentar não ter tido tempo de me colocar apresentável. Ainda a noite ia alta quando os emissários me entraram pelo quarto adentro e me arrastaram da cama para o Território Neutro. Já estava à espera deste dia desde que me explicaram que sou, na verdade, um ser feérico e que os meus pais humanos não são, na verdade, os meus pais biológicos. Contudo, esperava que me dessem tempo de me lavar e vestir qualquer coisa adequada para conhecer os seres que me deram vida e decidir a qual das Cortes me juntar. Estar de pijama velho, cara amassada e ramelas nos olhos aqui, neste ambiente onde todos os olhos procuram por uma falha minha para me destruir ou explorar, é só ridículo.
O cruzamento entre cortes não é proibido, mas também não é aconselhado. Quando acontece, a criança é trocada por uma criança humana, para ser criada longe dos feéricos até ter idade suficiente para escolher de que Corte quer fazer parte. E agora que atingi a maioridade, chegou a minha vez de conhecer os meus verdadeiros pais e de fazer a minha escolha.
Observo outra vez o salão à minha volta. Parece de um castelo dos contos de fadas, com as paredes feitas inteiramente de pedras escuras, grandes tapeçarias de cores vivas penduradas nelas e dois tronos de ouro, diante dos quais eu estou. Nos dois lados da sala, atrás das cortes, há uma varanda aberta, por onde se vê o céu escuro da noite sem estrelas.
À minha volta, formou-se uma espécie de círculo e eu estou sozinho no meio da sala, à direita os que eu deduzo serem Unseelie, por usarem todos roupas em tons escuros, e à esquerda os Seelie, trajados de mais claro.
Ouço um trovão ecoar por toda a sala e vejo que, na varanda atrás dos Seelie, uma enorme nuvem escura dirige-se ao local onde estou. A tal nuvem aterra na varanda e desfaz-se, deixando ver uma biga com um homem no interior, puxada por cavalos de vento, dos quais só é possível ver os contornos, devido à sua falta de opacidade.
O homem desce da pequena viatura e toca na testa dos cavalos, que baixam a cabeça como que numa reverência silenciosa. A seguir, desvanecem-se e imagino que se tenham juntado ao restante vento que entra pela porta aberta, pois sinto uma rajada mais forte bater-me na cara.
Quando o ser feérico da biga se vira, observo-o com atenção. Tem o cabelo castanho ondulado pelos ombros e uma coroa feita, aparentemente, de ouro e pedras preciosas encaixada perfeitamente na cabeça. O seu rosto é ocultado por uma máscara que deve ser também de ouro e que deixa à vista apenas os olhos e a boca. Veste uma túnica branca, segundo me parece, mas que é escondida pela capa vermelho-sangue que está presa ao ombro. À cintura, vê-se um cinto, talvez de couro, ao qual está presa a bainha onde deverá estar uma espada. Os sapatos são castanhos e com a ponta para cima, como aqueles que vemos nos livros de contos de fadas. Eu diria que, tirando a máscara, parece um típico rei da Idade Média.
Ele entra e, à sua passagem, todos os Unseelie se inclinam numa vénia, e senta-se no trono dourado à direita, sobre o qual está colocado um pano de veludo vermelho escuro, como a capa dele.
Olha para mim com os seus olhos escuros e eu, sem saber bem o que fazer, inclino-me numa vénia extremamente desajeitada que, parece-me, quase lhe leva um sorriso aos lábios.
Todo o salão mergulha no silêncio e os cortesãos olham uns para os outros e imagino que devem estar à espera de mais alguém.
Percebo que estou certo quando, da varanda dos Seelie, vejo uma nuvem luminosa clarear o céu noturno daquela noite sem estrelas de Lua Nova. Tal como acontecera com a nuvem Unseelie, num instante vejo uma mulher, a rainha Seelie, na varanda. Parece sentada num trono transparente feito de ar da noite, se é que isto faz sentido, do qual se levanta quando chega à varanda.
Observo-a atentamente. Usa também uma coroa, mas de prata, sobre o pano branco quase transparente que lhe cobre o cabelo loiro. Tal como o rei Unseelie, uma máscara prateada cobre-lhe a face, deixando apenas à vista os olhos azuis e a boca fina. O seu vestido é azul, muito claro, e sobre ele está uma capa de um tecido muito fino, branco, com alguns bordados prateados representando flores.
