Diz-se que o amor é cego
-Hoje tenho uma surpresa para vocês, alunos. – a diretora de turma do 8.º B parecia entusiasmada. – Temos uma aluna nova!
Gonçalo revirou os olhos e recomeçou a desenhar no caderno. Mesmo que a professora fosse dar matéria, bastava-lhe uma vista de olhos pelo caderno ou pelo manual para reter.
Porém, quando Diana entrou, não pôde ficar indiferente. Quase sem querer, os seus olhos desprenderam-se da caricatura da professora que estava a fazer e fixaram-se no olhar doce e ingénuo da rapariga.
Tinha os cabelos longos, ondulados e loiros, os olhos azuis e a cara angulosa. O nariz era arrebitado e a boca pequena, aberta no que parecia um sorriso, tão inocente como o olhar. Porém, quase ironicamente, o que mais saltava à vista era aquilo a que não podia dar uso. A rapariga exibia um estonteante par de olhos azuis claros, mas era cega.
O melhor aluno da turma percebeu-o assim que viu o bastão que ela trazia na mão. Sentiu um toque vindo de trás. Era Martim, o seu melhor amigo.
-Já reparaste que ela é cega? – o da frente acenou afirmativamente com a cabeça. – Vamos pregar-lhe montes de partidas.
A professora conduziu a nova aluna para uma secretária à frente de Gonçalo e lançou-lhe, a ele e ao seu melhor amigo, um olhar de puro desagrado. Depois, virando-se para eles, sussurrou-lhes:
-Quero que ela se sinta acolhida. Teve sempre aulas em casa e quero que se sinta bem acolhida aqui.
Gonçalo moveu a cabeça, mas o outro limitou-se apenas a ajeitar a cadeira, desviando a atenção.
No final da aula, os rapazes saíram todos juntos, em grupo, com três raparigas que andavam quase sempre com eles.
Diana saiu, tateando o chão, as paredes e os objetos, e, ouvindo-os falar, perguntou:
-Para que lado é o recreio?
-Podes seguir-nos. – respondeu Martim, fazendo logo a seguir um sinal de silêncio às outras pessoas que seguiam com ele.
Todos começaram a andar o mais silenciosamente que conseguiam, menos Gonçalo, mas apenas o som de uma pessoa não chegava e, com tanta gente no corredor, a rapariga não conseguia identificar quais os passos do grupo que ela devia seguir.
Manteve-se no mesmo sítio, pensando que certamente a viriam buscar e era exatamente o que Gonçalo propunha fazer ao seu melhor amigo, que apenas o fulminou com um olhar e um «Faz o que te apetecer» desdenhoso.
Com medo de ser substituído e de perder a amizade, o rapaz manteve-se no mesmo sítio, continuando a andar, agora silenciosamente.
E esta foi a primeira de muitas maldades que fizeram à pobre colega. Atiraram-lhe água, fizeram-lhe rasteiras e, sobretudo, riram-se.
Ela apenas corria para o lado contrário, chorando e tentando não bater contra nada.
Gonçalo mantinha-se com o seu grupo de amigos, nunca participou no bulling, mas todos os dias o via várias vezes e levava-o quase como uma normalidade. Nunca fez nada para o impedir, nunca. Pensava que era o melhor que podia fazer, olhá-la e simplesmente não fazer nada, mas lá no fundo sabia que a podia ajudar. O problema é que tinha medo!
No último dia, propuseram-se a fazer um jogo com ela. Era a cabra-cega, infantil, sem dúvida, mas a verdade é que Martim tinha outra ideia na cabeça.
Rodaram Diana, demasiado depressa, cantando a canção e, roubando-lhe o bastão, correram para longe. Ela ainda não tinha percebido a terrível brincadeira e tentou correr atrás dos colegas.
Estes, tentando enganá-la, levaram-na por todos os sítios, até que uma parede se pôs à frente e a rapariga bateu nela.
Caiu para trás, batendo com a cabeça. O cimento de que estava coberto o recreio foi coberto por uma substância vermelha, talvez bordeaux, assim como os cabelos da loira.
Martim ficou preocupado, tal como o resto do grupo, não pelo facto de ela estar bem ou não, mas pela pessoa em quem poria a culpa. Não se podia acusar, mas não faria sentido se dissesse que tinha sido a própria.
Nessa tarde, depois da ambulância chegar e levar a doente, Cláudia e o melhor amigo de Gonçalo foram a casa deste e, no quarto do rapaz, discutiam.
-Já que sabes tão bem o que temos de fazer, diz lá como é que fazemos? - perguntou Martim, zangado com o amigo.