Como acontecera com o chefe da outra corte, à sua passagem todos os Seelie fazem uma vénia e ela senta-se no trono vago, coberto por um pano fino, azulado e um pouco transparente.
Faço-lhe também uma vénia e, sem saber muito bem o que fazer ou dizer, fico ali especado a olhar para os reis, totalmente deslocado, com o meu pijama e a minha cara ensonada, no meio daquele esplendor medieval.
Um pagem seguido por uma rapariga, provavelmente da minha idade, loura, de olhos escuros e tão desadequada àquele espaço como eu, entra e, fazendo-lhe sinal para ficar ao pé de mim, avança e diz muito alto:
-O rei Ahod e a rainha Vaughan compareceram hoje para testemunhar a escolha destes dois jovens sobre a corte a que pertencerão.
O ser feérico fita-me, a mim e à loira ao meu lado, e diz:
-Infelizmente, os pais destas duas crianças morreram - oiço um burburinho alastrar-se por todo o salão e sinto as lágrimas picarem-me os olhos, mas esforço-me para as conter.
Imaginei sempre um reencontro amoroso com os meus pais, naquele dia, com um abraço ou, no mínimo, uma troca de olhares ternurenta, como aconteceria num filme. Nunca me passou sequer pela cabeça que eles pudessem estar mortos. Nunca os conheci, mas esperava ter oportunidade para tal e agora, parece que isso nunca vai acontecer.
Olho para a fada ao meu lado, que acabei de descobrir ser minha irmã. Também ela parece estar, como eu, a esforçar-se por não derramar qualquer lágrima. E é bem melhor sucedida do que eu, porque nesse momento sinto uma grossa gota de água deslizar-me pela cara. Uma grossa lágrima que, felizmente, mais ninguém parece ter notado. Limpo-a rapidamente com a manga do pijama.
-Em primeiro lugar: Hdoa - começa ele, depois de alguns momentos de silêncio, dirigindo-se à minha recém-descoberta irmã. - Que corte escolhes?
Sem hesitar, Hdoa dá um passo em frente e diz:
-Unseelie!
Uma cara de aprovação parece surgir na cara do rei Unseelie, mas a máscara esconde se o é mesmo ou não. Também os outros Unseelie exultam, pelo que me parece, sorrindo encorajadoramente.
-Agora, Vougan, é a tua vez. - afirma o pagem, sorrindo para mim, numa tentativa de me encorajar, acho eu, mas que só me assustou mais.
Enquanto me concentro para pensar qual das cortes será melhor para mim, vejo os seres feéricos olharem com curiosidade e cabeças a emergir da multidão para me verem. Fico cada vez mais nervoso, e, quando dou por mim, já tinha dito:
-Seelie!
Vejo a rainha Vaughan sorrir, tal como alguns dos Seelie, e dirijo-me para esse lado do salão, como a minha irmã Hdoa fizera antes.
***
Estou sozinha com Vougan numa pequena sala, onde nos disseram para esperarmos para a audiência, no meu caso com o rei, no do meu irmão com a rainha.
Disseram-nos que, se quiséssemos, nos podíamos pôr apresentáveis para o rei e para a rainha. Já tinha sido vergonha suficiente entrar ali de pijama, não ia piorar e ir à audiência na mesma figura.
Pedi ao meu irmão que saísse um pouco para eu me vestir e que, se quisesse, podia fazer a mesma coisa para ele, mas não me parece muito virado para isso. Se quiser ficar de pijama e ser recebido assim pela rainha, por mim está à vontade.
Termino de me vestir como as outras pessoas naquele castelo e abro a porta para o miúdo de cabelo castanho e olhos azuis que espera à porta. Ele entra e diz, sentando-se pesadamente no sofá ao pé da porta:
-Se calhar é melhor vestir-me com aquelas roupas, não é?
Aceno com a cabeça e ele, suspirando, anda lenta e preguiçosamente até à cadeira onde estão os trajes medievais masculinos, enquanto eu saio e fecho a porta.
Encosto-me à parede ao lado e sento-me, sentindo o frio do chão e das paredes de pedra passar através do tecido pouco quente.