-Eu... Acho que podiam pedir desculpa... Dizer a verdade...
-Nós... Pedir desculpa?! – exclamou a rapariga, que todos os dias se sentia um pouco invejosa com os olhares que o dono da casa dispensava à cega. – E porquê só nós? Afinal, também tu lhe fazes... Bulling.
O rapaz caiu na dura realidade com as palavras pronunciadas pela sua antiga paixão. A mentira que cultivava tinha sido como uma toca, na qual hibernara durante as últimas semanas.
-Ela tem razão! Tu nunca fizeste nada contra ela, mas nunca disseste para nós pararmos.
-Mas era o que eu pensava...
-E? Agora vamos ser expulsos. Não faz qualquer diferença o que tu pensavas.
-Mas...
-Já que és tão certinho, podemos sair, não achas, Martim? – disse, irónica, Cláudia.
Os dois levantaram-se, talvez desiludidos, e o maior deu um empurrão ao antigo amigo, como quem diz que o tinha desiludido.
Quando ouviu a porta bater, deitou-se sobre a almofada, e dos seus olhos, uma lágrima isolada escorreu. Ficou indeciso sobre a certidão da sua ação. Talvez tivesse errado ao deixar os seus amigos partirem, ou podia ter feito o que sabia ser certo, proteger Diana.
No dia seguinte, na primeira aula, o diretor compareceu, ao contrário da menina por quem Gonçalo estava apaixonado.
-Disseram-me que a Diana, a vossa colega, foi vítima de bulling, tanto psicológico como físico. Ontem foi para o hospital com a cabeça partida e disse que tinham sido alguns de vocês. Quero que quem foi se acuse agora.
Ninguém levantou a mão.
-Muito bem, digam-me então quem foi.
Quase toda a turma apontou para Gonçalo, e este viu um sorriso diabólico formar-se no rosto daquele que fora o seu melhor amigo ainda há um dia.
-Tu, vai para o meu gabinete, agora! Vou ligar aos teus pais.
O resto do dia foi passado entre reuniões, zangas e lágrimas isoladas. O rapaz foi expulso e entrou para um colégio masculino, quase militar, onde não fez amigos. O bulling acompanhou os anos seguintes da sua vida, foi sempre identificado por algo que não fez.
***
Gonçalo tinha acabado a escola e estava a iniciar as férias e a pensar para onde iria, pois sabia que os pais não lhe quereriam pagar a universidade.
Faltavam alguns dias para fazer 18 anos e não se sentia completo, como achava que devia estar.
Cruzava uma esquina, olhando para o chão, como era seu hábito, quando sentiu algo pisar-lhe o pé. Ouviu uma voz feminina, agradável, pedir desculpa e levantou os olhos.
À sua frente estava uma mulher com os cabelos loiros, curtos, alta, magra, um nariz ligeiramente arrebitado, a face angulosa e... Uns fantásticos olhos azuis, que passavam alguma distância, não pareciam olhar nada, mas ao mesmo tempo absorver tudo.
-Desculpa eu... Diana – disse o adolescente, quase adulto, um pouco constrangido.
-Como é que sabes o meu nome?
-Eu era da tua turma, no 8.º ano. Sou o... Gonçalo.
Ela foi para longe dele, correndo, com medo, talvez pensando que ele era um dos que lhe fizera bulling. O rapaz agarrou-lhe o pulso, salvando-a de ser atropelada e puxando-a para perto dele.
-Eu... Eu só quero pedir-te desculpa. – a rapariga olhou para ele e, agarrando-lhe a mão, apertou-lha.
-Eu é que te tenho de agradecer. Salvaste-me, agora mesmo.
Ele apertou-lhe a mão também e ela sorriu.
-Queres ir ao jardim? Está sol, aqui. Demasiado. Lá podemos conversar melhor, também.
Diana concordou, acenando com a cabeça e largou a mão dele, com uma vaga esperança de que ele a voltasse a agarrar.
E foi o que aconteceu. Quase sem notar, as mãos juntaram-se e ambos sentiram que um bocadinho do seu coração se revelava naquele momento.
Sentaram-se num banco de jardim, a conversar.
Durante vários dias, durante várias semanas, durante vários meses conversaram naquele banco, atravessando estações, atravessando anos, atravessando todos os obstáculos que a vida lhes punha à frente.
1358 palavras
Olá! Como estão?
Este livro é uma coletânea de contos para o concurso «Deuses do Olimpo». Este conto está pequeno, mas é o que dá.
Só postei hoje porque nsooutros dias esqueci-me.
Se tiverem tempo, deixem um pequeno feedback.
Espero que gostem e obrigada por lerem
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