Lembro-me da confusão que foi para os emissários tirarem-me daquele quarto. Nos últimos tempos, estava a perceber que os meus pais tinham algo para me dizer, que devia ser sobre eu ser um ser feérico e sobre a aproximação do dia de escolher uma corte, mas não chegaram a dizer-me nada, acho que mudava o assunto e lhes cortava a palavra sem querer. Por isso, quando os emissários entraram, esta noite, para me levarem para o castelo onde estou, tiveram de se haver com uma miúda com um canivete para se proteger. Felizmente para eles, imobilizaram-me com magia e trouxeram-me assim até à zona neutra, ao castelo onde, segundo me explicaram a seguir, são feitas as negociações entre as duas cortes e o que quer que seja feito envolvendo os Seelie e os Unseelie.
Perco-me nos meus pensamentos até que vejo a cabeça do meu recém-descoberto irmão aparecer pela porta e chamar-me baixinho.
Entro e sento-me, com ele, num pequeno sofá, onde ficamos à conversa durante perto de uma hora e meia, tempo ao fim do qual não nos lembramos de mais temas de conversa e ficamos sentados a olhar para a janela que nos deixa ver o céu noturno, já um pouco iluminado pelo nascer do sol.
Uma ideia surge na minha mente e rapidamente vejo-me a propô-la a Vougan:
-O que achas de irmos à procura de alguém? Já aqui estamos há imenso tempo e ninguém nos vem chamar.
Ele parece concordar, encolhendo os ombros e levantando-se preguiçosamente.
Dirijo-me à porta, que abro e, depois de olhar furtivamente à volta, avanço com o outro ser feérico atrás.
Ao virar num corredor, vejo três pajens a saírem de uma sala de onde se ouve vozes exaltadas, um pouco abafadas. Os três entram noutra porta qualquer e deixam-me o caminho livre. Fico curiosa sobre quem está dentro da porta e aproximo-me, colando o ouvido à fechadura para tentar ouvir o que se passa lá dentro.
Consigo distinguir uma voz masculina e outra feminina, e vou percebendo, com a conversa, que são o rei Ahod e a rainha Vaughan.
-Nenhum de nós tem herdeiros diretos e legítimos. A menos que prefiras escolher uma pessoa qualquer para ocupar o teu cargo quando desapareceres, aquela criança vai ser a próxima pessoa a governar a tua corte.
-Vai ter, no máximo, um trabalho no castelo e já vai ter muita sorte. - ouço um estrondo e presumo que o rei Unseelie bateu com o punho numa mesa. Já deviam estar naquela discussão há algum tempo. - Não vou admitir que tenho uma filha ilegítima, muito menos que é filha de uma Seelie. E estamos conversados.
-Ahod, eu não quero que a minha filha viva como uma simples criada. - declara a rainha Seelie, firme. - Ela é uma princesa pelos dois lados. Tal como eu vou reconhecer Vougan, devias fazer o mesmo.
-O problema é teu, porque como já te disse, não vou admitir que Hdoa seja minha filha, muito menos reconhecê-la como herdeira do trono.
Consigo distinguir o som dos passos pesados do rei e, agarrando Vougan pelo colarinho, também ele com a orelha colada à porta, corro de volta para a sala onde estávamos.
Felizmente, não estava lá ninguém e pude conversar à vontade com o meu irmão, que acabei de descobrir ser um príncipe, tal como eu.
-Conseguiste ouvir a conversa toda?
-Mais ou menos - responde ele, fazendo o gesto correspondente à sua resposta.
- Mas percebeste o essencial?
-Que os nossos pais são o rei Seelie e a rainha Unseelie e que, por isso, nós somos duplamente príncipes? - aceno com a cabeça e ele sorri. - Então sim, percebi.
-O problema é que o rei Ahod... O pai, não quer reconhecer-me, o que significa que, enquanto tu herdas o trono, eu fico a fazer limpezas num castelo. - reflito, esperando que ele chegue à conclusão certa.
-Não é justo! - afirma ele, acenando a cabeça. - Devíamos fazer alguma coisa.
Sorrio. Era exatamente aí que eu queria chegar.
2025 palavras
Publicado em julho de 2021
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